A escritora Iara Lemos (direita) foi recebida pela ministra conselheira da embaixada portuguesa na Santa Sé, Lúcia Portugal Núncio.
A escritora Iara Lemos (direita) foi recebida pela ministra conselheira da embaixada portuguesa na Santa Sé, Lúcia Portugal Núncio.Direitos reservados

Com apoio de Portugal no Vaticano, investigadora desenvolve IA para proteger mulheres contra a violência

Batizada de 'Eleonor', tecnologia é aplicada numa app, em fase de testes, que foi apresentada na embaixada portuguesa na Santa Sé e no dicastério de Tolentino Mendonça.
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Uma assistente virtual que poderá ser acionada por qualquer mulher em situação de perigo, de forma a avaliar riscos, facilitar envio de alertas de emergência, além de fornecer suporte emocional inicial e indicar recursos de apoio. Estas são algumas das funções da 'Eleonor', a ferramenta de Inteligência Artificial que vai funcionar na aplicação móvel 'Mais Mulher'.

O projeto é liderado pela investigadora, jornalista e escritora brasileira Iara Lemos, será focado em Portugal, inicialmente, com previsão de lançamento para novembro de 2026 e expansão para outros países europeus e Brasil. Iara é mestranda em Estudo Sobre as Mulheres - Gênero, Cidadania e Desenvolvimento pela Universidade Aberta de Lisboa, além de ter sido indicada pelo Departamento de Estado dos Estados Unidos para o colegiado de Inteligência Artificial da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE).

Além da proximidade pessoal com Portugal, Iara Lemos cita deficiências no combate à violência contra a mulher como motivo para escolha do país para o arranque do projeto, que está em fase de testes e captação de recursos, com uma equipa de trabalho de 14 pessoas em Portugal e no Brasil.

"Portugal não tem tipificação de femicídio. Já conseguimos avançar bastante nos últimos tempos na proteção à mulher, mas ainda é muito frágil a legislação e os apoios prestados. Há poucos locais para onde recorrer em casos de violência. As esquadras não têm preparação para receber a mulher. Uma tentativa de femicídio entra em violência doméstica, que pode ter um aspeto mais amplo", justifica.

Apoio no Vaticano

A app 'Mais Mulher' e as funções da 'Eleonor' foram apresentadas na Santa Sé. "O Vaticano foi escolhido sobretudo pelo peso da Igreja Católica em Portugal, esta cúpula que conversa com a população portuguesa frente a frente e tem poder de fazer a diferença nesse cenário", explica Iara Lemos ao DN.

A investigadora teve uma reunião com o secretário do Dicastério para a Cultura e a Educação, bispo Paul Tighe, o 'número dois' do cardeal Tolentino Mendonça neste departamento. "Ele [Tolentino Mendonça] não pôde me atender pessoalmente, pois o Papa ia viajar para a Turquia, mas me encaminhou, e escreveu mesmo que era um pedido em nome dele, para essa reunião", diz Iara Lemos. "O apoio da Igreja é fundamental. Saí muito feliz, o monsenhor Tighe é tido como o cérebro da tecnologia no Vaticano", completa.

Foi também no Vaticano que o governo português tomou conhecimento da iniciativa, durante uma reunião da investigadora com Lúcia Portugal Núncio, ministra conselheira da embaixada portuguesa na Santa Sé. "A embaixada mostrou-se à disposição para se colocar nas conversas sobre o projeto, porque vamos precisar de apoio, obviamente, do Governo e das autoridades".

'Mais Mulher'

Segundo Iara, a aplicação móvel vai ser mais do que uma ferramenta de segurança. "A mulher entra na app e tem um espaço de acolhimento imediato para as diferentes formas de vunerabilidade pelas quais ela está a passar naquela momento. Seja a necessidade de chamar um órgão de polícia, seja buscar um atendimento psicológico, de saúde. A vulnerabilidade engoloba diferentes setores que mexem com a vida da mulher. Se um não vai bem, os outros tendem a desequilibrar".

Ao entrar na app, a 'Eleonor' vai poder detetar, a partir da 'conversa' iniciada pela utente, os níveis de risco aos quais ela está sujeita, distinguindo se há, por exemplo, ameaças externas, ou até ideias suicidas, para ativar os protocolos de segurança mais adequados.

Iara Lemos explica que a aplicação vai usar geolocalização inteligente para identificar e sugerir as respostas mais próximas da vítima, como centros de apoio à mulher e esquadras, considerando, com a análise feita pela IA, a viabilidade de deslocação aos locais. Além disso, a app vai ter um sistema de envio de alertas mais fácil, um tipo de "botão de emergência", com ajuda de uma imagem que crie um ecrã fantasma, para que o agressor, caso esteja perto do telemóvel, não consiga ver o que a vítima está fazer. As respostas poderão ser, ainda, direcionamentos da utente para ajuda profissional jurídica ou terapêutica.

Iara Lemos é autora do livro-reportagem "A Cruz Haitiana”, que mostra como a Igreja Católica escondeu, no Haiti, religiosos acusados de abuso sexual contra crianças, e investiga, inclusive, o antigo padre português Frederico Cunha, condenado à prisão pelo assassinato de um rapaz de 15 anos, na Madeira, em 1992, e que estará a viver no Brasil.

O seu trabalho mais recente é o livro 'O Silêncio das Gaiolas', que traz relatos de mulheres vítimas de violência - incluindo o seu, na primeira pessoa - e que tem origem na investigação que está a conduzir, no âmbito do seu mestrado, sobre tráfico humano de mulheres. Na investigação, descobriu redes criminosas que operam em Portugal e em Espanha, com maior atuação na Grande Lisboa e também na região de Braga, perto da fronteira.

"Quando a gente conseguir virar a chave e trazer a tecnologia para a proteção das mulheres hoje, outras gerações vão ser beneficiadas. Estamos plantando sementinhas. Nós, que somos mulheres que vemos e vivemos violência, se conseguirmos deixar a semente para que ela cresça de forma saudável, vamos ter um futuro melhor. Quando se fala em feminismo e políticas para as mulheres o caminho é longo e árduo", diz a escritora.

A escritora Iara Lemos (direita) foi recebida pela ministra conselheira da embaixada portuguesa na Santa Sé, Lúcia Portugal Núncio.
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