O antigo primeiro-ministro e peça central no julgamento em torno da Operação Marquês voltou ontem a atacar o Ministério Público em várias frentes, tanto por sentir que a sua vida privada estava a ser alvo de devassa - ao serem ouvidas gravações de escutas telefónicas que os procuradores consideraram fundamentais para o caso - como por, sustentou José Sócrates sobre o projeto de alta velocidade que foi bandeira do seu governo, a “acusação criminal” estar assente “numa opção política”. Ao longo do dia ainda foi confrontado com as ligações do Grupo Lena à Venezuela e a Angola, que implicou outras escutas.O dia começou com as perguntas que os procuradores tinham congelado na sessão anterior sobre contactos telefónicos entre José Sócrates e o antigo presidente do Grupo Espírito Santo Ricardo Salgado.De acordo com o procurador Rui Leal e com base no “auto de busca de apreensão do telemóvel”, que permitiu ter acesso ao equipamento do arguido, a 24 de março de 2014 José Sócrates “tinha dois contactos de Ricardo Salgado”, que o antigo governante não consegue explicar.“A minha memória indica que não tinha contacto de Ricardo Salgado”, garantiu José Sócrates, acrescentando que nunca ligou a Ricardo Salgado nos anos em que esteve em Paris.“Só lhe liguei quando foi constituído arguido e para lhe expressar uma palavra de ânimo”, assegurou, antes de dizer ao tribunal que todos os contactos com o antigo presidente do Grupo Espírito Santo antes desse tinham sido mediados pela sua secretária.Os procuradores do Ministério Público apresentaram um registo da localização das chamadas de José Sócrates na noite em que acreditam que o arguido foi jantar a casa de Ricardo Salgado.O procurador Rui Leal não especificou o número de chamadas, mas José Sócrates tentou interpretar a informação sobre a localização e o número de chamadas dessa noite, em que alega ter ido a casa do antigo banqueiro só por meia hora e sem ter jantado.“Saí para ir jantar, mas passei o tempo a fazer chamadas?”, questionou.Rui Leal esclareceu o arguido referindo que o que está em causa tanto podem ser chamadas como outro tipo de contactos, entre SMS e chamadas não atendidas.Porém, nesta fase, os participantes na audiência referiram dificuldades em interpretar o texto relativo ao registo destas comunicações, pelo que o MP acaba por sugerir que seja um órgão de polícia criminal a traduzir o documento, para que possa ser entendido por “leigos”.Angola, Venezuela e devassa da vida privadaO procurador Rómulo Mateus questionou José Sócrates sobre se, no esforço de desenvolver políticas de internacionalização para o setor empresarial, utilizou os contactos para promover grupos no estrangeiro.Depois de uma resposta que o representante do MP considerou “monocórdica” - “sim” -, José Sócrates esclareceu que procurou “pôr a diplomacia ao serviço das exportações portuguesas” e que “todas as embaixadas tinham orientações para dedicarem atenção” a este processo.“Todas as relações internacionais que eu próprio desenvolvia tinham essa preocupação”, completou, acabando por referir as relações com a América Latina, “com o Brasil e mais tarde, a partir de 2009, com a Venezuela”.O antigo primeiro-ministro assegurou que o Grupo Lena não foi prejudicado nem beneficiado neste processo, respondendo a uma pergunta lançada pelo procurador nesse sentido.Depois de Sócrates lembrar a crise financeira de 2008, motivada pela falência do Lehman Brothers, o arguido disse que a obrigação de um Governo nestas circunstância era não “dormir”.Mais tarde, um momento de exaltação, depois de Rómulo Mateus ter assinalado a disponibilidade demonstrada pelo arguido em mostrar uma lista de empresas que tinha ajudado já depois de ter deixado as funções de primeiro-ministro, levou a que José Sócrates tivesse acusado o MP de estar a fazer “pornografia”, por querer ouvir escutas telefónicas, tal como tinha feito na sessão do dia anterior.“Não prometi entregar lista nenhuma e não vou entregar lista nenhuma. Não vou andar a divulgar a vida das empresas junto do Ministério Público ou de estranhos. Isso não é matéria que se peça a ninguém. Fiz isso por muitas empresas, mas naturalmente as empresas não me autorizaram. Fiz isso no estreito cumprimento daquilo que considero serem os deveres de um antigo primeiro-ministro.”