"A corrupção não deve justificar a criação de um regime excecional. Seria uma traição ao próprio Estado de Direito"
Logo na entrada do vosso livro ("Corrupção em Portugal - Avaliação Legislativa e Propostas de Reforma"), dizem não pretendem que seja uma contra estratégia anticorrupção. O que pretenderam com este livro?
Paulo Pinto de Albuquerque (PPA) - O livro teve um propósito fundamental que foi o de contribuir para a discussão em curso relativamente à Estratégia Nacional Anticorrupção (ENA) proposta pelo governo. Quisemos fazer uma coisa que não é habitual em Portugal que é fazer a avaliação legislativa e identificar o que é que funciona e o que é que não funciona no quadro legal jurídico português de combate à corrupção. Para isso convocámos a nata dos juristas portugueses e, num espírito de serviço à comunidade, desafiámos esses juristas a avaliar a estratégia, para se pronunciarem sobre as melhores soluções para os problemas que enfrenta a justiça portuguesa no combate à corrupção. A iniciativa ainda mais se justifica numa altura em que, de acordo com as últimas sondagens, a principal preocupação dos portugueses agora é a corrupção.
O livro aborda a questão legislativa da corrupção sob vários ângulos. Se pudessem escolher a execução imediata de uma das medidas que está ali, qual é que escolhiam?
Sónia Moura (SM) - O combate à corrupção terá de assentar sempre numa conjugação de meios. Terá de ser feita uma abordagem legislativa e outra no terreno, digamos assim, uma coordenação de meios, avultando no terreno, designadamente, a necessidade de peritos, e terá de se pensar até num outro plano, que o livro também aborda, o plano da prevenção.
A prevenção é muito importante, a educação para a cidadania, a literacia, é preciso que no contacto com as instituições públicas as pessoas tenham um conhecimento mínimo sobre os procedimentos, a forma como devem dirigir-se às instituições, porque isso também as tornará mais seguras, mais esclarecidas, e facilitará o desenrolar natural e correto de todos os procedimentos. Portanto, prevenção, mecanismos legislativos e meios operacionais, tudo isto tem de ser coordenado para se alcançar uma solução positiva no final.
Olhando para os rankings de avaliação da corrupção da Transparency International, Portugal está na 33ª posição, com 101 pontos, na última avaliação, ou seja, está abaixo da média europeia. Como é que se pode explicar a posição portuguesa neste ranking?
PPA - Antes de mais, diria que há uma maior sensibilidade da parte do povo português para o fenómeno da corrupção e para a distorção que ele introduz na economia e para a corrosão dos princípios fundamentais do Estado democrático que ele provoca. Essa maior sensibilidade reflete-se também na maior atenção que é dada a este assunto pelos media. O jornalismo de investigação desempenha um papel fundamental na divulgação dos processos. É verdade também que, por vezes, há uma certa exploração mediática de alguns fenómenos de corrupção e de alguns processos. Isso, naturalmente, acaba por ter um reflexo direto na perceção social. O que é importante sublinhar é que este trabalho dos jornalistas, que é fundamental num Estado de Direito, não deve nunca transformar-se numa espécie de justicialismo penal, um populismo fácil que, no fundo, acaba por perverter aquele que deve ser o sentido do jornalismo feito com ética, que é o de transmitir a informação e não o de deformar, digamos assim, a informação. Esta perceção acaba por resultar deste conjunto de circunstâncias que só deve responsabilizar ainda mais os protagonistas do foro judicial. Portanto, os magistrados do Ministério Público (MP), os magistrados judiciais, os advogados, devem ter noção de que trazem uma enorme carga aos ombros que é a de ter de satisfazer essa procura de justiça, de modo a que as pessoas tenham a perceção de uma justiça mais eficaz, de uma justiça que funciona.
Como se explica 94% dos portugueses (Eurobarómetro) ache que a corrupção está generalizada no país...
