Esta entrevista decorre no Centro de Experimentação da Marinha, em plena edição do maior exercício da Europa, que junta forças da NATO, países terceiros, universidades e indústria – o REPMUS (Robotic Experimentation and Prototyping using Maritime Uncrewed Systems)– onde é testado, no fundo, o futuro da guerra naval e da segurança marítima. Qual é aqui o papel na Marinha e que projetos tem em curso ou em estudo?.Nesta edição contamos com 24 países participantes. Maioritariamente são países da Aliança Atlântica, mas não só: temos, por exemplo, o Japão. Quando começámos, em 2010, tínhamos 18 veículos não tripulados e três países participantes, com uma expressão relativamente reduzida da academia. No corrente ano vamos ter 263 veículos autónomos, 176 representações da indústria e 37 países — 24 participantes mais 13 observadores — sendo 14 da Aliança Atlântica.O que é que o REPMUS traz de virtuoso? Nós usamos o termo ecossistema, mas eu gosto mais de falar numa comunidade de interesse. Temos a academia, que é a base onde se começa a desenvolver o conhecimento; depois uma fase intermédia, os militares, na vertente de experimentação, inovação e prototipagem, que veem o potencial de alguns dos produtos desenvolvidos na academia e os tentam transformar para utilização militar, ou definem os seus requisitos logo à cabeça e a academia responde. Este processo pode ser biunívoco. Por fim, fecha-se o ciclo com a indústria, que pode responder às necessidades da comunidade operacional ou mostrar-nos aquilo que está a desenvolver, e nós percebemos em que medida pode ter aplicação militar ou militar e civil. Sempre que conseguimos perseguir lógicas de duplo uso, favorecemos essas abordagens.. A vantagem desta comunidade de interesse é que, durante as três semanas do exercício, partilham-se experiências, conhecimentos, desenvolve-se prototipagem no local. Temos uma zona de oficinas onde se podem manufaturar componentes, mas sobretudo procura-se interoperabilidade. Este é um dos objetivos que pretendo perseguir. No final de cada REPMUS espero identificar inovação com potencial de aplicação para quem desempenha missões — seja o pessoal a bordo de navios em busca e salvamento ou fiscalização da pesca, seja em missões mais exigentes no quadro da Aliança Atlântica, em fragatas, submarinos ou com os fuzileiros.Este investimento só faz sentido se daqui saírem produtos que possam ser utilizados pelos meus operadores nos cenários mais variados, desde a segurança marítima e apoio à Autoridade Marítima até ao limite superior do espectro do conflito, em operações navais de combate.A Marinha foi pioneira na criação deste exercício, primeiro numa parceria com a Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto, que está connosco desde o início, e depois arrastando mais intervenientes da academia. Conseguimos trazer mais empresas, nacionais e estrangeiras, e mais países. O exercício é hoje o maior da Europa, garantidamente, e do mundo nesta tipologia, pela sua dimensão e expressão.O que esperamos é beneficiar, enquanto Marinha, com soluções inovadoras para a nossa capacitação, mas também ajudar a nossa indústria e academia. Ou seja, desde coisas tangíveis — como vermos aqui equipamentos a voar, outros a evoluírem no Sado ou no mar, e ainda em Sesimbra — até termos gente a pensar o futuro, tudo isto nos ajuda bastante. Porque, se a Marinha não ganhasse mais nada com este exercício, há uma coisa que ganharia garantidamente: conhecimento acrescido sobre sistemas e capacidade de juízo crítico para os próximos processos de aquisição. Já não vamos comprar “às escuras”, vamos com muito maior conhecimento, porque temos também uma célula de experimentação e desenvolvimento na Marinha, que faz prototipagem e experiências. Assim, ganhamos muito mais conhecimento dos sistemas e sei escolher muito melhor aquilo que cumpre os requisitos operacionais que tenho.. Sabemos