O tema da conferência era os abusos sexuais de crianças por meios digitais, a pedofilia online, um gigantesco e imparável crime que atinge milhares de vítimas e cujo combate e extinção deixa cada vez mais frustradas às autoridades. O diretor da Polícia Judiciária (PJ) não só não escondeu esse desalento, como o realçou, dramatizando a “desigualdade” de capacidades tecnológicas dos criminosos face às dos polícias. . Como exemplo indicou o acesso aos metadados das comunicações, “vital para a investigação” deste e “de vários outros crimes graves”, que foi retirado às polícias em nome, frisou Luís Neves, de posições “extremadas” de defesa do direito à privacidade . Estes dados eram mantidos durante dois anos pelas operadoras, num servidor de alta segurança, e permitiam às polícias saber as chamadas feitas e recebidas por um suspeito, a sua localização, o tempo das conversas, os endereços online que pesquisava, nesse período prévio à abertura do inquérito. Para aceder aos dados o pedido tinha de ser validado por um juiz. Em 2014, o Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) considerou que este instrumento legal violava o direito à privacidade, argumentando que se tratava de uma vigilância em massa a todos os cidadãos, independentemente de serem ou não suspeitos. Em 2022 o Tribunal Constitucional declarou a inconsititucionalidade dessa prática em Portugal e as bases de dados foram apagadas. Agora só é possível às operadoras conservarem os metadados no âmbito de um inquérito concreto e mediante decisão judicial. Não podem reter dados preventivamente.Mas o diretor da PJ, corroborado pela procuradora belga, garante que não é suficiente. “Quando nos chegam as denúncias os abusos já acontecem há algum tempo e entre a abertura de um inquérito e a identificação de suspeitos em concreto (a cujos metadados se pede acesso) é demorado a ponto de quando vamos ao juiz das liberdades pedir para aceder já passou o prazo”, sinalizou.Com a eurodeputada do CDS Ana Miguel Pedro, organizadora do evento, em destaque, nesta conferência que decorreu no Parlamento Europeu intervieram também Danny van Althuis, Chefe de Equipa AP TWINS da Europol, uma unidade de cibercrime que se dedica ao combate da exploração e abuso sexual de crianças online; Ann Lukowiak, procuradora belga; Michelle DeLaune - Presidente e CEO do NCMEC (National Center for Missing & Exploited Children) dos EUA; Javier Zarzalejos, eurodeputado e Presidente da Comissão LIBE (Liberdades Cívicas, da Justiça e dos Assuntos Internos), relator da proposta de lei para combater e prevenir o abuso sexual infantil na internet; Antonio Labrador Jiménez, Chefe de Equipa da Comissão Europeia para o combate ao abuso sexual de crianças; Julie Guichard - Gestora de Assuntos Governamentais Europeus na Microsoft; e François-Xavier Bellamy, eurodeputado e Vice-Presidente do Grupo do Partido Popular Europeu (PPE) Como moderador esteve Paulo Cunha, chefe da delegação do PSD.Proteção de menores "está pior em todos os domínios"Zarzalejos acompanhou a preocupação de Luís Neves. Revelou que os conteúdos online são “mais violento, as vítimas mais jovens, as práticas hediondas e o negócio rentável”. Acresce” uma nova camada de preocupação que é a utilização da Inteligência Artificial (IA) na produção destes vídeos com crianças. Alertou para a “falta de cuidado com a exposição das crianças no mundo digital no qual os predadores estão à caça”, fazendo-se de amigos, conhecidos”. “Se me perguntarem se estamos melhor ou pior na proteção de menores, digo que está pior em todos os domínios. A resposta das autoridades é insuficiente, fragmentada e há falta de envolvimento das plataformas prestadoras de serviços, salvo raras excepções. Não se trata aqui se um conflito com os que defendem liberdades. É preciso maior consciencialização, responsabilizar os media sociais, reforçar os meios de detecção e eliminação desses conteúdos - o centro nevrálgico da Europol que faz esse trabalho tem só 17 pessoas! - e dar impulso ao acesso aos metadados. Porque esta discussão é sobre proteção de menores. Estamos a chegar a um ponto que nenhuma criança com um telemóvel está protegida de predadores”.Outro instrumento que as autoridades têm reivindicado é o acesso às comunicações encriptadas, medida recusada pelos empresas que querem garantir privacidade aos seus clientes. Em 2023, recorde-se, uma investigação conjunta da França e Holanda conseguiu quebrar o sistema de comunicações encriptadas EncroChat, “levando ao desmantelamento de varias organizações criminosas”, realçou Luís Neves.