Rui Cardoso (RC) - As perceções são muito falíveis e, para fazemos outra leitura das mesmas, necessitaríamos sempre a cada momento de fazer análises bem mais complexas. As perceções são o produto do que acontece, do que, acontecendo, é noticiado.
Mais do que isso, muitas vezes, da forma como é comentado, e tudo isso pode gerar maiores perceções num sentido, menores noutro e vice-versa. Isto é algo efetivamente complexo. Mas os tribunais, e aí incluindo todos aqueles que nele trabalham, nomeadamente o Ministério Público (MP), têm a consciência de que aos tribunais não cabe satisfazer essa necessidade, essa ânsia que o povo pode ter...
Sente-se uma certa ânsia de "sangue" de corruptos a qualquer preço?
RC - No momento da aplicação do direito, a justiça é feita com total objetividade de acordo com as circunstâncias do caso e não para satisfazer qualquer vontade mais ou menos difusa do povo de ter mais ou menos "sangue" de que fala. Nós temos essa consciência.
É uma preocupação dos tribunais, dos juízes e procuradores, certamente, ter a confiança do público, e há muito a fazer nesses aspetos, mas nunca no que respeita à decisão, sendo a decisão a de acusar ou não acusar, a de condenar ou absolver, de condenar a uma pena de prisão efetiva ou a uma pena qualquer de substituição. Não passa por aí, não pode passar por aí.
Mas sentem que há uma maior pressão para isso, para a justiça responder a essa pressão pública?
RC - Acho que é muito bom ver em todos, numa comunidade, sede de justiça, verdadeira justiça. Agora, saber como é que é essa justiça, isso cabe ao tribunal depois. Pessoalmente, enquanto procurador, vivo muito bem com essa sede de justiça, não me pressiona minimamente.
Em geral, podemos dizer o mesmo dos juízes?
SM - Sim, sem dúvida. Nós temos na formação de magistrados já uma sinalização da necessidade de reserva na nossa vida profissional e isso também induz serenidade quando chega o momento da decisão.
É evidente que não vivemos alheados do mundo, ligamos a televisão, vemos os noticiários, mas de facto quando chega o momento da tomada da decisão, da redação da decisão, trabalhamos, como a lei nos impõe, com a nossa consciência e com a lei.
O momento da decisão deve ser, e é, necessariamente sereno, de ponderação lúcida e objetiva da prova.
Há o risco desta pressão levar a que sejam aprovados mecanismos excecionais que podem ser mais prejudiciais ao Estado de direito do que à própria corrupção, como assinala no vosso livro a professora Ferreira Leite?
PPA - O combate à corrupção não deve em caso algum servir para defraudar os princípios constitucionais que regem o direito penal e o direito processual penal português e, portanto, o combate à corrupção deve ser levado adiante no estrito respeito dos princípios constitucionais e tendo como guia e farol permanente quer para o legislador, quer para o julgador, e bem entendido também para a defesa, o respeito pelos princípios constitucionais.
A corrupção não deve justificar a criação de um regime excecional de direito penal que seria uma traição ao próprio Estado de Direito. Princípios sacramentais de direito substantivo ou de direito processual como, por exemplo, a presunção da inocência, devem ser respeitados quer na solução que o legislador propõe, quer naquela que o intérprete vai aplicar.
Nenhum de nós se revê em propostas que violam ou que possam eventualmente pôr em causa a Constituição. A Constituição mantém-se como o farol de todos estes autores e o trabalho foi desenvolvido com absoluto respeito pela jurisprudência do Tribunal Constitucional (TC) e também do Tribunal Europeu que, no fundo, guarda e mantém os mesmos princípios.
A ENA fica aquém daquilo que era preciso imediatamente ou é suficiente?
RC - O combate a um fenómeno criminal tão complexo faz-se em diferentes tabuleiros, em diferentes planos, em diferentes momentos. Nós temos estado a falar apenas de um, que é importante, que é a lei processual penal, para aplicar a lei penal, mas não é o único aspeto relevante.
