Decisão foi tomada no último dia em funções do presidente Emídio Sousa
Decisão foi tomada no último dia em funções do presidente Emídio Sousa(Rui Oliveira/Global Imagens)

Adjudicação de 671 mil euros pela Câmara da Feira dá queixa no MP

Deu entrada no Ministério Público uma denúncia anónima contra a Câmara de Santa Maria da Feira por atribuição de serviços de limpeza a empresa supostamente “pré-falida” e com “sede fictícia”. Vereadora disse ao DN que contrato não existia, mas assinou-o 24 horas depois.
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Uma queixa de um “grupo de cidadãos” contra a Câmara Municipal de Santa Maria da Feira foi recebida na quinta-feira, dia 22, no Departamento Central de Investigação e Ação Penal do Ministério Público (MP), mostra um documento a que o DN teve acesso. Alega-se que esta autarquia do distrito de Aveiro “não salvaguardou o interesse público” na decisão de adjudicar à empresa Soma Pioneira serviços diários de higiene e limpeza para o Agrupamento de Centros de Saúde Feira/Arouca. A decisão foi tomada em reunião de Câmara de 29 de janeiro, no último dia em funções do presidente Emídio Sousa, que agora tem o mandato suspenso.

A queixa é anónima e ficou registada no MP com o número 339/24. Segundo os seus autores, a Soma Pioneira não poderia ter sido escolhida porque se encontra “tecnicamente pré-falida”, com prejuízos declarados de 18,2 milhões em 2021 e de 2,6 milhões em 2022. Diz-se que a empresa não tem “equipamentos de limpeza suficientes” e “não tem funcionários” — apenas três empregados, um dos quais é o gerente, Ivo Filipe Sá da Silva. A situação de prejuízo era verdadeira à data de 31 de dezembro de 2022, segundo a base de dados empresarial “Informa D&B”, consultada pelo DN.

O “grupo de cidadãos” diz ter tomado conhecimento destes factos “através da leitura das atas da Câmara”. “Mais estranho é o município ter conhecimento de que a empresa está insolvente tecnicamente e ter adjudicado na mesma, não o podendo fazer porque sabe que a empresa está com capitais negativos, em total risco de incumprimento contratual”, lê-se.

A adjudicação tem o valor de 545 mil euros, acrescidos de IVA, o que perfaz cerca de 671 mil euros. Foi decidida depois de um concurso internacional que teve nove propostas, sendo a da Soma Pioneira a de valor mais baixo. Em causa está a limpeza de 18 Unidades de Saúde Familiar, que abrangem mais de 154 mil utentes, diz a denúncia.

Duas alegações em especial chamam a atenção. Uma é a de que a Soma Pioneira, criada em 2018, até hoje “só fez contratos” públicos com a União das Freguesias de Canedo, Vale e Vila Maior e com a empresa municipal Feira Viva, da Câmara da Feira, ambas lideradas pelo PSD. O “Portal Base”, site oficial da contratação pública, mostra oito contratos com aquelas duas entidades entre 2019 e 2024 no valor total de cerca de 955 mil euros sem IVA. A outra alegação é de que a morada da sede da Soma Pioneira “é fictícia” e corresponde a “um apartamento onde reside um casal de militantes do PSD”, o que o DN não conseguiu confirmar.

Contactada pelo DN no início da semana passada, a vereadora Sónia Azevedo, responsável pelos pelouros de Administração e Finanças, sugeriu que quaisquer acusações seriam prematuras, uma vez que a decisão de adjudicar ainda não correspondia a qualquer compromisso formal. “A decisão tomada pela Câmara foi a de adjudicação e não de realização de um contrato” com a Soma Pioneira, pelo que tudo estaria em “fase pré-contratual”, alegou a autarca.

Acrescentou que seria feita a “habilitação do adjudicatário” e “após apresentação de todos os documentos previstos no Código dos Contratos Públicos” é que a Câmara assinaria contrato. No entanto, o “Portal Base” mostra que o contrato já existe: tem duração de 10 meses e foi assinado a 21 de fevereiro. Ou seja, 24 horas depois daquelas declarações da vereadora ao DN.

A Câmara de Santa Maria da Feira é liderada pelo PSD com maioria absoluta e tem como presidente em exercício Amadeu Albergaria, em substituição de Emídio Sousa, que presidiu ao município desde 2013 e neste momento tem o mandato suspenso por concorrer a deputado à Assembleia da República nas listas por Aveiro da Aliança Democrática (PSD/CDS-PP/PPM). A suspensão do mandato foi votada a 29 de janeiro em reunião de Câmara, precisamente na mesma ocasião em que em que o executivo municipal adjudicou serviços à Soma Pioneira.

Ao DN, o advogado especialista em Direito Administrativo e Fiscal José Pedro Águas explicou que “uma empresa sem meios financeiros e humanos para prestar o serviço contratado nunca pode sequer ser admitida a um concurso público”. Com a ressalva de que teria de estudar o caso concreto para ter uma opinião definitiva, o jurista acrescentou que à partida “não há matéria criminal” na denúncia apresentada ao MP, mas deteta neste caso "falta de transparência e eventual escolha de contratantes por motivos não ligados à defesa do interesse público”.

A vereadora Sónia Azevedo sublinhou que “todos os procedimentos de contratação pública realizados pelo município são efetuados no estrito cumprimento” da lei. Questionada sobre se existe algum conflito de interesses por parte do executivo municipal da Feira relativamente à Soma Pioneira, a vereadora Sónia Azevedo não negou, antes respondeu que tal “não é do conhecimento da Câmara Municipal”. Disse também que “desconhece” se a morada da Soma Pioneira é igual à de elementos do PSD. “Tal informação não é pertinente nem pode ser ponderada para efeitos de realização de procedimentos de contratação pública”, argumentou. O DN contactou a Soma Pioneira por correio eletrónico, mas não obteve resposta.

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