que o orçamento da Defesa para os 2% do PIB até ao final do ano vai permitir aos três ramos, incluindo adquirir ou reforçar alguns serviços ou equipamentos. Qual é o valor que a Marinha vai ter acrescido no seu orçamento este ano e quais são os projetos que vão beneficiar desse aumento?Marinha viu recentemente atribuídos cerca de 175 milhões de euros de reforço da Lei de Programação Militar.Basicamente, isso vai permitir-nos colmatar deficiências que tínhamos, incluindo no financiamento da área do comando e controlo, da capacidade submarina, oceânica, de superfície, de patrulha e fiscalização, bem como na capacidade oceanográfica e hidrográfica. Também havia défices nas reservas de guerra — alguns identificados e outros crónicos — que resultam de uma figura usada na construção da LPM, o material a fornecer ao Estado. São rubricas cujo financiamento vem a posteriori e que, muitas vezes, fica aquém do necessário. Felizmente, conseguimos ver estes 175 milhões a financiar projetos muito importantes.. Dou alguns exemplos. Na capacidade hidro-oceanográfica, este reforço de verbas vai permitir-nos equipar os nossos dois navios hidro-oceanográficos, que fazem o trabalho fundamental do levantamento da extensão da plataforma continental. Para operarem o ROV precisam de um sistema de posicionamento dinâmico, que mantém o navio parado em alto mar relativamente ao fundo através de motores que corrigem a posição. Até agora, só um dos dois navios tinha este sistema. Com o reforço, vamos poder equipar o segundo e aumentar a nossa capacidade de resposta neste trabalho fundamental para o país.Temos também a aquisição de transdutores acústicos para os patrulhas oceânicos de terceira geração, que assim terão capacidade de luta anti-submarina. Não menos importante, este reforço vai permitir avançar na aquisição de veículos não tripulados — aéreos, de superfície e de subsuperfície — para o navio D. João II (Plataforma Naval Multifuncional). Este navio foi adquirido com verbas do PRR, mas o envelope financeiro ficou muto estreito na construção da plataforma. Os drones, fundamentais para o conceito de emprego do navio, terão de ser adquiridos por esta via. Esta verba permite-nos concretizar isso. Foi um excelente sinal.. Confirma então o que nos disse o Ministro da Defesa, de que não se trata de contabilidades criativas, mas efetivamente de um aumento de capacidade?Vai traduzir-se num aumento de capacidade efetivo. Quando nos foi feito o pedido de identificação de necessidades, tivemos a preocupação de propor apenas programas que pudessem ser concretizados dentro dos critérios de execução financeira e material. Temos outras necessidades, mas não seria possível concretizá-las dentro deste horizonte temporal. Por isso, este reforço traduz-se de facto em capacidade.E quais são as faltas mais críticas que sentem?A falta mais crítica é pessoal. Sem pessoas não há capacidade. Não me adianta que o país me disponibilize recursos financeiros substantivos se eu não tiver pessoal para depois guarnecer os meios. Apesar de os números estarem a evoluir positivamente, eu neste momento ainda tenho um défice global de 27%. Ou seja, eu tenho um decreto-lei de efetivos em vigor, que ainda é o de 2024, que me autorizava, entre oficiais, sargentos e praças, nas diferentes situações de prestação de serviço ativo, reserva e regime de contrato, a ter um total de 8734 militares. E eu, ao dia 1 de setembro, tenho 6365. Ou seja, tenho um défice de 2369 militares.Mas no caso concreto da categoria de praças, estou 36% aquém. Porque é que isto me preocupa particularmente? Porque o pessoal que eu tenha a menos vai fazer com que aqueles que estão a cumprir diretamente, na primeira linha, as missões nas unidades navais, nas unidades de fuzileiros e de mergulhadores, tenham uma taxa de esforço acrescida.Porque as missões têm que se cumprir, o país precisa de exercer diariamente