Em 18 anos de vigência da interrupção de gravidez até às 10 semanas por decisão exclusiva da mulher, o Hospital da Terceira, alegando objeção de consciência dos profissionais, nunca disponibilizou esse cuidado de saúde. As mulheres têm de viajar 1556 quilómetros, até Lisboa.
Em 18 anos de vigência da interrupção de gravidez até às 10 semanas por decisão exclusiva da mulher, o Hospital da Terceira, alegando objeção de consciência dos profissionais, nunca disponibilizou esse cuidado de saúde. As mulheres têm de viajar 1556 quilómetros, até Lisboa.Açoriano Oriental

Interrupção de gravidez: Açores obrigam mulheres a consulta de psicologia

Na Terceira, a primeira consulta de quem quer interromper gravidez é com psicólogo. Circular de 2023 indica obrigatoriedade de consulta de psicologia - imposta por PSD/CDS em 2015, anulada em 2016.
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“A consulta prévia, a consulta obrigatória por lei, é efetuada cá no hospital com um psicólogo.” Com um psicólogo, não é com um médico? “Os psicólogos são médicos.” Não, não são. “Pois mas é realizada já há muitos anos, cá no hospital, por um psicólogo. É ele que explica tudo.”

Ocorrida a 6 de fevereiro, quando o DN, encarnando uma mulher em busca de informação sobre interrupção de gravidez (IG), ligou para o Hospital do Santo Espírito da Ilha Terceira (HSEIT), em Angra do Heroísmo (Açores), a conversa indicia que naquele estabelecimento público as mulheres que desejam aceder a esse cuidado de saúde, que o hospital não presta (“encaminha-as” para Lisboa, para a Clínica dos Arcos, a mais de 1500 quilómetros), são obrigadas a uma consulta de psicologia. E que a informação dada, na primeira consulta imposta pela lei que rege a IG por decisão exclusiva da mulher (Lei n.º 16/2007, de 17 de abril), sobre o procedimento abortivo (de índole obstétrica), e que a portaria regulamentar indica dever ser facultada por "médico ou profissional de saúde habilitado”, não é da responsabilidade de um profissional da especialidade.  

Por outro lado, a existência de uma consulta obrigatória de psicologia (porque a consulta prévia é obrigatória) no processo de interrupção de gravidez entra em choque com o disposto na mesma lei - a qual diz que deve haver “disponibilidade” de “acompanhamento psicológico” e “por técnico de serviço social” durante “o período de reflexão” (o período de pelo menos três dias que se segue à primeira consulta), tornando claro que esse “acompanhamento” só deve existir se a mulher o requerer, jamais podendo ser de caráter obrigatório.

De resto, tal obrigatoriedade foi expressamente retirada da lei em 2016 após ter vigorado escassos meses: a maioria PSD/CDS impô-la numa alteração efetuada no último dia da XII legislatura, a 22 de julho de 2015, por sua vez alvo de revogação pela maioria que resultou das eleições de 4 de outubro desse ano. Na campanha das legislativas de 2024, recorde-se,  o presidente do CDS-PP, Paulo Núncio, lamentou essa revogação, referindo a alteração anulada como visando “dificultar do acesso ao aborto”.

“Um psicólogo não pode fazer esse papel”

Mas há mais no protocolo do Hospital da Terceira que um problema jurídico-legal: pode um psicólogo efetuar uma consulta com as características da consulta prévia prevista no processo de IG, na qual, de acordo com a portaria n.º 741-A/2007, de 21 de junho, devem ser prestadas informações e esclarecimentos sobre o tempo de gravidez, métodos de interrupção adequados ao caso concreto, eventuais consequências para a saúde física e psíquica da mulher, métodos contraceptivos, etc?

O presidente do Conselho de Especialidade de Psicologia Clínica da Ordem dos Psicólogos Portugueses, Miguel Ricou, que é também membro do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida, crê que não e diz-se chocado com a possibilidade.

“Não tenho dúvidas de que um psicólogo não pode fazer esse papel, porque um psicólogo deve fazer intervenção psicológica, e do ponto de vista do que é a identidade profissional não faz sentido que esta consulta, que tem a ver com informação médica, seja feita por um psicólogo. É uma situação muito confusa, estranha - choca-me saber que um psicólogo aceita fazer isso”, diz este especialista em Bioética, que explica porquê: “A consulta prévia, do que posso interpretar da lei, é destinada a facultar à mulher grávida o acesso à informação relevante para a formação da sua decisão livre, consciente e responsável. Logo, para que se possa obter o consentimento informado. Parece-me que é obrigatório que seja um médico, ou pelo menos um enfermeiro especialista em obstetrícia, que o faz, dado que este é que pode prestar todas as informações necessárias sobre o procedimento abortivo. Neste sentido, parece-me profissionalmente disparatado que um psicólogo faça isso, uma vez que não cumpre com o pressuposto do que está previsto na lei e pode ainda ser interpretado pela mulher como um obstáculo que ela terá que ultrapassar. E isso não é psicologia.” 

