Sabemos que as cores podem ser quentes ou frias. E que há escolhas cromáticas mais adequadas ao calor ou ao frio. No verão, os avós aconselham a evitar a t-shirt preta e a preferir o linho branco, porque a roupa clara reflete o sol e aquece menos o corpo, enquanto quem veste de escuro sabe que sofrerá mais com a absorção do calor. Aquilo de que talvez não desconfiássemos, ou pelo menos pouca gente valoriza, é que a mesma lógica vale para os carros. E que a cor que escolhemos para o nosso carro pode ter um impacto considerável no aumento das temperaturas urbanas. Sobretudo quando estacionados horas a fio, debaixo de sol, numa grande cidade como Lisboa.Um estudo conduzido por uma equipa de investigadores do Instituto de Geografia e Ordenamento do Território (IGOT), da Universidade de Lisboa, veio agora confirmar e quantificar esse impacto. E as conclusões chegam como um bafo de ar quente, difíceis de ignorar: os carros de cores escuras podem fazer aumentar a temperatura do ar em redor até 3,8 graus Celsius, em comparação com o asfalto adjacente, segundo a investigação publicada na revista científica City and Environment Interactions, que chama a atenção para o papel até agora negligenciado dos automóveis estacionados no aquecimento urbano.Tradicionalmente, uma Ilha de Calor Urbana — fenómeno em que áreas urbanas apresentam temperaturas superiores às áreas rurais circundantes — é explicada sobretudo pela falta de vegetação, elevada densidade de construção e emissão de poluentes. Mas este novo estudo mostra que os carros parados, pelo seu número, cor e materiais, também são elementos ativos no clima das cidades.“Nós costumamos olhar para o impacto dos carros, mas limitado ao nível da poluição, da emissão de gases poluentes, o que também é importante e que vai ter influência no calor urbano; mas estamos a esquecer que, tal como os edifícios, também os carros são volumes feitos de determinados materiais e com diferentes cores que existem dentro da cidade e influenciam o calor urbano”, explica ao DN Márcia Matias, co-autora do estudo. “Agora, imagine milhares de carros estacionados por toda a cidade, cada um a funcionar como uma pequena fonte de calor ou um escudo térmico. A cor deles pode realmente mudar a sensação térmica das ruas e o conforto térmico das pessoas nesses espaços”, acrescenta.Para este estudo, os investigadores começaram por testar dois veículos, um branco e um preto, estacionados ao sol durante várias horas. Sob temperaturas de verão de 36 °C, o carro escuro aqueceu o ar em redor até 3,8 °C acima da temperatura registada no asfalto circundante. Já o veículo claro, por refletir grande parte da radiação solar, não causou aumento significativo – “pinturas escuras refletem apenas 5 a 10 % da luz solar, absorvendo a restante, enquanto tintas brancas podem refletir até 85 %”, ilustra Márcia Matias. Além disso, as superfícies metálicas finas dos carros aquecem e arrefecem muito mais rapidamente do que o asfalto, o que intensifica os “pontos quentes” nas ruas durante o dia..É possível arrefecer Lisboa? Um grupo de especialistas acredita que sim e vai propor soluções. Em Lisboa, os números dão escala ao problema: estima-se que mais de 700 mil veículos circulam diariamente na cidade, dos quais cerca de 340 mil pertencem a residentes. Nos bairros centrais, os automóveis podem ocupar até 10 % da área viária, alterando o balanço térmico global. O impacto é sentido sobretudo pelos peões, expostos diretamente a estes microclimas mais quentes. O que, numa altura em que as ondas de calor são cada vez mais frequentes, pode agravar os riscos para a saúde pública, sobretudo em áreas densamente urbanizadas. No mínimo, implicará no desconforto térmico, avisa a investigadora: “Se tivermos uma grande mancha de carros escuros, lidamos com temperaturas 3 ou 4 graus acima do normal. Isso sente-se no corpo de quem circula na rua”. E dá um exemplo comum: “Sabe quando passa por um carro estacionado num dia quente e sente o calor a irradiar dele? Isso é real. Se nós estivermos ao sol ao lado de um carro o calor deixa-nos desconfortáveis.”Como mitigar este impacto?Eliminar carros das cidades não é realista, admite a autora. Mas há medidas que podem mitigar o problema, diz. Desde a “instalação de pérgulas ou coberturas refletivas em parques de estacionamento”, a criação de zonas de sombra em ruas com maior concentração de veículos e, no futuro, eventualmente até políticas fiscais de incentivo ao uso de cores claras nos automóveis. Uma discussão que se mantém pertinente com os carros elétricos, sublinha Márcia Matias: “Carros elétricos resolvem a questão da poluição, mas continuam a ter o mesmo impacto térmico que um carro a combustão, porque são feitos dos mesmos materiais”.Os próximos passos da investigação da equipa de Márcia Matias, financiada pela [ainda existente] Fundação para a Ciência e Tecnologia, passam pela “contagem exata”, a partir de dados de satélite, “do número de carros dentro da cidade, não só de carros estacionados, mas também dos carros em movimento dentro da cidade”; e pelo avanço para “modelações tridimensionais que permitem simular o efeito dos carros estacionados em diferentes condições: meteorologia, localização na cidade e até a orientação dos veículos”. .Lisboa arrisca ter 50 dias por ano com mais de 35 graus. É preciso transformá-la numa ‘cidade-esponja’.Em paralelo, acrescenta, dois parques de estacionamento estão a ser monitorizados, um com carros e outro sem, para comparar padrões de aquecimento e arrefecimento.Com esses resultados, será possível mapear zonas críticas de calor urbano associadas a estacionamentos. As modelações tridimensionais vão também “servir para testar cenários alternativos e propor medidas que ajudem a mitigar o calor nas áreas mais vulneráveis da cidade”.De resto, os investigadores defendem que futuros modelos urbanos considerem explicitamente os carros estacionados e em circulação como variáveis térmicas das cidades. Isso permitiria prever melhor a evolução da exposição ao calor em diferentes cenários e fundamentar políticas de adaptação. “Os carros não são apenas meios de transporte, são elementos móveis que alteram o clima urbano e devem ser incluídos nas estratégias para cidades mais resilientes ao calor.”.Estudo: ondas de calor estão a acelerar o envelhecimento humano