soberania e jurisdição e responsabilidade. Por exemplo, na busca e salvamento marítimo, nos seus espaços marítimos de soberania, águas territoriais, de jurisdição, como é a Zona Económica Exclusiva. Essas missões têm que continuar a ser cumpridas com menos pessoal.Significa que estou a sobrecarregar o pessoal que existe para continuar a cumprir missões. Por isso é que o elemento do pessoal para mim é particularmente crítico. Isto em termos quantitativos. Em termos qualitativos preocupa-me em particular as saídas de pessoal qualificado.. Estão a sair muitos militares? E nas candidaturas e entradas, estão a conseguir estancar a queda que dura há vários anos?Essa tendência já começou o ano passado. Mas, sabe, nós os que passam a vida no mar, não somos normalmente pessoas otimistas por natureza, porque o mar não nos permite ser muito otimistas. Temos de ser, de alguma forma, realistas. Mas vejo isto como um horizonte com boas perspectivas.Por exemplo, dia 14 vão fechar os concursos de admissão de oficiais e praças. Estamos com 1360 candidaturas, um número muito acima daquilo que temos tido nos últimos anos. São números são animadores, apesar das taxas elevadas de atrição que temos, a começar logo pelos exames médicos dos mergulhadores e fuzileiros.Mas é uma boa tendência…Tenho alguma cautela. Isto não é necessariamente uma tendência. Se daqui a dois ou três anos, no fim do meu mandato, este número se mantiver, eu diria que é uma tendência. Se olharmos para aquilo que era o antecedente, estamos a reverter aquilo que era a tendência, que eram números baixos no recrutamento. Isto são bons sinais. É ótimo para a Marinha, para a Marinha do futuro e em geral para as Forças Armadas. Mas, mesmo assim, as saídas ainda são bastante preocupantes.Só para que tenha ideia, em 2024 saíram 525 militares da Marinha. Este ano, com manifestações de interesse em sair tenho 338. A projeção estatística até 31 de dezembro avança para os 400.Ou seja, teria menos cerca de 125 militares a saírem, comparando com 2024. Uma vez mais, se isto, no fim do meu mandato, continuar assim, há uma tendência boa. Já de si posso dizer que menos 125 militares a pedirem abate aos quadros ou a saírem, para mim é bom em tempos de carência. Porque a minha grande questão justamente é tentar diminuir a taxa de esforço daqueles que cumprem missões.E que ideias tem para convencer mais jovens a vir para a Marinha e a não sair?São duas coisas diferentes. Na área do recrutamento, com os números deste momento, diria que as campanhas que estamos a fazer nos estão a ajudar. Tivemos de ser um bocadinho, não diria agressivos, mas pelo menos mais ativos. Fomos para as redes sociais, porque não vou recrutar leitores do Diário de Notícias. Vou recrutar quem anda nos TikToks, nos Instagrams. Dos leitores do Diário de Notícias, espero chegar aos pais, que convençam os filhos que estão nas outras redes.Como é que os tem convencido?A Marinha tem um potencial grande de oferta, que é a qualificação que damos aos nossos quadros, sejam eles oficiais, sargentos ou praças, o que os torna particularmente apelativos para o mercado de trabalho. Acaba por ser um contrassenso, que me leva às vezes a questionar: porque é que damos uma formação tão boa às pessoas e treino on the job, quando sabemos que estamos a torná-los particularmente apelativos ao mercado? E isso é muito, muito visível na área, por exemplo, das engenharias. Pessoal técnico, muito facilmente o mercado consegue oferecer-lhes, sobretudo, melhores condições financeiras de remuneração do que aquelas que nós aqui conseguimos atribuir.Por isso, a minha maior preocupação não é tanto com o recrutamento. É na retenção de quadros com mais qualificação. Por via da troika, sofremos um conjunto de imposições que resultaram naquilo que eu designo por uma assimetria geracional: os militares que entraram, de uma forma mais ou menos simplista, a partir