Interrupção de gravidez: Açores obrigam mulheres a consulta de psicologia
“A consulta prévia, a consulta obrigatória por lei, é efetuada cá no hospital com um psicólogo.” Com um psicólogo, não é com um médico? “Os psicólogos são médicos.” Não, não são. “Pois mas é realizada já há muitos anos, cá no hospital, por um psicólogo. É ele que explica tudo.”
Ocorrida a 6 de fevereiro, quando o DN, encarnando uma mulher em busca de informação sobre interrupção de gravidez (IG), ligou para o Hospital do Santo Espírito da Ilha Terceira (HSEIT), em Angra do Heroísmo (Açores), a conversa indicia que naquele estabelecimento público as mulheres que desejam aceder a esse cuidado de saúde, que o hospital não presta (“encaminha-as” para Lisboa, para a Clínica dos Arcos, a mais de 1500 quilómetros), são obrigadas a uma consulta de psicologia. E que a informação dada, na primeira consulta imposta pela lei que rege a IG por decisão exclusiva da mulher (Lei n.º 16/2007, de 17 de abril), sobre o procedimento abortivo (de índole obstétrica), e que a portaria regulamentar indica dever ser facultada por "médico ou profissional de saúde habilitado”, não é da responsabilidade de um profissional da especialidade.
Por outro lado, a existência de uma consulta obrigatória de psicologia (porque a consulta prévia é obrigatória) no processo de interrupção de gravidez entra em choque com o disposto na mesma lei - a qual diz que deve haver “disponibilidade” de “acompanhamento psicológico” e “por técnico de serviço social” durante “o período de reflexão” (o período de pelo menos três dias que se segue à primeira consulta), tornando claro que esse “acompanhamento” só deve existir se a mulher o requerer, jamais podendo ser de caráter obrigatório.
De resto, tal obrigatoriedade foi expressamente retirada da lei em 2016 após ter vigorado escassos meses: a maioria PSD/CDS impô-la numa alteração efetuada no último dia da XII legislatura, a 22 de julho de 2015, por sua vez alvo de revogação pela maioria que resultou das eleições de 4 de outubro desse ano. Na campanha das legislativas de 2024, recorde-se, o presidente do CDS-PP, Paulo Núncio, lamentou essa revogação, referindo a alteração anulada como visando “dificultar do acesso ao aborto”.
“Um psicólogo não pode fazer esse papel”
Mas há mais no protocolo do Hospital da Terceira que um problema jurídico-legal: pode um psicólogo efetuar uma consulta com as características da consulta prévia prevista no processo de IG, na qual, de acordo com a portaria n.º 741-A/2007, de 21 de junho, devem ser prestadas informações e esclarecimentos sobre o tempo de gravidez, métodos de interrupção adequados ao caso concreto, eventuais consequências para a saúde física e psíquica da mulher, métodos contraceptivos, etc?
O presidente do Conselho de Especialidade de Psicologia Clínica da Ordem dos Psicólogos Portugueses, Miguel Ricou, que é também membro do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida, crê que não e diz-se chocado com a possibilidade.
“Não tenho dúvidas de que um psicólogo não pode fazer esse papel, porque um psicólogo deve fazer intervenção psicológica, e do ponto de vista do que é a identidade profissional não faz sentido que esta consulta, que tem a ver com informação médica, seja feita por um psicólogo. É uma situação muito confusa, estranha - choca-me saber que um psicólogo aceita fazer isso”, diz este especialista em Bioética, que explica porquê: “A consulta prévia, do que posso interpretar da lei, é destinada a facultar à mulher grávida o acesso à informação relevante para a formação da sua decisão livre, consciente e responsável. Logo, para que se possa obter o consentimento informado. Parece-me que é obrigatório que seja um médico, ou pelo menos um enfermeiro especialista em obstetrícia, que o faz, dado que este é que pode prestar todas as informações necessárias sobre o procedimento abortivo. Neste sentido, parece-me profissionalmente disparatado que um psicólogo faça isso, uma vez que não cumpre com o pressuposto do que está previsto na lei e pode ainda ser interpretado pela mulher como um obstáculo que ela terá que ultrapassar. E isso não é psicologia.”