Se não forem aplicadas, as boas leis não servem para nada, e, para a aplicação destas ou de outras quaisquer, nós necessitamos de meios. E ainda para mais num fenómeno criminal que é cada vez mais complexo, cada vez mais globalizado no sentido que os agentes do crime se movem pelo mundo inteiro com grande facilidade, quer fisicamente, quer, por vezes basta, virtualmente.
Ou seja, com as tecnologias que hoje temos conseguem praticar factos, transferências bancárias, controlar contas, fazer negócios, em qualquer parte do mundo sem sair do mesmo local, e isso traz dificuldades acrescidas.
Para além dessas dificuldades acrescidas que resultam do mundo atual, nós temos em Portugal graves dificuldades, desde há alguns anos, com o MP e com a Polícia Judiciária (PJ) que não podemos esquecer.
A PJ tem uma grave carência de quadros: as secções, as unidades nacionais tem quadros muito reduzidos, em alguns metade do que tinham há alguns anos; o MP tem uma carência grave de meios humanos, que resulta no envelhecimento da magistratura.
Há muitos magistrados que se estão a jubilar agora e não é possível ao Centro de Estudos Judiciários (CEJ) formar mais magistrados para o MP e por isso a situação tem vindo a agravar-se.
Há forma de, pelo menos, mitigar esse problema?
RC- Há algo que muito poderia atenuar este problema, reforçando os meios técnicos. Posso dar-lhe uma situação muito concreta. O MP tem uma aplicação informática, que conheço bem porque nela trabalhei, que é extraordinária e que poderia revolucionar o funcionamento do MP.
Está praticamente pronta para poder ser aplicada. O plano seria a utilização inicial no DCIAP e, depois, mais tarde, em todos os DIAP do país. Só que não pode entrar em funcionamento porque não há dinheiro para isso.
O programa foi feito com financiamento da União Europeia (UE) de forma substancial, mas não há dinheiro para o resto, para o hardware. Porquê? Porque o MP não tem orçamento próprio e está dependente do Governo e se o Governo não dá não há.
O MP não pode implementar isto porque não tem dinheiro, porque o Governo não dá. Da chamada bazuca são 146 milhões só para o IGFEJ - Instituto de Gestão Financeira e Equipamentos da Justiça. 146 milhões. Quanto daí é que vai para o MP? Zero. Zero. Ou seja, a questão dos meios é tudo.
Ou seja, leva-nos sempre à questão da autonomia financeira do MP, que não existe em Portugal, apesar de ser ponto essencial para a existência do Estado Direito segundo o Conselho da Europa. E aí está o ponto crucial de execução de qualquer estratégia de combate ao crime.
De acordo com dados da Pordata a confiança na justiça atingiu o seu ponto mais baixo em 2010, em que 28% dos cidadãos "tendiam a confiar na justiça", e o mais alto em agosto de 2020, com 50%. Depois caiu novamente em fevereiro deste ano para 42%. Que enquadramento é que se pode dar a estas evoluções? Isso tem a ver com esta desilusão entre detenções e condenações? São as leis? São os meios?
SM - Acho que temos de ter presente que os julgamentos decorrem dentro de determinadas regras, sobre a admissibilidade dos meios de prova, sobre o contraditório que assiste às partes relativamente aos meios de prova.
Por vezes, creio que não há a perceção no exterior sobre a forma como se processam os julgamentos e que a circunstância de haver uma absolvição não significa necessariamente que tenha havido um fracasso.
O processo é uma dinâmica de apuramento das responsabilidades de acordo com regras legalmente estabelecidas. Se se chegou a uma absolvição é porque é esse o caminho para onde conduzem as regras. Não posso taxar uma absolvição necessariamente como um fracasso.
A opinião pública não entende bem porque é que demoram tanto tempo os processos e porque é que há tão poucas condenações. O que é preciso dizer?
