Carlos Alexandre decide hoje futuro de Berardo, suspeito de burla e fraude fiscal
Justiça Polícia Judiciária fez ontem buscas e deteve o empresário madeirense, que será hoje presente a juiz. Carlos Santos Ferreira, antigo presidente da Caixa e do BCP à data dos eventos, também terá sido buscado, estando em causa suspeitas de gestão danosa.
Qual dívida? Quando a verdade vier ao de cima vão ter de me pagar a mim. Eu é que estou a emprestar à CGD um terço da minha pensão." Assim falava há um ano Joe Berardo, madeirense que fez fortuna na África do Sul, foi herói e mecenas cultural do país e conseguiu sentar-se entre as estrelas da banca nacional. Em vésperas de fazer 77 anos, foi ontem detido por suspeitas de burla, fraude fiscal e branqueamento de capitais, tal como o seu advogado e braço direito, André Luiz Gomes, depois de cinco anos a lidar com investigações e suspeitas relativas aos anos em que se sentava à mesa com banqueiros e gestores de topo. O empresário e o advogado passaram a noite no Estabelecimento Prisional de Lisboa, sendo hoje ouvidos pelo juiz de instrução Carlos Alexandre, que decidirá a medida de coação a aplicar (sendo a máxima a prisão preventiva).
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Agora sob suspeita, segundo a nota da Judiciária enviada aos media, estão operações que incidem "sobretudo num grupo económico que, entre 2006 e 2009, contratou quatro operações de financiamentos com a Caixa Geral de Depósitos, no valor de cerca de 439 milhões de euros", que terá causado "um prejuízo de quase mil milhões" à CGD, ao Novo Banco e ao BCP. Os empréstimos contraídos junto do banco público, à época liderado por Carlos Santos Ferreira, presidente da Caixa Geral de Depósitos de 2005 a 2008, e Armando Vara, então vice no banco público (hoje a cumprir cinco anos de pena de prisão no caso Face Oculta), terão servido para Berardo comprar ações do BCP (servindo as próprias ações como garantia). Depois de uma guerra de poder contra o fundador do banco, Jardim Gonçalves, que acabou por afastar também o desafiador, Paulo Teixeira Pinto, o ainda comendador Joe Berardo chegou a ser, com 7% do capital, dos maiores acionistas do Millennium - nos anos em que foi liderado por Santos Ferreira (2008-2012), com Vara e Paulo Macedo como vice-presidentes.
Carlos Santos Ferreira terá sido também alvo de buscas. De acordo com a TVI, o ex-banqueiro terá sido, a par de Berardo e Luiz Gomes, constituído arguido durante as buscas domiciliárias ontem realizadas pela Unidade Nacional de Combate à Corrupção. Em causa, quanto ao ex-responsável da Caixa e depois do BCP, estarão, segundo a mesma fonte, os processos de concessão de crédito a Berardo, configurando suspeitas do crime de gestão danosa.
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Créditos sem garantia
Se os empréstimos contraídos pelo madeirense começaram por ser livres de garantias, em incumprimento nos créditos contraídos com os três bancos, Berardo acabou por ter de associar a esses empréstimos os 75% da associação que detinha a coleção de arte exposta no museu a que deu o nome, no CCB.
Em 2016, arrancava a investigação que culminou com a detenção de Berardo, sendo identificados "procedimentos internos em processos de concessão, reestruturação, acompanhamento e recuperação de crédito, contrários às boas práticas bancárias e que podem configurar a prática de crime", detalha o comunicado da PJ. Uma investigação que já tinha produzido efeitos: em 2017, um relatório da Inspeção-Geral das Finanças, atribuía os prejuízos de 245 milhões da Fundação Joe Berardo a "atividade financeira desenvolvida", sendo identificadas despesas "sem conexão com as finalidades de cariz social da fundação/IPSS e/ou em benefício direto de familiares do fundador", o que levou o governo a retirar o estatuto de utilidade pública à Fundação. E a 31 de julho de 2019, as obras de arte moderna do Museu Berardo, num valor estimado que ronda os 500 milhões de euros, foram arrestadas. Todas as 2200 obras de arte.
Dos diamantes à arte, o comendador banqueiro
Colecionador apaixonado, feito comendador em 1985 por Ramalho Eanes e agraciado com a Grã-Cruz da Ordem do Infante D. Henrique em 2004, por Jorge Sampaio, José Manuel Rodrigues Berardo nasceu no Funchal, a 4 de julho de 1944, e ainda não tinha os 14 anos feitos quando começou a trabalhar, na Madeira Wine Company. Na mira, como outros tantos madeirenses, levava a África do Sul, para onde abalou mal atingiu a maioridade, fazendo de Joanesburgo casa e passando a responder pelo mais conveniente à pronúncia local Joe.
O emprego que arranjou numa loja de produtos agrícolas foi caminho para a primeira sociedade que fez; e da loja às minas foi um salto, que Berardo deu antecipando a subida do preço do ouro: deitou mão a minas desativadas e dedicou-se a reciclar desperdícios, reiniciando a exploração que em poucos anos o punha na liderança como dono de "várias refinarias em minas de ouro e de diamantes, alargando os seus negócios ao mercado bancário e ao mercado bolsista", conforme relata na página do Museu Berardo. A sua Egoil Consolidated Mines seria uma das 100 maiores empresas sul-africanas.