de 95, vão ter uma pensão de reforma próxima de 50% daquilo que eu vou ter. E isto é particularmente difícil para cativar as pessoas a permanecerem aqui, porque vão chegar ali àquela fase em que terão que tomar uma decisão na casa dos 40 anos — que são aqui, em termos de postos, capitães-tenentes a ser promovidos a capitães de fragata — em que vão ter que decidir se vão continuar nesta vida, porque nem todos chegarão a almirante, aos postos mais elevados, onde poderão ter uma remuneração um pouco melhor, ou se vão optar por prosseguir a sua vida no mercado de trabalho aí fora.. E eu percebo que saiam, porque estão naquela fase da vida, 40 anos, tomam uma decisão: ou ficam, ou ainda são apelativos para o mercado de trabalho. E nós perdermos um indivíduo com 40 anos e 20 anos de experiência de casa, eu não consigo substituí-lo. Eu não consigo ir ao mercado de trabalho e comprar um engenheiro naval que me venha suprir uma saída do engenheiro naval.Mas já tenho casos de gente muito mais nova, imberbe, a sair porque o mercado de trabalho lhes dá outras condições. Ainda agora, recentemente, dois guarda-marinhas da Escola Naval, no sexto ano, no último ano do mestrado, pediram abate aos quadros — neste caso, não aos quadros permanentes, porque ainda não os integram, mas ao quadro do Corpo de Alunos da Escola Naval. E vão ser confrontados com o pagamento de uma indemnização ao Estado de 172 mil euros.Portanto, quando manifestaram o interesse em sair, estavam cientes disto. E porque, possivelmente, ou por património próprio, ou porque alguma oferta de trabalho lhes vai permitir proceder a esse pagamento, quiseram ser libertados deste vínculo que tinham assumido voluntariamente.É uma concorrência difícil de enfrentar. E todo este desenvolvimento tecnológico com equipamento não tripulado também não pode permitir diminuir a necessidade de pessoal?Poderá vir a permiti-lo. Mas, temos que ver isto com algum cuidado. No domínio marítimo têm havido conclusões muito rápidas sobre o que se passa no Mar Negro e transpô-las para Portugal. As capacidades destes veículos não tripulados, que têm sido operados — e muito bem, diria até muito próximo do brilhantismo — pelas Forças Armadas ucranianas, atuam numa geografia totalmente diferente do nosso Atlântico. Ou seja, a nossa potencial área de batalha naval é um oceano, não é um mar confinado.Haverá veículos autónomos não tripulados que poderão ajudar-nos na condução de campanhas militares ou mesmo de campanhas de segurança marítima. Mas não me vão permitir ultrapassar este défice que tenho de praças.E nós, com a nossa posição geográfica, como o conjunto de obrigações que temos, designadamente no quadro da Aliança Atlântica, fazem com que tenhamos que ter uma componente oceânica na nossa Marinha. E essa componente oceânica não se faz com veículos autónomos, não tripulados. Faz-se sempre com capacidades convencionais, que tudo indica poderão e deverão inclusive vir a ser complementadas. Por um lado, para diminuir a taxa de esforço sobre o pessoal e, por outro lado, também para diminuir o risco sobre esse mesmo pessoal.Não se extrapole, de uma forma quase linear, a guerra naval no Mar Negro, e e diga que, de repente, a nossa Marinha pode abandonar os patrulhas oceânicos, as fragatas, os submarinos e passar a ter só drones e operar como uma Marinha no Atlântico. Não. Desculpem, mas não opera.Que oportunidades a Marinha vê nos programas europeus de financiamento. Acha que há o risco das prioridades europeias, que estão muito focadas no flanco leste, deixarem para segundo plano as necessidades do Atlântico e da defesa marítima portuguesa?Não, acho que esse risco não existe. Porque, se estivermos a falar do instrumento que eu conheço melhor, que é o SAFE, e ao qual Portugal se candidatou, e penso que é do domínio público, tivemos uma atribuição de quase 5,7 mil milhões de euros, não nos impunha nenhuma