Acresce ainda, para Miguel Ricou, a existência de “uma expectativa social do que são as funções profissionais: uma consulta de psicologia tem a ver com aumentar o conhecimento de si próprio, dos seus processos de decisão. O que, ainda que não seja esse o objetivo, remete para um tipo de intervenção, que passa por ‘ajudar a formar a decisão’, lançando esse alarme, o de se querer interferir na decisão.”
Consulta de psicologia obrigatória
No mesmo dia (6 de fevereiro) do contacto telefónico relatado com o hospital, o DN solicitou formalmente que aquele esclarecesse se a consulta prévia é assegurada por um médico ou por outro profissional - e nesse caso, que profissional e porquê. Até à publicação deste texto não houve resposta - nem a essa nem às outras questões enviadas.
Porém, numa reunião esta quarta-feira, 19 de fevereiro, com o coordenador regional do Bloco de Esquerda, António Lima, o Conselho de Administração (CA) do HSEIT (nas pessoas da vogal Michéle Aguiar, da diretora clínica Rute Couto e do enfermeiro diretor César Toste) informou, segundo transmitiu ao DN a coordenação regional daquele partido, que há sempre, no processo da IG, uma consulta obrigatória efetuada por um psicólogo.
“O Bloco de Esquerda/Açores reuniu-se com o Conselho de administração do HSEIT para perceber por que razão continua o Hospital da Terceira a não realizar interrupção voluntária da gravidez [IVG] apesar de dispor de dois médicos não objetores de consciência”, narra a coordenação regional do BE ao DN. “No início da reunião, foi-nos dito que todas as mulheres realizam a ecografia para determinação do tempo de gestação numa clínica privada na Praia da Vitória, por uma médica especialista em ginecologia/obstetrícia reformada, que no HSEIT era objetora de consciência. Depois seguem para consulta com psicólogo e se desejarem prosseguir com a IVG dão o seu consentimento e o procedimento é feito na Clínica dos Arcos.”
No final da reunião, prossegue o relato, “o Bloco tentou perceber junto do CA se a primeira consulta [ou consulta prévia] era mesmo feita por psicólogo, mas o CA acabou por recuar no que havia dito inicialmente, afirmando que não é feita por psicólogo”. Em todo o caso, a delegação do partido ficou convicta de que o CA deste hospital considera que o processo de IG implica uma consulta de psicologia obrigatória.
Certo é que essa parece ser a ideia subjacente a uma circular do Governo Regional dos Açores que, datada de julho de 2023, explicita as condições necessárias para as unidades de saúde pública do arquipélago validarem o acesso à IG. Trata-se da “Circular Normativa nº DRS - CNORM/2023/13”, na qual se lê: “Todas as Unidades de Saúde de Ilha e Hospitais (…), após os procedimentos relativos a primeira consulta destinada a disponibilizar a informação necessária para a formação de uma decisão livre, consciente e responsável; a assinatura do consentimento para a intervenção; a ecografia a atestar o número de semanas de gravidez; a consulta de psicologia no período de reflexão e a disponibilidade de acompanhamento por técnico de serviço social, efetuados no período de reflexão que antecede a intervenção, devem proceder à referenciação para o Hospital da Horta ou para o Hospital do Divino Espirito Santo de Ponta Delgada para efeitos da Interrupção Voluntária da Gravidez.”
Enquanto que no que respeita ao “acompanhamento por técnico de serviço social” a circular refere “disponibilidade”, já a “consulta de psicologia no período de reflexão” é indicada como parte do elenco das condições para a referenciação para uma unidade na qual se efetue o procedimento (o Hospital da Horta deixou de fazer IG em outubro de 2023 e o Hospital de Ponta Delgada recomeçou a fazê-las, após anos de interregno, em novembro de 2023, mas a partir do verão de 2024 passou a “atender” apenas as IG de São Miguel e de Santa Maria).
O DN tentou esclarecer com o governo dos Açores qual o respetivo entendimento sobre a matéria mas recebeu uma resposta inconclusiva: “Quanto ao acompanhamento psicológico, sim, é obrigatório nos Açores como no resto do país, com uma equipa multidisciplinar que inclui apoio psicológico e também social”.