“Medidas de exceção” e a voz embargada“O que gostaríamos era que o acesso à informação atingisse, pelo menos, o mesmo patamar de instrumentos legais que já tivemos. Apelo veementemente às estruturas da UE que se debrucem sobre isto e que seja resolvido num futuro próximo e não demore anos. O crime organizado está aqui. Temos territórios que começam a ser ocupados por grupos criminosos. A Suécia que durante anos foi uma social democracia exemplar de segurança está a ter problemas de guerra com o crime organizado. O mesmo na Holanda e aqui na Bélgica com as mafias da droga. Que não se deixe degradar de tal forma a situação que seja o crime organizado a dominar a sociedade através da coação e da corrupção do Estado, de políticos, de magistrados, de jornalistas. Aí chegará o momento de medidas de exceção. E todos sabemos o que isso significa para a democracia”.Aqui, a voz do diretor da PJ ficou presa na garganta. Silêncio. “Digo isto de forma emocionada. Só com meios equilibrados podemos manter a nossa forma de vida, sair à rua com liberdade e tranquilidade, sem estar sujeitos às organizações criminosas. Não estou a pedir nada que não seja adequado e proporcional”.Na parte inicial da sua intervenção, Luís Neves já tinha lembrado a plateia que “os magistrados e os polícias que investigam não são criminosos. Só pretendem ter meios para trabalhar, cumprir a sua missão e defender os cidadãos”. Apelo a um novo quadro europeuRelembrou a Declaração de Lisboa aprovada numa cimeira na sede da PJ pelos chefes de polícia da UE a reivindicar a reposição só acesso aos metadados. “Foi um grito a todas as instâncias que olhem para nós como aqueles que necessitam desses meios. Não temos nada contra a defesa da privacidade individual, mas cada um de nós pode dar um pouco de si para proteger o todo. Apelo a soluções para que voltemos a ter acesso aos metadados e passemos a ter acesso às comunicações encriptadas. As organizações criminosas têm todos os meios de comunicação e nós não . Há uma desigualdade profunda. É dramático ver o crime organizado crescer, crianças abusadas, milhões de imagens difundidas e deixar os criminosos impunes. Quem defende extremismo da privacidade que pense em todos nós, nos milhares de vítimas. Deixo aqui este apelo lancinante para que cada um de vós reflita sobre as palavras que vos deixo”.No final da conferência, Ana Miguel Pedro sintetizou para o DN as preocupações dos participantes. “Cada imagem, cada ficheiro representa uma criança cuja vida foi violada, e uma responsabilidade que recai sobre todos nós. A dimensão do problema é alarmante: só em 2023, as autoridades europeias receberam mais de 1,3 milhões de denúncias de abuso sexual infantil online, envolvendo mais de 3,4 milhões de imagens e vídeos. A Europa tem de agir com a urgência e a determinação que esta realidade exige. O CDS no Parlamento Europeu quis trazer à mesma mesa as autoridades nacionais, a Comissão Europeia, a Europol, procuradores, tecnológicas e parceiros norte-americanos, para debater o abuso sexual infantil online e a resposta europeia a uma das maiores falhas institucionais do nosso tempo. Há unanimidade na necessidade de um acesso mais rápido e legítimo à prova digital, de uma cooperação transfronteiriça mais eficaz e de uma responsabilização clara das plataformas online. As respostas legais e operacionais têm de acompanhar o ritmo da evolução tecnológica, assegurando que privacidade e segurança não são princípios opostos, mas complementares. O debate evidenciou também a urgência de um novo quadro europeu de retenção de dados - legítimo, proporcional e eficaz - absolutamente fundamental para o combate ao crime organizado. Não se combate o crime organizado às cegas, nem se protege uma criança com as mãos atadas. Sem instrumentos legais claros, as autoridades enfrentam sistemas fragmentados e atrasos injustificáveis, enquanto os criminosos exploram as falhas e a incerteza jurídica”, destacou.