A veia para os negócios já o pusera na rota do mármore e do granito, do petróleo e das telecomunicações. E as raízes madeirenses tinham-lhe posto no caminho o mais tarde amigo e sócio (Siet Savoy, com três hotéis na Madeira, e Empresa Madeirense de Tabacos) Horácio Roque. Foi também em Joanesburgo que se casou, com Carolina da Conceição, de quem teve dois filhos, Renato e Cláudia. Foi nomeado presidente do Bank of Lisbon no arranque dos anos 80 e apesar de ter antecipado, em 1989, que "nunca voltaria para Portugal", seria aqui que tentaria a ambição de se tornar o "senhor Gulbenkian do século XXI". Colecionador apaixonado, das primeiras coleções de selos, postais e caixas de fósforos fez as raízes de uma coleção de arte digna desse nome - para o que contou com a ajuda de Francisco Capelo, que tomou por missão ajudar Berardo a transformar e dar sentido e unidade ao seu espólio, conseguindo que a sua coleção se tornasse numa referência mundial. "É uma das melhores coleções privadas da Europa, superior à de Guggenheim", escreveria o Independent e concordariam críticos de arte mundialmente conceituados.
Em 1997, inaugurou o Museu de Arte Moderna e dez anos mais tarde, por acordo com o governo, instalaria a sua coleção no Centro Cultural de Belém, sob o nome Museu Berardo de Arte Moderna e Contemporânea, com obras de incrível valor e que já foram integradas em exposições dos mais importantes museus do mundo, incluindo o Centro Georges Pompidou, em Paris, a Tate Gallery, em Londres, o MoMA e o Guggenheim, em Nova Iorque, e o Museu Rainha Sofia, em Madrid.
Definitivamente instalado em Portugal, expandiu o seu império aos vinhos, com a Quinta da Bacalhôa em Azeitão - propriedade da fundação a que deu o nome, um dos braços com que manobrava as suas atividades. Com o outro, a Metalgest, dedicava-se aos negócios puros e duros, incluindo investimentos em bolsa e participações nas maiores empresas portuguesas - incluindo Cimpor e Teixeira Duarte -, mas também na banca (BCP, com o próprio banco, a CGD e o BES a financiar a aquisição de uma participação que chegou aos 7%), nas telecom (esteve envolvido na OPA falhada da Sonae à PT) e até no futebol, tendo tentado ficar com o controlo da SAD do Benfica através de uma OPA ("ajudar o clube do coração", nas suas palavras).
De paixões, resta-lhe olhar a arte que ficou sediada no CCB, a associação a um museu em Estremoz dedicado ao azulejo, o Museu Art Deco (Lisboa), a Quinta da Bacalhôa (Setúbal), o jardim Monte Palace (Funchal), o Bacalhôa Buddha Eden (Bombarral) e o Aliança Underground Museum (Anadia). E as condecorações recebidas do Estado português, que arriscou perder depois das declarações - e sobretudo da postura - ao Parlamento. Entre a pandemia e uma recomendação do relator e ex-deputado Mota Amaral para que se arquivasse o processo disciplinar, o Conselho das Ordens Honoríficas ainda não decidiu o caso instaurado em 2019. com Elisabete Tavares/Dinheiro Vivo
Raio-X da operação
Buscas e detenções
Suspeitas de burla, fraude fiscal e branqueamento de capitais são resultado da investigação que arrancou em 2016 e que ontem levou à detenção de Joe Berardo e do seu advogado e braço direito, André Luiz Gomes. A PJ anunciou que, através da Unidade Nacional de Combate à Corrupção e com apoio de outras unidades, "em inquérito a correr termos no DCIAP, desencadeou durante esta terça-feira, em Lisboa, Funchal e Sesimbra, uma operação no âmbito de investigação, em curso, pela suspeita da prática dos crimes de administração danosa, burla qualificada, fraude fiscal e branqueamento".
De acordo com a TVI, também a residência de Carlos Santos Ferreira, antigo presidente da Caixa Geral de Depósitos e do BCP, foi alvo de buscas.
Suspeitas em causa
De acordo com o comunicado enviado pela PJ, a investigação "identificou procedimentos internos em processos de concessão, reestruturação, acompanhamento e recuperação de crédito, contrários às boas práticas bancárias e que podem configurar a prática de crime". A operação da PJ incidiu "sobretudo num grupo económico, que entre 2006 e 2009, contratou 4 operações de financiamentos com a CGD, no valor de 439 milhões". A PJ adianta que o grupo económico "tem incumprido contratos e recorrido aos mecanismos de renegociação e reestruturação de dívida para não a amortizar" e "causou um prejuízo de quase mil milhões à CGD, ao NB e ao BCP, tendo sido identificados atos passiveis de responsabilidade criminal e de dissipação de património".
Meios em ação
Ainda de acordo com informação avançada por esta autoridade, foram efetuadas 51 buscas - 22 domiciliárias, 25 não domiciliárias, três em instituição bancária e uma num escritório de advogados. A operação envolveu 180 profissionais: 138 da PJ, 26 da AT, nove do MP e sete do JIC.