"A gente sabe que somos alguém"
O que é um cigano? Como se reconhece? O que o identifica? Como saber se alguém é cigano, e como e onde procurar ciganos para saber como respondem a isso? Por exemplo descobrir ciganos em Loures, como se faz?
Começar pelo clássico do estereótipo: um bairro de barracas em Camarate, junto ao aeroporto, parcialmente demolido mas onde ainda vivem 235 pessoas, incluindo 60 crianças. A moreníssima Laura da Conceição Ramires, vestida de negro e saia comprida, encaixa no tipo. Até nisto de não saber a idade e puxar do Cartão de Cidadã para informação das repórteres. Diz lá 3 de abril de 1951, coisa que ela, analfabeta, não sabe decifrar nem, aparentemente, decorou. Está em frente à barraca a que há 25 anos chama casa, com o filho, João Carlos, de 28, um dos 10 que pôs no mundo. Os outros estão espalhados pelo país e até no estrangeiro, onde João Carlos também já andou. Agora está a tentar remendar o telhado com vista à estação das chuvas, ajudado por outro homem. Trabalhar, lamenta, não trabalha : "Ninguém dá trabalho aos ciganos", repete. Laura corrobora, num sorriso desconcertante: "Nunca trabalhei, nem eu nem o meu marido nem os meus filhos."
Na verdade, com a continuação da conversa, concede que os outros filhos trabalham e que, se nenhum deles fez grande coisa na escola, tem uma neta, em Felgueiras, lançada nos estudos. E que espera que o seu João Carlos arranje alguma ocupação na câmara. A fazer o quê, já que este confessa ser analfabeto como a mãe - "Só tenho a primeira classe, não tive cabeça para aprender" - não é fácil imaginar. De que vive, no entretanto? Encolhe os ombros: "Ando ao ferro-velho, depois vendo." Quanto a Laura, recebia o RSI mas suspenderam-lho há três meses. "Ando a vender umas coisas, faço assim estes sacos de alhos [tem vários na mão] e vendo a um euro. Compro um quilo de batatas, um pouco de carne e vamos comendo."
A barraca não tem luz - a EDP cortou a eletricidade ao bairro todo, a 19 de outubro passado, por se tratar de puxadas ilegais, e alega não poder fazer contratos por não existirem títulos de propriedade ou contratos de arrendamento - pelo que o frigorífico não funciona, nem a TV, nem funcionará a antena satélite sobre o teto que Laura certifica não ser deles (há várias no bairro - as empresas de comunicações são menos exigentes no que respeita a contratos que a EDP). A água vem numa mangueira colocada pela Câmara. De graça: "Não pagamos nada", garante Laura, que na vida só votou uma vez, não se lembra em quem nem para quê. Mas tem esperança de algum eleito faça alguma coisa por ela: "Queria que me dessem uma casinha."
"Tu é que és diferente"
Sim: Laura e João Carlos encaixam como uma luva no discurso do estereótipo, aquele que uma recente sondagem da Aximage certifica ser o da maioria dos portugueses sobre "os ciganos". "Representações feitas de preconceitos e estereótipos determinantes nas atitudes para com eles, levando muitas vezes a pensar que, afinal, os ciganos não são desconhecidos, pois qualquer pessoa se lhes refere de forma categórica, emitindo opiniões e juízos de valor, na maioria dos casos, negativos", acusa a Resolução do Conselho de Ministros que cria a Estratégia Nacional de Integração das Comunidades Ciganas e vinca a necessidade de que se "ultrapasse o sentimento de desconfiança mútua existente entre a comunidade maioritária e a minoria cigana", promovendo "o combate à discriminação" e a "sensibilização da opinião pública". Para tanto, assume-se o compromisso de lançar, até 2020, três campanhas nesse sentido. Era essa, a crer na assinatura que figura no documento, a estratégia do primeiro-ministro Passos Coelho e atual líder do PSD em março de 2013: sensibilizar a opinião pública de modo a combater a discriminação e os estereótipos relativos aos ciganos.
José Fernandes, 52 anos, está muito sensibilizado. "Votei cinco vezes em Cavaco e a primeira vez no Passos, sempre fui simpatizante do PSD, até já pus dois automóveis a ajudar o partido numa campanha. Agora o PSD escolhe uma pessoa destas que se quer valer da etnia cigana para ganhar votos? A falar de mim e da minha família sem nos conhecer? Não estamos nos EUA, não vai dar resultado." Dono do restaurante A Petisqueira do Zé, no centro de Camarate, a um quilometro, se tanto, do Bairro da Torre, José Fernandes levanta a voz para falar do candidato autárquico apoiado por Passos. Cabelo curto, camisa às riscas e jeans, Fernandes, como o filho José Carlos, que trabalha com o pai, não encaixa na descrição tipo de cigano. "Às vezes aqui no restaurante oiço alguém a falar mal "dos ciganos". E vou logo lá dizer: "Olhe, está a falar da minha etnia, também sou cigano." As pessoas acham que sabem reconhecer-nos, que andamos todos de preto e cabelo comprido e vivemos todos do RSI. Sabe que eu, há muitos anos, para começar a trabalhar em restauração, tive de arranjar um sócio para dar a cara, para poder arrendar os espaços, senão não conseguia nada?"
