Abortar nos Açores: números indiciam discriminação, Governo nega
“Perguntaram-me várias vezes, no hospital, por que queria interromper a gravidez. Houve até um médico que disse: ‘Sabe que há métodos contraceptivos?’. Tipo ‘está aqui porque é uma maluca’. E uma médica perguntou se tinha a certeza que queria abortar, se já tinha filhos. Tive de dizer que sim, já tinha dois filhos. Senti que tinha de dar mais explicações do que era suposto, que estavam a questionar a minha decisão. Foi muito desagradável todo o processo. Acho que se voltasse a ficar grávida sem querer não ia ao hospital, contactaria diretamente a Clínica dos Arcos [único estabelecimento privado licenciado para efetuar interrupções de gravidez em Portugal, situado em Lisboa]. Sei que tenho o direito na lei e não me deveria deixar subjugar, mas não queria passar pela mesma montanha russa emocional.”
A voz é de uma mulher de 44 anos, açoriana, residente em Ponta Delgada, na ilha de São Miguel - chamemos-lhe Teresa. O relato diz respeito ao Hospital do Divino Espírito Santo (HDES), naquela cidade, em junho/julho de 2023, quando no arquipélago de 241 mil habitantes o único, dos três hospitais existentes, onde se fazia interrupção de gravidez (IG) até às 10 semanas por decisão exclusiva da mulher era o da Horta, no Faial. Sendo as mulheres de São Miguel, a ilha mais populosa (137 220 residentes), enviadas para Lisboa, numa viagem de 1500 quilómetros, para a Clínica dos Arcos.
Seria esse então o destino de Teresa, que teve de esperar duas semanas, com perguntas e comentários despropositados por parte de profissionais de saúde, até à consulta prévia (a primeira consulta do processo de IG), a qual, de acordo com o legislado, tem de ocorrer até cinco dias a partir do primeiro contacto com o sistema de saúde. Após o que, e à beira do prazo limite das 10 semanas, pôde enfim solicitar que o hospital lhe marcasse uma viagem para Lisboa – em circunstâncias que relatou ao DN como sendo de “absoluta falta de privacidade”, num processo que qualificou de “horrível”.
Tal dificuldade de acesso – a enorme distância mais tudo o que essa distância implica, como a necessidade de faltar ao trabalho ou à escola e dar uma justificação aos próximos, aliados ao ambiente de reprovação que Teresa descreve (e que um obstetra da Horta relatou ao DN em novembro de 2023 como sendo comum nos Açores) –, a um cuidado de saúde garantido pela lei da República será a melhor hipótese explicativa para o facto de a Região Autónoma dos Açores registar há muito as mais baixas taxas de aborto do país, enquanto, ao mesmo tempo, tem a mais alta taxa de natalidade em adolescentes.
Tratando-se a gravidez adolescente, por definição, de uma gravidez não planeada nem desejada, é um dos melhores indicadores da dificuldade de acesso ao aborto legal e seguro. Em 2023, a taxa de natalidade em adolescentes nos Açores foi de 10,9 por mil, quase o dobro da taxa nacional (6,4), e mais do dobro da verificada na Região Autónoma da Madeira (4,2).
Curiosamente, a taxa de aborto legal dos Açores – calculada pelo DN para 2023 em função do número de mulheres em idade fértil (15-49 anos) – foi justamente, nesse ano, 60% mais baixa que a da Madeira: 2,91 por mil na primeira região, 4,91 por mil na segunda. Ambas bastante inferiores à taxa nacional, que a Direção Geral de Saúde (DGS) calculou em 7,7 para o mesmo ano – incluindo todos os tipos de IG, não apenas até às 10 semanas.
Mas vamos aos números em concreto. Ainda em 2023, o ano que diz respeito à experiência de Teresa – à qual voltaremos –, foram contabilizados nos Açores 158 (segundo a DGS ) ou 157 (de acordo com os dados que o executivo açoriano facultou ao jornal - ver tabelas) pedidos de IG até às 10 semanas, dos quais 86 (54,5%) referentes a São Miguel.
No mesmo ano, na Madeira, onde o hospital do Funchal efetua interrupção de gravidez até às 10 semanas por decisão exclusiva da mulher, registaram-se 258 destes procedimentos, mais 63% que nos Açores, quando o primeiro arquipélago tem um número de habitantes (256 622) apenas 6,5% mais alto que o segundo (241 025). E, mais relevante para o caso, os Açores têm um número mulheres em idade fértil (56 661) superior ao da Madeira (55 250).
Açores são “sítio errado” para direito das mulheres à saúde?