geografia de atuação. Ou seja, as Forças Armadas Portuguesas candidataram-se — os três ramos e também o Estado-Maior e inclusive o Ministério da Defesa — a financiamento. E não nos era imposto tipologia de meios.O único constrangimento , que percebo, é que os sistemas adquiridos tivessem no máximo 35% de incorporação exterior à União Europeia. Não só à União Europeia, mas também a um conjunto de organizações conexas ou exteriores, como material fornecido com proveniência da Ucrânia.Para que meios quer a Marinha este financiamento?Três áreas fundamentais: fragatas da nova geração, viaturas táticas para os fuzileiros e drones aéreos.A proteção dos cabos submarinos é uma preocupação acrescida hoje em dia?É. Felizmente vai sendo discutida no nosso país. Mas é uma matéria com algumas particularidades. Estamos a falar da parte imersa, a parte debaixo de água, as competências estão todas na área da Administração Interna, as capacidades estão na área da Defesa. Ou seja, quem tem forma de saber se há algum Estado terceiro ou alguma organização não estatal que pretenda danificar um cabo submarino na sua parte imersa é a Marinha, através da deteção acústica, e a Força Aérea, através dos aviões de patrulha marítima, os P-3, que também têm deteção acústica..Mas as competências, desde logo para o levantamento e a classificação da criticidade de infraestrutura, estão na área do planeamento civil de emergência. O Sistema Nacional de Planeamento Civil de Emergência (SNPC) tem como presidente, por inerência, o presidente da ANEPC.É irresolúvel o problema? Tinham que passar tudo para a competência da Defesa? Não necessariamente. Temos mecanismos de coordenação. Foi assinado antes do COVID — na altura era o almirante Silva Ribeiro o CEMGFA – um protocolo com o secretário-geral do Sistema de Segurança Interna que estabelece as normas de articulação entre as Forças Armadas e as forças e serviços de segurança.Ou seja, sob o chapéu desse documento, a forma de atuar é a área da Administração Interna solicitar o apoio das Forças Armadas para fazer esse tipo de monitorização, de vigilância. Mas é mais uma daquelas construções no nosso país…. Mais uma zona cinzenta… e é agora sobre as zonas cinzentas das competências da vigilância do mar e da segurança marítima, com a quantidade de entidades que há a trabalhar nesta área. Acha que faz sentido clarificar politicamente o papel da Marinha como uma verdadeira guarda costeira nacional?Eu acho que politicamente está clarificado. Porque ainda não vi nenhum impulso político para alterar o atual ordenamento jurídico. O que percebo é que há muito ruído à volta, que dá uma noção de que as situações são pouco claras. São coisas diferentes, porque eu acho que politicamente não há dúvidas.Aliás, quando vejo argumentação do tipo “é inconstitucional”, fico sempre perplexo, porque, se é inconstitucional, alguém já deveria ter tratado de sanar essa inconstitucionalidade. Portanto, diria que, politicamente, parece-me que é relativamente claro.O modelo está longe de ser o ótimo, porque temos uma profusão de entidades com competências e atribuições nos espaços marítimos que, à boa maneira portuguesa, cuidam muito da sua visão paroquial e menos do cumprimento da missão.Temos uma visão muito terráquea. Construímos a nossa visão sobre o mar a partir da nossa posição, com os pés na terra.E, não poucas vezes, percebemos mal o mar e, sobretudo, a dimensão jurídica da operação e do enquadramento jurídico do mar, porque a construção é feita pelos terráqueos, com a mentalidade terráquea, e acham que podem, de uma forma quase como uma translação, transpor, por exemplo, direitos soberanos da terra para o mar.Não é verdade. Nas águas territoriais, mesmo o exercício da soberania é condicionado. O Estado ribeirinho não tem soberania plena e total. O Estado ribeirinho não pode impossibilitar que um navio de guerra — que é uma coisa que tem