Proposta do Governo para calendários escolares está em discussão pública e afeta, em particular, o 1.º ciclo.
Proposta do Governo para calendários escolares está em discussão pública e afeta, em particular, o 1.º ciclo.Álvaro Isidoro / Global Imagens

Comunidade escolar não aprova proposta de calendário

Governo propõe que os alunos do 1.º ciclo sejam os que terminem mais tarde os próximos quatro anos letivos. Diretores, professores e pais querem calendário idêntico para todos os anos não sujeitos a exame.
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O Ministério da Educação (ME) abriu uma consulta pública com uma proposta de calendário escolar para os próximos quatro anos letivos, sugerindo o término no final do mês de junho (27 de junho, em 2025, e 30 de junho nos anos de 2026, 2027 e 2028), para os alunos do 1.º ciclo. Os de 2.º ciclo, 3.º ciclo e Secundário (exceto 9.º, 11.º e 12.º anos, sujeitos a exame) acabarão as aulas mais de duas semanas antes dos alunos de 1.º ciclo (antiga escola primária).

A proposta, principalmente no que se refere à diferença do número de dias letivos para o 1.º ciclo e à semelhança do que aconteceu nos anos anteriores, está a ser muito criticada pela comunidade escolar.
Sílvia Alves, mãe de uma aluna de 2.º ano, está contra o calendário escolar do 1.º ciclo e a ideia de “escola a tempo inteiro”. “Têm de ser crianças, têm de poder brincar e ter atividades ao ar livre. O calendário deveria ser igual ao do 2.º ciclo”, defende. A encarregada de educação (EE) descreve o cansaço extremo que a filha apresenta na reta final do ano letivo. “No ano passado, logo no início de junho já mostrava muito cansaço. A partir de um dado momento já se notava que estava a contar os dias. Ainda por cima via os mais velhos a descansar. Este ano já começou a manifestar cansaço e a perguntar quando terminam as aulas”, refere. A EE conta ainda que, a partir do dia 15 de junho, “já não há qualquer concentração”, não havendo, por isso, “qualquer benefício em arrastar o ano letivo até ao final do mês”. “Os outros países têm mais pausas do que nós, o que é benéfico para as crianças. Em vez de prolongar o ano, poderia haver atividades lúdicas das câmaras municipais fora do espaço-escola”, conclui.

Rui Silva, EE de uma aluna de 4.º ano, descreve a reta final dos últimos anos letivos como “extremamente penosos”. O cansaço começa em maio e até ao final do ano vai piorando. Esta situação levou-me, o ano passado, a deixar de levar a minha filha à escola depois de fazer os segundos testes do 2.º semestre. Faltou cerca de uma semana e meia às aulas. Estava em causa, no meu ponto de vista, a saúde mental da minha filha”, explica. Este ano, diz, a situação está a repetir-se e afeta “o superior interesse das crianças”. “Médicos, professores, diretores têm alertado para esta problemática nos últimos anos. A própria União Europeia diz que os alunos de 1.º ciclo, em Portugal, trabalham mais do que um adulto. Então, por que razão se continua a insistir num modelo que prejudica as crianças e não aporta benefício algum?”, questiona.

Últimas semanas são penosas para alunos e professores

Filinto Lima, presidente da Associação Nacional de Diretores de Agrupamentos e Escolas Públicas (ANDAEP), não vê vantagens no prolongamento do ano letivo para o 1.º ciclo. “As atividades letivas para deste ciclo são as últimas a terminar, em finais do mês de junho, sendo muitas vezes penoso para os alunos e professores as últimas duas semanas, pois alguns dos familiares já estão de férias (ou a estudar para os exames), o calor já aperta e alguns pais e encarregados de educação gozam o merecido descanso laboral, e até entram de férias com os filhos, em detrimento das aulas”, explica. Segundo o presidente da ANDAEP, as crianças manifestam cansaço, “principalmente nas duas últimas semanas de aulas”, levando os docentes a tentar desenvolver atividades lúdicas, “recorrendo às expressões, artes e jogos de modo a aumentar competências nestas áreas”. Algo que, conta , “o currículo deveria privilegiar mais, tendo em conta a altura do ano, principalmente atendendo ao clima, normalmente quente”.