Igualmente relevante parece a comparação, entre 2023 e 2024, dos números de IG nas ilhas do Faial e de São Miguel, fornecidos ao DN pelo Governo Regional (ver tabelas). Assim, no Faial, cujo Hospital da Horta deixou de fazer o procedimento em outubro de 2023, os pedidos de IG diminuíram, de um ano para o outro, de 14 para cinco (caíram 64,3%), enquanto na ilha de São Miguel, onde o hospital de Ponta Delgada passou a fazer IG a partir de dezembro de 2023, aumentaram de 86 (em 2023, quando as mulheres eram enviadas para a Clínica dos Arcos) para 111 (em 2024), ou seja 29,1%.
Mantendo-se os pedidos de IG nas restantes ilhas mais ou menos constantes, o número total do arquipélago passou de 157 em 2023 para 167 em 2024 – sendo todo o crescimento de 6,4% devido ao aumento dos pedidos em São Miguel.
Variações que vão ao encontro das conclusões do trabalho do economista António Melo, que na sua tese de doutoramento, assim como no artigo “Todas as estradas levam ao mesmo destino? Proximidade a serviços de aborto, abortos e respetivas condições em Portugal” (publicado no prestigiado Journal of Population Economics), demonstra que quanto mais longe se encontra uma região geográfica de um serviço que providencia interrupção de gravidez, menor a taxa deste cuidado de saúde na população dessa região. Resumindo, nas palavras do autor: “Quanto mais longe, menos abortos”.
Fala, evidentemente, de abortos legais – aqueles que podem ser contabilizados. “A distância pode potencialmente impedir as mulheres de abortar. Haver pessoas que são impedidas de abortar por morarem no sítio errado”, frisa o economista, que quantificou a diminuição do número de abortos legais em função da distância ao serviço de IG: “Os municípios portugueses que estão a mais de uma hora do serviço de IG mais próximo têm menos 22% de abortos que municípios que estão a até 30 minutos do serviço.” A distância mencionada é medida num trajeto de automóvel.
Antonio Melo trabalhou apenas com dados de Portugal continental, pelo que não fez cálculos para distâncias que impliquem viagens de avião e a eventual necessidade de pernoitar longe de casa, mas não tem dúvidas de que “se o caso do Continente é grave em termos de dificuldade de acesso, nos Açores haverá decerto atrasos muito maiores.”
Outro dado interessante para avaliar a situação dos Açores no que respeita à IG é a proporção de interrupções médicas de gravidez (IMG, ou abortos “por motivos médicos”, seja por risco para a saúde ou vida da mulher, seja por malformação fetal) em relação às IG até às 10 semanas.
Se no total nacional de 2023 houve 559 IMG face a 16 559 IG até às dez semanas, no Hospital de Ponta Delgada (de acordo com o que este comunicou ao DN), foram em 2024 realizadas 11 IMG, enquanto que o número de IG registadas foi 137.
Significa isto que a proporção de IMG – procedimentos que necessitam da autorização de uma comissão médica – no Hospital de Ponta Delgada em 2024 face às IG é de 8,03%, mais do dobro da correspondente proporção nacional em 2023, que é de 3,38%.
Uma vez que o número anual de IMG a nível nacional não tem variado muito e não há por que achar que existem mais motivos para aborto eugénico ou de risco para a saúde das mulheres nos Açores, esta diferença é outro indício de que há um problema de acesso à IG legal naquela região autónoma.
“Não há discriminação nem atropelo”, diz Governo Regional
A dificultação de acesso a um cuidado de saúde garantido pela lei da República constitui, como concluiu por duas vezes o Comité Europeu dos Direitos Sociais (órgão do Conselho da Europa que fiscaliza a aplicação da Carta Social Europeia) em relação à Itália, uma discriminação – no caso das duas condenações daquele país, que ocorreram em 2014 e 2016, uma discriminação geográfica, sócio-económica e de género no direito de acesso à saúde.
Acusação que o Governo Regional dos Açores, confrontado pelo DN, nega: “Atendendo ao facto de vivermos numa região arquipelágica, todas as utentes têm acesso a este direito que lhes é conferido por lei, não havendo qualquer atropelo ou discriminação. Pelo contrário, não havendo a possibilidade de proceder à intervenção em nenhum dos hospitais dos Açores e sob risco de incumprimento dos prazos, e objeção de consciência das equipas necessárias à sua realização, foi criado um circuito protocolado com a Clínica dos Arcos, em Lisboa, para que todo o procedimento seja realizado em segurança. Todas as despesas inerentes ao procedimento ficam a cargo da Direção Regional de Saúde, não sendo necessário qualquer adiantamento por parte das utentes.”