uma figura bem caracterizada na Convenção das Nações Unidas do Direito do Mar (CNUDM)— transite no seu mar territorial.Em Portugal também somos prolixos nas construções jurídicas. Dou-lhe um exemplo: o Estado ratificou a CNUDM em 1998. A construção do Sistema de Segurança Interna (SSI) é de 2009. Ou seja, Portugal já tinha ratificado a CNUDM e depois fez uma construção jurídica do seu ordenamento interno com o SSI.Isto tem muito a ver com este episódio recente (o navio mercante que pediu apoio por ter dois homens armados, suspeitos narcotraficantes, a bordo) em que acusaram a Marinha de atuar de forma ilegal. Esta atuação está perfeitamente tipificada no ordenamento jurídico que rege a atuação de Portugal no mundo.Desde logo porque, de acordo com a CNUDM, o artigo 27, o Estado ribeirinho pode exercer ação penal a bordo de um navio mercante se para tal for solicitado por esse navio. Foi o que aconteceu. Portanto, aquele navio declarou um problema a bordo, solicitou ao Estado costeiro apoio.E também no ordenamento jurídico nacional, no quadro das competências do capitão do porto: o capitão do porto, competente em razão da área geográfica, decidiu empregar a Polícia Marítima e solicitar meios acrescidos à Marinha. Portanto, inconstitucionalidades não vejo onde estejam.Curiosamente, tínhamos o comandante-geral da Polícia Marítima presente. Portanto, aquilo não foi conduzido pela vertente militar da Marinha, não foi conduzido, muito menos, pelos Chefe de Estado-Maior da Armada e Autoridade Marítima Nacional. A Marinha, como instituição do Estado, não se pode dar ao luxo de atuar à margem da lei.Outra coisa é discutir o modelo. E eu estou aberto a discussões. Há uma coisa que posso dizer: uma Marinha é uma construção onerosa. É muito caro um país ter mais do que uma Marinha.Termos a Marinha com a capacidade para exercer oito das dez funções de guarda-costeira. Há outras entidades que exercem as outras, designadamente a GNR. Acho muito mais inteligente articularmos as nossas capacidades para sermos mais eficazes no exercício da autoridade do Estado no mar do que andarmos a digladiar-nos.No recente caso do desembarque de migrantes na praia da Boca do Rio (Vila do Bispo, Algarve), como não tínhamos elementos de informação suficientes para caracterizar o fenómeno, naquela noite reforçámos o dispositivo e patrulhamento— podiam vir mais duas ou três embarcações atrás — mas, a partir do dia a seguir, coordenámos o nosso dispositivo com a GNR.Não lhe digo que é uma coisa inaudita, mas é um bom exemplo de emprego judicioso dos meios do Estado. Não andámos aqui a dizer “este cantinho é meu, aquele é teu”. E distribuímos tarefas. Falámos — eu falei na altura com o senhor general Comando-Geral, que estava de férias e passou-me ao substituto, que era o segundo-comandante — e demos instruções para as nossas cadeias operacionais para se coordenarem. Íamos fazendo um esquema de rotação, mas posso lhe dizer que, ali nos primeiros dias, a Marinha tinha responsabilidades no Barlavento e a Guarda Nacional Republicana assumiu responsabilidades no Sotavento.. Que se saiba deve ser inédita essa articulação da Marinha com a GNR…Sabe, eu pago impostos e gosto de ver o dinheiro bem empregue. Se havia ali um problema que, ainda por cima, nem a GNR nem a Marinha e a Autoridade Marítima, conseguíamos caracterizar — não sabíamos se aquilo era a primeira de dez ou se era uma que se tinha perdido e tinha dado ali à costa — o que pensámos foi: os dois dispositivos somados valem mais do que cada um a trabalhar por si. Vamos coordenar-nos. E temos estado a trabalhar assim.Mas o que diz da GNR adquirir lanchas rápidas como o Bojador, para atuar em alto mar, em zonas onde a Marinha tem capacidade?A GNR tem mantido uma coerência no seu processo de capacitação, que eu percebo, porque decorre de um conjunto de atribuições e competências que a lei lhes consagrou e para