Como alternativa ao término tardio das aulas para os alunos de 1.º ciclo, o responsável defende que estes deveriam terminar ao mesmo tempo que o 2.º e 3.º. E no caso de os pais não poderem ficar com os filhos em casa, Filinto Lima relembra haver “muitas autarquias que já dispõem de projetos com atividades desportivas e lúdicas que oferecem após final do ano letivo”.

Sem uma decisão ainda conhecida sobre o calendário escolar, Filinto Lima saúda estar “em discussão pública, dando oportunidade de promover alguma alteração, aconselhavelmente a mudança referida, após auscultação da Associação Nacional de Municípios e CONFAP, entre outras entidades”.

Portugal tem “um dos calendários letivos mais longos da Europa”

Alberto Veronesi, professor de 1.º ciclo e diretor do Agrupamento de Escolas de Santa Maria dos Olivais, Lisboa, aponta para o “Education at a Glance 2019” - relatório da OCDE, que coloca Portugal com “um dos calendários letivos mais longos da Europa para o ensino básico” - para defender a sua posição crítica. O responsável relembra que o relatório foi feito antes da pandemia de covid-19, “o que agudiza o problema”, pois, nessa altura, o calendário escolar era “mais curto uma semana”. “Não há evidências sólidas que indiquem que prolongar o ano letivo para os alunos do 1.º ciclo traga algum benefício para a aprendizagem dos alunos. Por esse motivo tendo a discordar do 1.º ciclo, juntamente com o pré-escolar, serem os últimos a acabar o ano letivo”, justifica.

Alberto Veronesi relata ainda que “ os alunos do 1º ciclo apresentam uma menor concentração e cansaço nas últimas semanas do ano letivo, sobretudo a partir da 2.ª semana de junho. “Isso afeta negativamente a capacidade de aprendizagem e é comum que os professores ajustem as planificações para terminarem os conteúdos a abordar até ao fim da primeira semana de junho, mais dia menos dia, optando por daí em diante proporem atividades mais lúdicas e sobretudo de consolidação de conteúdos”, avança.

Questionado sobre a possibilidade de manter a escola aberta até finais de junho apenas para atividades lúdicas, o diretor Agrupamento de Escolas de Santa Maria dos Olivais acredita ser “uma boa opção”, porque “as atividades lúdicas podem promover a socialização, o bem-estar e a criatividade dos alunos, além de complementarem a aprendizagem de forma mais leve e divertida”. Para o responsável, o ano letivo formal deveria terminar antes de 10 de junho. Contudo, diz ser “importante considerar que as necessidades dos alunos variam e que alguns podem beneficiar de um ano letivo um pouco mais longo para consolidação de conteúdos”. “No entanto, isso deve ser feito de forma individualizada e com acompanhamento adequado”, sublinha.

Alberto Veronesi pede para que seja considerada “a necessidade de descanso dos alunos, especialmente no 1.º ciclo, e a procura de um equilíbrio entre o tempo dedicado à aprendizagem e o tempo livre para outras atividades”. “Nesse sentido, considero muito positivo a consulta pública que o Governo está a fazer. É fundamental que a comunidade escolar participe da discussão sobre o calendário letivo, incluindo pais, professores, alunos”, afirma. Para Alberto Veronesi, qualquer alteração ao calendário escolar deve ser acompanhada e monitorizada para perceber se os alunos beneficiam ou se são prejudicados com esse alargamento ou diminuição. “O que não se pode usar como ‘desculpa’ para o alargamento é os pais não terem onde pôr os filhos. Assumir que a escola tem de fazer esse papel é assumir que a sociedade está falida, naquilo que é o estado social”, acentua.