E acrescenta: “Desde final de 2023 que o Hospital do Divino Espírito Santo é o hospital na região onde é possível a realização de uma IVG. Nos restantes dois hospitais os médicos são objetores de consciência, direito esse que deve ser respeitado em toda a medida pois, caso contrário, aí sim, estaríamos a atentar contra as liberdades individuais.”
Ora, como vinca o recente parecer da Comissão Nacional de Ética para as Ciências da Vida (CNECV/órgão consultivo da Assembleia da República em matéria de bioética) sobre objeção de consciência (OC) em saúde, “a invocação de OC pode constituir um obstáculo ao direito à saúde, bem como uma discriminação no acesso que poderá prejudicar determinadas minorias e agudizar as desigualdades existentes na sociedade”.
O CNECV cita exatamente como “exemplo clássico” dessa discriminação e obstaculização do direito à saúde o “referente às mulheres que solicitam a interrupção voluntária da gravidez (IVG), principalmente até às 10 semanas, sendo este um dos procedimentos alvo mais comuns da OC por profissionais de saúde, cuja omissão poderá ter consequências negativas reais para a saúde reprodutiva e para a vida da mulher.”
E sublinha: “Mulheres de algumas regiões do país terão dificuldade acrescidas em realizar uma IVG, podendo mesmo não o conseguir dentro do prazo legal previsto para o efeito, de que resultará um prejuízo sério, a que pode acrescer uma discriminação socioeconómica, uma vez que as mulheres com capacidade financeira poderão mais facilmente garantir o procedimento no setor privado”.
Há seis obstetras não objetores mas só três fazem IG
O DN requereu ao executivo açoriano informação sobre o tempo médio de espera na região desde o primeiro contacto com o Serviço Regional de Saúde até à primeira consulta do processo de IG (que de acordo com a legislação em vigor não pode exceder cinco dias) e sobre o número de objetores nos hospitais da região.
O Governo não respondeu a qualquer destas solicitações, mas os dados sobre o número de objetores que em dezembro comunicou à Assembleia Regional, em resposta a um requerimento do Bloco de Esquerda (BE), contradizem as declarações ao jornal.
Assim, existiam em dezembro de 2024, segundo a citada informação, 23 obstetras nos três hospitais da região, dos quais 17 se haviam declarado objetores.
Com 14 obstetras, o HDES surge na informação do Governo com 11 objetores (sobram três) e, com quatro destes especialistas, o Hospital da Horta conta apenas com um não objetor (uma vez que a lei exige que haja dois médicos no processo, tal impedirá a realização do procedimento naquele estabelecimento). Mas no da Terceira há, em cinco obstetras, dois não objetores – significando que a não realização do procedimento naquele hospital não pode ter a justificação dada pelo governo regional.
De notar também que o HDES terá atualmente, segundo foi comunicado pelo hospital ao DN, 17 obstetras, dos quais 14 serão objetores, mantendo-se o mesmo número de não objetores (três), perfazendo-se assim na região um total de 20 objetores (77%) em 26 obstetras.
Ainda segundo o esclarecimento prestado pelo hospital, este está atualmente a realizar o procedimento mas, “dadas as condições físicas em que o HDES está a funcionar” (supondo-se que devido ao incêndio que ali ocorreu em maio de 2024) efetua “apenas as IVGs do grupo Oriental (São Miguel e Santa Maria)”.
O HDES informa ainda que foram ali realizadas 132 IG no ano passado (das quais 19 “reencaminhadas” dos hospitais da Horta e de Angra do Heroísmo), tendo sido, “no período correspondente ao estado de calamidade [devido ao incêndio], cinco utentes residentes na Ilha de São Miguel referenciadas à Clínica dos Arcos”. É ainda certificado que “o tempo de espera pela consulta prévia não excede os cinco dias previstos na lei” e que “não existe um contacto telefónico específico para a marcação de IVGs. As doentes podem recorrer diretamente à consulta externa de Ginecologia ou dirigir-se ao Bloco de Partos.”
“Não houve privacidade nenhuma, senti-me exposta”
Esta informação do hospital não coincide com a experiência de Teresa em junho de 2023 – foi obrigada, garante, a iniciar o circuito pela urgência e levou duas semanas até chegar à consulta prévia.
“Descobri-me grávida por volta das sete semanas e, como tinha claro não querer mais filhos, liguei para a linha Saúde24, para saber como podia interromper a gravidez. Mandaram-me para as urgências do hospital e não me deram informação nenhuma. Não me explicaram se podia fazer nos Açores, ou tinha de ir a Lisboa, como era o processo, prazo, nada.”