exercerem essas atribuições precisam de meios.Poder-se-á pôr a questão a montante: fazia sentido termos mais um corpo do Estado a desenvolver aquele conjunto de atribuições e competências no mar? É capaz de não ser a forma mais judiciosa de gerir os recursos que o país tem, que não são muitos.Agora, aqui chegados, se alguém promover uma discussão a montante e achar que vamos estudar um modelo mais civil, sem componente militar — e aí também a GNR teria alguma dificuldade, porque é um corpo militar - a Marinha dará o seu contributo na discussão.Com os atuais termos de referência, foco-me mais noutra coisa, que é dar o meu contributo para que o Estado exerça a autoridade nos espaços marítimos sob sua jurisdição, responsabilidade ou soberania da forma mais efetiva.E foi aquilo que fizemos quando fomos a bordo do navio mercante. Porque o que ninguém valorizou é que as águas portuguesas não foram terra de ninguém. Garanto-lhe que tem elevada probabilidade de um pedido destes ser feito no Golfo da Guiné e não haver resposta nenhuma.Neste caso, no momento inicial era mar alto, águas internacionais. Depois, a ida a bordo já foi feita em mar territorial português. O que se deveria aqui ter valorizado é que o Estado português foi chamado a cumprir com as obrigações — neste caso, de legislação internacional, tratados internacionais dos quais é parte integrante. E o Estado português cumpriu com as suas obrigações.. Como é que a Marinha vê o facto de ter um oficial da Marinha candidato à Presidência da República?O que o almirante Gouveia e Melo fez foi exercer os seus direitos como cidadão. Não há que fazer comentários, porque eu também não faço comentários nenhuns ao exercício similar que fez e que está a fazer o Dr. Marques Mendes ou o Dr. António José Seguro, por exemplo.E o que acha das declarações de Marques Mendes segundo as quais a candidatura de Gouveia e Melo representa um perigo para a democracia?. Como deve calcular, não faço comentários de índole política. Mas há uma coisa que lhe devo dizer, porque me senti atacado como militar e, como disse há pouco, como alguém que se dedica à causa pública há mais de 40 anos, quando oiço comentários do tipo “é um retrocesso civilizacional”. Sobretudo porque nunca ouvi um argumento que o sustentasse. Não vejo que o seja. O legado que Gouveia e Melo deixou deu mais visibilidade à Marinha?Deu mais visibilidade à Marinha. Mas a Marinha é uma construção continuada e coletiva. A Marinha não tem tradição nem cultura de personalização.Eu, garantidamente, não quero deixar o legado do almirante Nobre de Sousa. O que quero é garantir que deixo condições ao meu sucessor para continuar a construir a Marinha. Porque a Marinha não se improvisa, tem uma dependência muito grande do planeamento e uma construção de longo prazo.Estamos sempre a planear. Temos sempre que ter capacidade de ajustar o planeamento mediante os recursos que o país tem disponibilidade de nos dar. E, portanto, temos uma cultura grande de planeamento e isso faz com que não possa haver — ou eu, pelo menos, não estou habituado a isso — o legado de um CEMA.O legado de um CEMA é contribuir para que o planeamento se mantenha, para que haja condições de esta construção permanente se fazer. Obviamente que isto é muito da cultura naval: nós queremos sempre deixar melhor do que recebemos. E isso é bom, é identitário da Marinha.O almirante Melo, muito pela ideia que se foi criando de que viria a candidatar-se ou não, deu alguma exposição à Marinha, maior do que aquela a que normalmente estamos habituados. Fez o seu trabalho. Eu mantenho o que está bem feito, tento melhorar o que está menos conseguido. E é assim que eu espero que o meu sucessor faça. .Plano para orçamento de 2% do PIB em Defesa soma capacidades para o Exército, Marinha e Força Aérea.Nobre de Sousa: "A Marinha é uma construção continuada e coletiva. Não tem cultura de personalização"