“Pausas letivas deveriam ser mais frequentes mesmo se mais curtas”

Paulo Guinote, professor de 2.º ciclo e autor do blogue “A Educação do Meu Umbigo”, onde soma milhões de visualizações, propõe várias mudanças na proposta de calendário do ME. “Ao contrário de quem acha que se devem prolongar as semanas de aulas, considero que os miúdos mais novos já estão completamente saturados, em especial quando elas se sobrepõem a atividades diversas e a pausas para a realização de provas. A aprendizagem não se desenvolve a um ritmo constante e muito menos permite a continuidade do esforço, quando a saturação já é evidente”, revela.

Contudo, para o docente, esta realidade é mais evidente no 1.º ciclo, mas afeta todos os alunos, indicando ainda outras problemáticas na proposta do Governo. “Ao longo do ano, mais do que a questão dos semestres ou períodos, deveria discutir-se até que ponto é produtivo, do ponto de vista do desempenho dos alunos, ter mais de oito semanas de aulas, sem fazer uma pausa”, sustenta. Na sua opinião, “o primeiro período é, em regra, muito longo, assim como os semestres, quando se opta por essa divisão”. “As pausas letivas deveriam ser mais frequentes, mesmo se mais curtas. Deveria também existir uma paragem das aulas, uma semana de pausa e depois um período para a realização das provas de aferição e provas finais (9.º ano)”, conclui.

A proposta de calendário escolar para os próximos quatro anos letivos também é criticada pelo Movimento de Professores em Monodocência (MPM). Estes professores (1.º ciclo) são taxativos sobre as desvantagens do prolongamento do ano letivo para as crianças e citam vários estudos para defender a sua posição. O estudo “Organização escolar: o tempo”, do Conselho Nacional de Educação (CNE), é um deles. “Como se demonstra em vários passos deste estudo, mais tempo escolar não significa melhor tempo de aprendizagem. Mesmo que a ideia de escola a tempo inteiro possa corresponder a uma necessidade social a que a escola não poderá ficar indiferente, tal não pode transformar-se em sala de aula a tempo inteiro, situação que poderá ter como consequência menos bem-estar, ambientes adversos à missão da escola, mais indisciplina, mais insucesso escolar”, pode ler-se no documento citado.

Para o MPM, a proposta do ME, em consulta pública, é “um pró-forma pretensamente democrático pelo que os contributos e sugestões em relação à mesma, serão meramente decorativos”. Critica ainda o facto de não terem sido escutados docentes de 1.º ciclo, quando foram ouvidos “o Conselho das Escolas, a Associação Nacional de Diretores de Agrupamentos e Escolas Públicas e a Associação Nacional de Dirigentes Escolares”.

Sobre a proposta, a conclusão do movimento é perentória. “A primeira e óbvia constatação a retirar desta proposta, é a de que não coloca em primeiro lugar nem o superior interesse das crianças nem o dos pais”, afirma o MPM. Os professores adiantam que este é o entendimento de “vários estudos, bem como opiniões de pedagogos, médicos e psicólogos de renome”. Relembram, assim, as palavras de Eduardo Sá, psicólogo clínico e psicanalista e autor de vários livros: “Será razoável que haja crianças que comecem a trabalhar às 08h00 e terminem de trabalhar às 20h00, todos os dias? Será sensato que não ponderemos as consequências deste novo trabalho infantil.”
O MPM faz ainda referência ao estudo da OCDE (“Education at a Glance 2019”), que refere que “Portugal é o país da Europa em que as crianças passam mais tempo na escola”.

O comunicado do MPM termina com apelo a mudanças. “A resposta não é, não pode, não deve ser, o alargamento do horário de funcionamento das escolas, a manutenção da já excessiva permanência das crianças mais novas na escola. E não é, nem do ponto de vista do superior interesse da criança, nem do ponto de vista das suas aprendizagens (e portanto pedagógico), nem do ponto de vista dos pais que querem assumir a sua função de pais. É apenas e unicamente a resposta mais fácil daqueles cujas responsabilidades e capacidades não estão à altura de atender a estas exigências”, escreve o MPM.

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