“O que o senhor procurador quer é a pornografia, ao expor a conversa entre as duas pessoas”, disse o arguido, depois de ter sido confrontado com a possibilidade de ser ouvida uma conversa com Manuel Vicente, vice-presidente de Angola entre 2012 e 2017.“O que o procurador deseja é exibir a pornografia da conversa de duas pessoas. O que já fez ontem [na sessão de segunda-feira] com a escuta [da conversa] com Fernanda Câncio foi humilhar”, acusou.As reservas levantadas pelo antigo governante em relação à audição das suas conversa levaram a juíza presidente, Susana Seca, a interromper os trabalhos, mas não impediram que a conversa com Manuel Vicente fosse ouvida.Para explicar as ligações entre o Grupo Lena e Angola, Sócrates dissera que “dois dirigentes da empresa Lena, em 2009, estiveram num jantar comício em Leiria”, que o apoiaram pessoalmente e que confidenciaram que “tinham uma obra em Angola, em que não lhes pagavam, e que já tinha sido executada”, pelo que “queriam que alguém intercedesse junto do Governo angolano de forma a que pudessem ser recebidos. Telefonei a Manuel Vicente”, explicou o arguido.Com o argumento de que as respostas de José Sócrates foram “imprecisas” sobre esta matéria, Rómulo Mateus insistiu para que a gravação da conversa fosse ouvida na audiência, o que aconteceu. Ouve-se Sócrates a devolver uma chamada que lhe tinha sido feita, que foi parar ao gabinete de Manuel Vicente.Pede ao ex-vice-presidente angolano que receba “umas pessoas” que, explicou, gostaria “de lhe recomendar”.“A quem devo muitas atenções”, detalhou.Manuel Vicente acabou por sugerir que essa conversa acontecesse em outubro de 2013, mas, depois de uma referência à participação do antigo governante angolano na Assembleia das Nações Unidas, que aconteceria pouco tempo depois em Nova Iorque, Sócrates propôs que se encontrassem lá, o que foi aceite.Depois, questionado por Rómulo Mateus sobre há quanto tempo é que devia “atenções”, Sócrates disse ser “muito claro” que devia atenções a quem o “apoiou na campanha eleitoral”.O antigo governante criticou o procurador por “esta ideia de ver maldade na expressão” de “sincera cordialidade nas relações das pessoas”.Interrogado pela juíza sobre se esta intermediação visava o reconhecimento do Grupo Lena, Sócrates garantiu apenas que nunca recebeu dinheiro e nunca se dedicou ao lobbying.Rómulo Mateus ainda questionou José Sócrates sobre se naquela altura, em 2013, havia dificuldade de exportar divisas a partir de Angola.Sócrates garantiu não fazer ideia, e o procurador ainda apontou alguma “pressa” no encontro entre Sócrates e Manuel Vicente, por ter sugerido como palco daquele encontro Nova Iorque, mas o arguido só argumentou: “Essa pressa só existe no espírito do senhor procurador.”Mais tarde, Rómulo Mateus questionou Sócrates sobre “fundos para pagamentos especiais” na Venezuela, explicando depois que se tratariam de fundo soberanos.“Não faço ideia de como isso se passava”, garantiu o arguido, para quem só era evidente que “o Governo da Venezuela estava a dever dinheiro a empresas portuguesas”.Com esta indicação, Sócrates acrescentou que sempre teve “uma boa relação com o presidente [Nicolás] Maduro”, que era ministro dos Negócios Estrangeiros no tempo de Hugo Chávez, com quem não fala, garante, desde o momento em que o atual presidente da Venezuela tomou posse.Rómulo Mateus voltou a questionar o arguido sobre os fundos, desta vez aludindo a uma conversa entre o ex-presidente da Octapharma, Paulo Castro, e José Sócrates, onde são referidos os fundos.Na conversa, cuja gravação foi reproduzida no tribunal, Sócrates refere um jantar que tinha marcado com Temir Porras − e que não terá acontecido, de acordo com o arguido −, que é descrito como um braço direito de Maduro.Questionado, durante a chamada, por Paulo Castro, sobre que pasta tinha Temir Porras, José Sócrates enfatiza a resposta: “Não sabe como funciona aquele país [...], ele tem a pasta fundamental, que é o dinheiro dos fundos.”Depois, questionado por Rómulo Mateus sobre que fundos eram aqueles, Sócrates lembrou apenas que em 2013 “exercia funções na Octapharma para a América Latina e era muito natural que falasse com o presidente”. Sobre os fundos, disse que eram “fundos financeiros”. .Breve história do Processo Marquês escrita no dia em que faz 10 anos.Sócrates regressa esta semana a tribunal. O que esperar após as férias judiciais?.Da motivação política da acusação ao ano sabático em Paris, Sócrates ataca MP