O filho, que está, em lugar não elegível, na listasdo BE para a junta de freguesia de Sacavém/Prior Velho, assente. "Comprei uma casa em Sacavém, numa zona de população bastante envelhecida. As pessoas do meu prédio são idosas e quando souberam que ia para lá viver um cigano - perceberam quando viram a minha mulher, por causa dos cabelos - ficaram todos alarmadas. Até fizeram uma reunião, contaram-me depois. Agora toda a gente gosta de mim lá, até veio ter comigo um filho de um dos idosos e deu-me a chave de casa do pai, para se for preciso alguma coisa. Mas quando digo "veem, os ciganos não são como as pessoas pensam", respondem "não, tu é que és diferente.""
"Chamam-nos sanguessugas"
"É indispensável que estas imagens seculares sejam alteradas, porque bloqueiam a compreensão e perturbam a comunicação entre ciganos e não ciganos. O conhecimento da história e cultura deste povo, bem como o estudo da génese dos estereótipos, faz indiscutivelmente parte dos passos que têm que ser dados na criação de novas dinâmicas" - é de novo Passos primeiro-ministro a falar, na sua estratégia de 2013.
De novo a pergunta: que faz alguém ser cigano? Linhagem? Comportamento? Cultura? O primeiro estudo nacional sobre a comunidade cigana, publicado em 2014 como parte da citada estratégica nacional (ver texto nestas páginas), deparou-se naturalmente com essa dificuldade: "Um dos problemas metodológicos subjacentes à inquirição de pessoas de etnia cigana refere-se ao modo de identificação." A solução é a única possível - "utilizamos como critério chave no processo de inquirição a autofiliação étnica, em que a pessoa se identifica como cigano." Ainda assim, permanece outra questão: como chegar até às pessoas que se autodenominam como ciganas? Onde procurá-las? Por exemplo: numa reportagem sobre isso a que se dá o nome de "comunidade cigana de Loures", faz-se como? Vai-se pela rua num concelho de mais de 204 mil pessoas das quais, a crer no estudo referido, menos de 0,3% serão ciganas, a perguntar às pessoas se o são? Ou, na perspetiva do estereótipo e da facilidade, ruma-se a um bairro social famoso, como a Quinta da Fonte, propalado para a fama pelos confrontos, em 2008, entre ciganos e negros? Nenhuma opção será inocente, nem a hora a que se faz a incursão. Num dia de semana, durante a manhã e o início da tarde, só encontraremos nas ruas de um bairro como esse pessoas que não estudam nem trabalham; e esse será o universo dos entrevistados e a perceção com que quem lê ficará: a de que os ciganos vivem em bairros sociais e do RSI ou de expedientes.
Porque, ao contrário do que se passa com outras minorias étnicas, se não se vestirem ou apresentarem de forma diferentes, se não forem encontrados nos locais onde esperamos encontrá-los - feiras, por exemplo - os ciganos não se distinguirão do comum dos outros portugueses: são aquilo a que se costuma chamar "brancos". Teremos de saber por antecipação onde estão e quem são. Teremos de querer encontrá-los noutros lugares que não os do estereótipo. E também isso, claro, é uma escolha.
Por exemplo Ezequiel Sá, 35 anos, coordenador na Science 4 you, empresa há 10 anos a produzir brinquedos que em 2016 faturou 18 milhões de euros. Sediada em Loures, no MARL, tem 356 trabalhadores, dos quais 15 a 20 ciganos - "Não podemos dizer o número certo porque não temos os nossos empregados assim identificados", informa uma responsável do departamento de recursos humanos. "Temos uma política de recrutamento muito aberta, não fazemos discriminação."
Com o 6º ano, casado com uma não cigana que também trabalha na empresa e muito elogiado pelos recursos humanos como alguém que "sabe muito bem manter a harmonia", o aprazível Ezequiel viveu até aos 13 anos no bairro de barracas do Prior Velho, demolido aquando da requalificação da zona na altura da Expo 98, e depois num bairro social. Aos 18 , seguindo a tradição cigana, "fugiu" com a mulher, da mesma idade. Quando voltaram toda a gente os considerou casados. "A minha mãe é viúva e idealizava que eu casasse com uma cigana, e a família dela também não aceitava, tinham a ideia errada dos ciganos. Agora já nos damos bem."