Acresce ainda, para Miguel Ricou, a existência de “uma expectativa social do que são as funções profissionais: uma consulta de psicologia tem a ver com aumentar o conhecimento de si próprio, dos seus processos de decisão. O que, ainda que não seja esse o objetivo, remete para um tipo de intervenção, que passa por ‘ajudar a formar a decisão’, lançando esse alarme, o de se querer interferir na decisão.”

Consulta de psicologia obrigatória

No mesmo dia (6 de fevereiro) do contacto telefónico relatado com o hospital, o DN solicitou formalmente que aquele esclarecesse se a consulta prévia é assegurada por um médico ou por outro profissional - e nesse caso, que profissional e porquê. Até à publicação deste texto não houve resposta - nem a essa nem às outras questões enviadas.

Porém, numa reunião esta quarta-feira, 19 de fevereiro, com o coordenador regional do Bloco de Esquerda, António Lima, o Conselho de Administração (CA) do HSEIT (nas pessoas da vogal Michéle Aguiar, da diretora clínica Rute Couto e do enfermeiro diretor César Toste) informou, segundo transmitiu ao DN a coordenação regional daquele partido, que há sempre, no processo da IG, uma consulta obrigatória efetuada por um psicólogo

“O Bloco de Esquerda/Açores reuniu-se com o Conselho de administração do HSEIT para perceber por que razão continua o Hospital da Terceira a não realizar interrupção voluntária da gravidez [IVG] apesar de dispor de dois médicos não objetores de consciência”, narra a coordenação regional do BE ao DN. “No início da reunião, foi-nos dito que todas as mulheres realizam a ecografia para determinação do tempo de gestação numa clínica privada na Praia da Vitória, por uma médica especialista em ginecologia/obstetrícia reformada, que no HSEIT era objetora de consciência. Depois seguem para consulta com psicólogo e se desejarem prosseguir com a IVG dão o seu consentimento e o procedimento é feito na Clínica dos Arcos.”

No final da reunião, prossegue o relato, “o Bloco tentou perceber junto do CA se a primeira consulta [ou consulta prévia] era mesmo feita por psicólogo, mas o CA acabou por recuar no que havia dito inicialmente, afirmando que não é feita por psicólogo”. Em todo o caso, a delegação do partido ficou convicta de que o CA deste hospital considera que o processo de IG implica uma consulta de psicologia obrigatória. 

Certo é que essa parece ser a ideia subjacente a uma circular do Governo Regional dos Açores que, datada de julho de 2023, explicita as condições necessárias para as unidades de saúde pública do arquipélago validarem o acesso à IG. Trata-se da “Circular Normativa nº DRS - CNORM/2023/13”, na qual se lê: “Todas as Unidades de Saúde de Ilha e Hospitais (…), após os procedimentos relativos a primeira consulta destinada a disponibilizar a informação necessária para a formação de uma decisão livre, consciente e responsável; a assinatura do consentimento para a intervenção; a ecografia a atestar o número de semanas de gravidez; a consulta de psicologia no período de reflexão e a disponibilidade de acompanhamento por técnico de serviço social, efetuados no período de reflexão que antecede a intervenção, devem proceder à referenciação para o Hospital da Horta ou para o Hospital do Divino Espirito Santo de Ponta Delgada para efeitos da Interrupção Voluntária da Gravidez.”

Enquanto que no que respeita ao “acompanhamento por técnico de serviço social” a circular refere “disponibilidade”, já a “consulta de psicologia no período de reflexão” é indicada como parte do elenco das condições para a referenciação para uma unidade na qual se efetue o procedimento (o Hospital da Horta deixou de fazer IG em outubro de 2023 e o Hospital de Ponta Delgada recomeçou a fazê-las, após anos de interregno, em novembro de 2023, mas a partir do verão de 2024 passou a “atender” apenas as IG de São Miguel e de Santa Maria).

O DN tentou esclarecer com o governo dos Açores qual o respetivo entendimento sobre a matéria mas recebeu uma resposta inconclusiva: “Quanto ao acompanhamento psicológico, sim, é obrigatório nos Açores como no resto do país, com uma equipa multidisciplinar que inclui apoio psicológico e também social”. 

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