PPA - O processo penal português, como já foi dito, obedece a regras que são muito favoráveis à defesa no sentido de facultar todos os meios possíveis a que se realize um contraditório justo. Portanto, aquele peso que tem, e naturalmente deve ter, o MP na fase inicial da investigação pode ser contrariado e contraditado em fases posteriores.
Tudo isto, obviamente, se jogado de acordo com as regras tem o seu custo em termos de tempo. O tempo mediático, o tempo dos jornais, não pode nunca ser o tempo da justiça. Ai de nós se assim fosse, porque voltávamos à justiça de pelourinho e, portanto, acabávamos por julgar as pessoas na praça pública.
Não é isso que um Estado de Direito é - e, portanto, tendo nós um código de processo penal que respeita os princípios fundamentais da defesa, como não poderia deixar de ser por imperativo da Constituição e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, obviamente, o funcionamento desta máquina tem um custo em termos de tempo. Agora, também obviamente se exige que a máquina funcione de uma forma mais célere.
Se houvesse mais meios provavelmente havia resultados mais rápidos, quer fossem absolvições ou condenações, não deixando pessoas com o estatuto de suspeitos durante uma eternidade e mostrando à opinião pública que se está dar prioridade a este combate?
RC - Sim. Nós em Portugal continuamos a ter um problema de celeridade na justiça, não tão grave como era há uns anos, sendo que a justiça criminal não é aquela que mais problemas tem, de modo algum. Em boa parte, a justiça criminal funciona até de uma forma muito célere.
O problema está nos processos muito complexos e nesses processos muito complexos boa parte deles são de corrupção. E aí, sim, é inquestionável, o processo demora muito mais do que idealmente deveria demorar. No inquérito, na investigação, na instrução e no julgamento.
Há muito a fazer, acho que todos têm essa consciência. Apesar de, penso eu, que por mais rápido que fosse nunca satisfaria a vontade de celeridade do cidadão. As pessoas querem tudo hoje, agora. A justiça não é nem nunca deverá ser isso.
Mas acham que essa demora é mais por causa da falta de meios da parte da investigação ou é também todos os recursos que os arguidos têm acesso para sua defesa e garantias, etc, e que são multiplicados até à exaustão pelos advogados...
RC - Quando o processo está em segredo de justiça essas possibilidades não são muitas. Agora, já há vários exemplos de alguns processos que estão pendentes, de investigação de criminalidade complexa sem segredo de justiça, ou seja, com os investigados a poderem aceder livremente ao processo, em que o processo nunca mais acaba, porque qualquer coisa que seja dá origem a uma intervenção do juiz de instrução suscitada pelo arguido, seja ou não competência do juiz de instrução, que dá recurso para a Relação e depois para o Tribunal Constitucional. Há casos aí assim e esses nunca mais acabam.
Há pouco falámos sobre a prevenção. A estratégia que está a ser legislada propõe a criação de uma agência com essa função, mas nós temos o Conselho de Prevenção da Corrupção (CPC) há 13 anos, que não tem quase recursos, como sabem. Não há aqui duplicação de funções?
RC- Pode ser um problema, esse é um outro aspeto que exigiria um outro tipo de reflexão. Nós temos o CPC que com alguns resultados, com grande limitação de meios, tem vindo a fazer um trabalho que é aquilo que é exigível àquele Conselho.
Temos a Entidade para a Transparência que não está, dois anos depois, implementada nem em vias de o ser, o que não surpreende ninguém porque isso desde logo foi adivinhado que iria acontecer, desde logo pelo presidente do TC, que identificou logo essas grandes dificuldades.
E agora quer-se uma outra entidade. Aquilo que defendo desde há muitos anos é a existência de uma entidade que englobe as funções que são destas três, como a que já existe em alguns países, nomeadamente em França.
Uma entidade verdadeiramente independente, como é a autoridade para a transparência da vida pública em França. Pode ter em comissão de serviço juízes, procuradores, investigadores, analistas financeiros, como acontece em França, e com essas funções, porque elas depois estão todas ligadas, qualquer tipo de ação para a transparência tem uma importante função de prevenção. Tal como está, acho que vai gerar redundâncias e ineficiências.