A mulher, com o 12º ano, desistiu do sonho de seguir Direito "para ir trabalhar connosco nas feiras". Uma escolha que Ezequiel qualifica como "de amor" mas que espera os filhos, um rapaz de 15 e uma rapariga de 13, ambos na escola, ele no 10º e ela no 8º, não façam: "Hoje arrependo-me muito de não ter estudado. Digo-lhes: estudem, senão vão carregar caixas, que foi como comecei aqui." Quase três anos depois está à beira de se tornar efetivo. Com um emprego e viver numa casa comprada com empréstimo bancário, por 100 mil euros ("Se vivesse num bairro social ia pagar renda de acordo com o IRS. Para pagar 200 euros prefiro pagar 300 e ter algo para deixar aos meus filhos"), Ezequiel não se revê na "má imagem" que há dos ciganos e com as coisas que lê no Facebook. "Às vezes até evito ver. Chamam-nos tudo, sanguessugas, criminosos... E dizem para irmos para a nossa terra. Qual é a minha terra? Sou português. Claro que há bons e maus ciganos, como em tudo. Não podemos ser todos julgados como se fossemos iguais. Os maus ciganos também não quero ao pé de mim. E há muitos à procura de trabalho. Os que não aparentam ser nem dizem que são, por causa dessa imagem que foi criada." Os media, acha, são grandes responsáveis por isso. "Há uns anos só falavam de ciganos a propósito de coisas más, como tráfico. Agora isso está muito melhor, desde que proibiram." Proibiram? "Sim, não é proibido falar de ciganos assim?" Surpreendido por descobrir que não, garante que nestas autárquicas vai votar "com mais ganas", por causa do candidato do PSD. "O que ele diz é mentira e acho que com este discurso não vai ter êxito."
"Acham sempre que vamos roubar"
Outro casal que aqui trabalha é o de Manuela Anjo e marido. Manuela tem 30 anos e o 4º ano: "Sabe como é as ciganas." Como é? Não gostava de estudar? "Não era não gostar. Entrei para a escola muito tarde, já tinha uns 18 quando cheguei ao 4º. A professora até era boa para mim, mas os outros chamavam-me cigana. Sentia-me." E, atendendo a que dos cinco filhos a primeira tem 13, estava prestes a ser mãe. Um exemplo que espera as filhas não repliquem. "Estão todos na escola. Quero que tirem um curso e sejam alguém na vida, não é como a mãe e o pai." A mãe e o pai não são alguém? Hesita, sorri. "A gente sabe que somos alguém. Mas somos discriminados."
Como quando andou à procura de casa para alugar: "Sim, porque eu apesar de ser cigana não vivo numa casa da Câmara. E chegaram a dizer-me na cara que não alugavam por sermos ciganos. O meu marido até disse que ia chamar a polícia, chamou racista à pessoa. Mas não fizemos nada. Para quê. E nas lojas acham sempre que vamos roubar. Nunca mexi em nada de ninguém, fico a sentir-me tão mal. Não sei porque fazem isto. Somos todos iguais, somos todos humanos." Mulheres e homens também. Mas Manuela, se é contra a tradição de tirar as raparigas da escola para não conviverem com não ciganos após a puberdade - "Isso para mim não faz sentido nenhum, desde que elas se portem bem podem ficar na escola" - acha que há regras para elas que não se aplicam a eles. "Porque a nossa raça é diferente em termos de namorar: a rapariga que não chega virgem ao casamento o rapaz não a quer. Não gostaria que a minha filha andasse aqui e ali." Sair à noite, por exemplo, não é para ciganas. Já os rapazes podem: "A partir dos 18/19 anos eles fazem o que querem. E elas não ficam tristes. Teriam vergonha se falassem mal delas."
Indesmentível que, 500 anos depois da chegada dos antepassados de Manuela a Portugal, vindos da longínqua Índia, e após séculos de éditos de expulsão e repressão constante - da proibição de falar "a sua língua" (o "caló") e usar "os seus trajes" à retirada das crianças ciganas às famílias (em 1800, decretava-se a respetiva entrega à Casa Pia) e, até 1985, a ordem para a polícia se manter de "prevenção" aos membros do grupo -, a subsistência de uma comunidade com características tão marcadas só foi possível pelo controlo férreo da linha reprodutiva, ou seja, das mulheres. E, apesar de a maioria dos respondentes ao inquérito citado dizer que aceita a igualdade entre homens e mulheres, a prática desmente-o - até porque a igualdade plena tenderá a corresponder à diluição da etnia.