Chegou às urgências do HDES e, conta, teve de dizer, à frente de uma sala cheia, que estava grávida e queria interromper a gravidez. “Foi muito desagradável, deveria ser algo menos exposto, porque toda a gente ali fica a saber. Depois, na triagem – que também é aberta, quem está ao lado ouve tudo –, perguntaram porque é que queria interromper a gravidez, se tinha a certeza, aliás questionaram-me várias vezes sobre isso ao longo do processo.”
Isto porque Teresa teve de voltar várias vezes ao hospital: os médicos diziam que não conseguiam, na ecografia, datar a gravidez. “De todas as vezes tive de entrar pela urgência e dizer o que queria fazer, regressar à triagem, explicar que tinha a certeza de querer interromper, fazer análises e ecografia com vários médicos. E sempre sem que me dessem qualquer explicação: perguntava como era e diziam que primeiro tinham de confirmar de quanto tempo estava. Foram umas duas semanas que levei com isto, sempre com médicos diferentes, sempre a ter de explicar tudo”.
A dada altura, conta, “conseguiram verificar que o embrião estava com batimento cardíaco. Ouvir aquilo foi uma coisa que mentalmente, emocionalmente, me afetou, senti desconforto”. Como começara a ter perdas de sangue, informou o médico. Este retorquiu que caso o embrião não evoluísse ela não teria de viajar para Lisboa, poderia fazer a expulsão ali, “com uns comprimidos”.
Ou seja, se concluíssem tratar-se de uma gravidez não viável, o procedimento abortivo medicamentoso (que consiste na administração de comprimidos) podia ocorrer naquele hospital. Mas, prossegue Teresa, a seguir apanhou outro médico, que lhe disse que estava tudo OK com a gravidez e podia então dirigir-se para a consulta externa, para iniciar finalmente (ou seja, com a chamada “consulta prévia”) o processo de interrupção de gravidez.
“Em stress por causa do prazo legal”, Teresa teve de esperar que a contactassem, o que sucedeu “mais ou menos uma semana antes de completar as 10”. Foi só então que encontrou um médico que “explicou tudo”. “Foi impecável. Disse que tinha de ficar uns dias em Lisboa, por causa do protocolo [a obrigatoriedade de consulta prévia e do período de reflexão de três dias, apesar de todo o tempo que já esperara] e que era preciso ir marcar a deslocação. Há no hospital uma salinha para isso e lá tive de entregar a documentação toda à funcionária, que fica a saber de tudo, e que ligou para a Clínica dos Arcos à frente de toda a gente. Ainda me senti pior porque não queria que fosse uma situação comentada, é um meio pequeno. Não houve privacidade absolutamente nenhuma.”
Teresa acabaria por não viajar para Lisboa porque, após marcar a viagem, pediu para fazer nova ecografia, tendo o médico que a atendeu considerado que a gravidez não estava a evoluir. Assim, pôde efetuar o procedimento no HDES. Ano e meio depois, a voz ergue-se em indignação: “Foi horrível, foi tudo horrível. Acabamos por nos sentir mal em todas as etapas, pela forma como o processo está, ou estava na altura, organizado a nível hospitalar. Somos expostas, senti-me exposta.”
Apesar da revolta, Teresa não apresentou queixa – é algo muito comum nas mulheres que têm experiências como a sua, como o DN verificou na investigação, que iniciou em fevereiro de 2023, sobre as dificuldades no acesso à interrupção de gravidez no Serviço Nacional de Saúde. Na sequência dessa investigação do jornal, recorde-se, foram desencadeadas duas auditorias simultâneas da Entidade Reguladora da Saúde (ERS) e da Inspeção Geral das Atividades em Saúde (IGAS), as quais permitiram confirmar que, como o jornal demonstrara, vários hospitais não cumpriam o disposto na lei, evidenciando tempos de espera até à primeira consulta muito superiores aos cinco dias legais e “circuitos” que dificultavam o acesso. Foi também revelado que a percentagem de objetores de consciência entre os obstetras do SNS ultrapassa 80%.
Estas auditorias, porém, não incluíram as Regiões Autónomas, já que a IGAS tem jurisdição apenas no Continente e o regulador esclareceu ao DN que, “à luz do princípio da autonomia regional constitucionalmente consagrado (…) os estabelecimentos prestadores de cuidados de saúde dos setores público ou privado pertencentes à Região Autónoma dos Açores ou à Região Autónoma da Madeira não estão obrigados a registar-se junto da ERS”.
Tal significa que as mulheres residentes nas ilhas não têm uma entidade independente à qual possam apresentar queixa e da qual possam esperar defesa do seu direito à saúde, restando-lhes apenas a possibilidade de apresentarem reclamação junto dos estabelecimentos ou das autoridades regionais de saúde – as mesmas que, no caso dos Açores, certificam ao DN que não há qualquer problema com o acesso à IG no arquipélago.