Concorda professor Paulo Pinto de Albuquerque?
PPA - Não tenho um parti pris contra as opções do Governo, acho que muito dependerá de uma execução cuidadosa deste propósito legislativo, sobretudo através da definição rigorosa das competências e da execução articulada dessas competências.
Em 2010 foi ouvido no parlamento para a Comissão Eventual de Acompanhamento Político do Fenómeno da Corrupção, a pedido do Dr. Vera Jardim. Quais eram as suas preocupações na altura e até e ponto divergem das atuais?
PPA - Daria dois exemplos que são para mim muito significativos. Um deles, a responsabilidade criminal das pessoas coletivas. Há crimes que não se entende porque não são também imputáveis às pessoas coletivas, como a perturbação e manipulação de arrematações e concursos públicos, e exige-se essa criminalização. Acresce que há uma grave lacuna no Código do Processo Penal no tocante ao regime aplicável às pessoas coletivas.
O outro tema importantíssimo, que tem diretamente a ver com estas matérias é a reforma do direito penal económico português, que data de 1984. Ora, o mundo já deu muitas voltas desde 1984, a economia portuguesa já evoluiu muito e, portanto, as necessidades em termos de estratégia de política criminal do país e da economia portuguesa são outras completamente diferentes daquelas que existiam em 1984.
Está na altura de pensar seriamente em rever o quadro legal do direito penal económico português para que efetivamente responda às necessidades de uma economia que não é a de 1984.
E o que melhorou nestes 11 anos?
PPA - Em matéria de direito premial evolui-se no sentido de aderir às recomendações do Conselho da Europa. Houve uma avaliação muito detalhada do GRECO (Grupo de Estados Contra a Corrupção do Conselho da Europa) que produziu relatórios cujas conclusões foram em parte adotadas...
Só 3 das 15 recomendações de 2015 é que estão completamente implementadas.
PPA - Sim, é verdade. Uma delas que foi adotada e que suscitou até uma revisão do código penal, foi a transformação do efeito do direito premial em relação à corrupção numa dispensa facultativa de pena, portanto, dando ao julgador a discricionariedade para avaliar em termos premiais a colaboração do arguido, não atando as mãos do julgador e não o obrigando a dispensar da pena. Isto em resultado de uma indicação do GRECO. Fez-se uma revisão do código, em 2015, para consagrar esta proposta do GRECO...
Mas não é isso que está agora na proposta de ENA, pois não?
PPA - Não. O que vemos agora na proposta do Governo que está em cima da mesa é voltar atrás, voltarmos à dispensa obrigatória, no fundo, para estimular à viva força a colaboração dos arguidos, atando as mãos do juiz e, portanto, contrariando a indicação do GRECO. Vai ser muito difícil explicar aos nossos avaliadores internacionais esta política criminal errática.
Isso é um exemplo daquela tendência para reagir à pressão que é feita?
PPA - Será. E vai ser muito difícil de explicar aos nossos avaliadores internacionais. Eles vão querer saber porque é que nós em 2015 fizemos uma reforma, seguindo a indicação que eles nos deram, e agora voltamos atrás, voltamos à situação de 2010, sendo que não houve qualquer indicação contrária dos avaliadores internacionais.
A preocupação que também é refletida neste trabalho é a de termos sempre em consideração estas avaliações internacionais, que são um contributo importante, quer do Conselho da Europa, quer da UE, para que nós tenhamos um direito ao mais alto nível, que esteja ao nível daquele que é o quadro legal dos países mais avançados da Europa.
E porque é que só 3 em 15 recomendações do GRECO estão totalmente implementadas? Há alguma explicação para isso?
SM- Algumas estão ainda a fazer o seu caminho. Por exemplo, ao nível dos magistrados judiciais, a questão das normas éticas, que é também referida pelo GRECO, está neste momento em tratamento no Conselho Superior da Magistratura.