"Defino-me como uma pessoa normal"
O Código Civil de 1966 permitia ao homem repudiar a noiva não virgem e estabelecia ser ele o chefe de família enquanto a mulher se ocupava da casa e dos filhos; o catolicismo prescreve que as pessoas se casem só uma vez e para toda a vida. Algumas das regras em vigor na comunidade cigana estão pois alinhadas com uma ordem jurídica nacional não muito distante ou com uma visão hiper conservadora da sociedade e dos papéis de género.
A religião, aliás, parece ter muita importância na comunidade. No inquérito de 2014, a maioria dos ciganos designou-se como evangélica, na variante Igreja de Filadélfia. À entrada do famoso bairro da Quinta da Fonte, precisamente, o que chama a atenção na luz filtrada do final de tarde é uma sala de porta aberta, impecavelmente limpa, que várias pessoas, mulheres e homens, cuidam - uma dependência dessa igreja.
É terça-feira, o dia em que a campanha do PSD e o seu cabeça de lista passaram por aqui. "Ainda lhe gritámos para vir, que a gente não morde, mas ele fugiu." Miguel Fernandes, 31 anos, parente do dono do restaurante de Camarate, sorri. "Vieram aqui dois do partido perguntar se ele podia vir falar connosco, e dissemos que sim, que não lhe fazíamos mal. Mas ele não veio."
Feirante, como tantos ciganos, Miguel casou novo, como a maioria e como a maioria largou a escola cedo, no 9º ano. Com Joaquim Araújo, 46 anos, desempregado que "se levanta às cinco da manhã para ir à amêijoa no Tejo" e o irmão Fábio, de 50, que chega do trabalho numa fábrica de azeite, Miguel senta-se à conversa com o DN. Fala-se de de impostos e de Segurança Social (deteta-se um certo desconhecimento sobre estas matérias nos três ), e do que acham que faz falta em Loures. Até que chega o filho de Joaquim, Sancho, 14 anos, todo equipado para o futebol com uma camisola a dizer "cigano". "Quer seguir o exemplo do primo Quaresma", anuncia o pai, orgulhoso.
E o que é isso de ser cigano? "É ter respeito pelo próximo, pelos mais velhos. É o casamento - casar aos 16/17 anos e quando tens 80 ainda estares ao lado dela. É amor", responde Joaquim, poético. Casar com quem? "Agora a etnia cigana está mais aberta ao casamento com outra raça", garante. OK, mas como se define mesmo um cigano? "Acho que estou a perceber a pergunta", diz Miguel. "Eu defino-me como uma pessoa normal. As pessoas perguntam: És cigano ou és português? Isso não tem lógica. Sou cigano e português. E sou português antes de ser cigano."
[destaque:Muito jovens, pouco escolarizados e ainda muito desconhecidos]
Investigação. Em janeiro de 2015 foi apresentado o primeiro estudo nacional sobre os ciganos portugueses. Foram enviados inquéritos a todas as autarquias, das quais pouco mais de metade responderam; das que responderam 32% (correspondendo a 13% dos municípios) fizeram-no para afirmar não ter ciganos no seu território. Com base nessas respostas, o concelho com mais ciganos, em termos percentuais, é Monforte (distrito de Portalegre) com 75,9 por mil; aquele que registou mais em termos absolutos é o de Lisboa: 2987. Já para traçar o perfil da comunidade, foi inquirida uma amostra de 1599 "representantes de agregado familiar". Assim, concluiu-se existirem cerca de 37 mil ciganos no país, dos quais 27,1% não sabem ler nem escrever e mais de metade não completou sequer o primeiro ciclo do ensino básico. Só 2,3% chegaram ao o fim do secundário, 0,4% do ensino médio/profissional e apenas 0,1% têm uma licenciatura. Estas informações têm de ser encaradas com reserva, já que 48% das pessoas identificadas como ciganas têm menos de 18 anos (o que faz desta população uma exceção no inverno demográfico português) e portanto estão ainda em idade escolar. O mesmo se aplica, naturalmente, à revelação de que uma percentagem muito significativa nunca terá trabalhado - sendo que o estudo conclui que os inquiridos tendem a só considerar "trabalho" o emprego por conta de outrem, uma vez que aqueles que se dedicam à venda ambulante (incluídos nos 15% que são classificados como "dependendo do trabalho para viver") dizem nunca ter tido um trabalho. Por fim, mais de metade - não é fácil encontrar a percentagem exata nas 300 páginas do estudo - recebe o RSI.
Existe, porém, um viés importante na investigação: "Regra geral, os questionários foram respondidos pelos técnicos dos serviços municipais" que "tendem a reportar os números de ciganos que conhecem e a residir em habitação social (...) e beneficiários de serviços e apoios sociais. Temos presente que de alguma forma estas fontes enviesam os resultados, pois tendem a não abranger ciganos que não beneficiem de apoios sociais ou não residam em habitação camarária ou social."
Esta reportagem sobre publicada originalmente a 23 de setembro de 2017