A questão das obrigações declarativas que passam a vincular os magistrados, tal como já vinculavam os outros titulares de cargos públicos, e que no caso da magistratura do Ministério Público já está aprovada, no nosso caso tem feito um caminho e está em fase de aprovação.
Têm noção que todas estas demoras, a começar nas investigações até à implementação de recomendações internacionais alimentam o discurso de setores mais radicais da sociedade que estão em crescendo? A celeridade de respostas também tem a ver com o travar esse tipo de tendências...
SM - Sim, compreendendo a urgência para as pessoas. Quando falamos em corrupção falamos naquilo que são os fundamentos do Estado social. Há um princípio de solidariedade que nos rege, que no fundo estabelece que devemos abdicar de uma parte dos nossos rendimentos em prol do bem comum, designadamente para construir hospitais, e digo isto sem adesão a populismos, apenas para salientar que o dinheiro dos nossos impostos efetivamente vai para o Orçamento do Estado e serve para a saúde e para a educação e para a justiça.
É este princípio de solidariedade em que assenta a nossa comunidade, que é posto em causa por fenómenos corruptivos. Portanto, compreendo que para todos os cidadãos, e para mim e para todos nós que aqui estamos, seja muito importante saber de que forma é que os recursos públicos estão a ser usados e querer que sejam usados para bem de todos nós. Compreendo essa urgência das pessoas, é legítima.
Dr. Rui Cardoso, considerou "anormal" uma adjetivação feita pelo juiz de instrução Ivo Rosa na leitura da decisão da Operação Marquês. Qual é a relevância da adjetivação seja do juiz, seja dos outros intervenientes, e o que é que contribui para o rigor da justiça nesta matéria como a corrupção?
RC- A adjetivação nesses termos não contribui em nada para a boa justiça, para uma correta comunicação da justiça, que é algo que muitas vezes falha em Portugal. Uma adjetivação exagerada transmite ao cidadão, como foi o caso, um estado de espírito de quem a faz que não é aquele que deveria presidir a um decisor.
Seja juiz ou procurador, de acordo com as suas competências, deve ser sempre, sempre, muito objetivo. E para a objetividade é importantíssima a serenidade e, quando o que se revela não é isso, faz-nos questionar a objetividade.
Nos últimos anos tem-se generalizado o conflito pessoal, o que é totalmente desnecessário. Acho que é um sinal de imaturidade, em que não se consegue discordar e fundamentar com rigor, com serenidade, nos termos do direito, sem fazer juízos de intenção a quem quer que seja.
E depois isso torna as salas de audiências, por vezes, em campos de batalha, e aí, mais uma vez, é algo que o povo não percebe. Porque é totalmente desnecessário.
Pode-se discordar, cada um defende a sua posição, com elevação, com objetividade, com argumentos jurídicos e sem entrar nessas guerras pessoais. E isso está a acontecer cada vez mais nas salas de audiências.
Qual foi para vocês o caso mais emblemático da forma como a justiça está preparada para o combate contra a corrupção?
RC- Está ou não está! É inquestionável que alguns dos grandes processos da última década, que envolveram procuradores, juízes, governantes, revelaram ao cidadão que por parte dos tribunais e do MP não se olha a quem.
A lei é igual para todos e atuamos de acordo com os princípios de legalidade e objetividade para quem quer que seja. Acho que isso hoje é inquestionável. Por outro lado, são também evidentes as dificuldades de que já falámos.
Qualquer um dos casos existentes mostra as dificuldades que existem nas diferentes fases do processo. Nós tivemos inquéritos muito demorados, com muitos anos, tivemos instruções muito demoradas, tivemos julgamentos que demoraram sete anos, e não foi um só.
Tudo isso, não identificando A ou B, evidencia aquilo de que nós temos vindo a falar. Mas sublinharia aqui, também, que os portugueses podem confiar na justiça no sentido em que é igual para todos.