O projeto de resolução do PS que pretende que o Governo negoceie na reunião de líderes euroepeus, na Dinamarca, em outubro, a harmonização das medidas do regulamento da Comissão Europeia para combater a proliferação de conteúdos ilegais de menores, que implica uma fiscalização prévia de todas as mensagens de todos os utilizadores, foi esta sexta-feira, 19 de setembro, aprovada no Parlamento. Baixa agora à Comissão dos Assuntos Constitucionais.IL, Chega, Livre e BE também apresentaram medidas sobre a matéria, no sentido de rejeitar o chamado "chat control" liminarmente – com o argumento de que significava um atentado grave ao direito à privacidade –, mas foram chumbadas pela maioria parlamentar.O deputado socialista João Torres começou por defender que "o abuso sexual de crianças é uma das mais graves violações da dignidade humana", classificando-o como "um crime hediondo que deixa marca profundas e irrecuperáveis na vida das vítimas". Com a ideia de que é também um "fenómeno que se agravou com a expansão das plataformas digitais, tornando-se mais difuso, mais oculto e mais difícil de combater", o deputado do PS explicou que, para a sua bancada, "há sempre discussão quando está em causa o crime de abuso sexual de menores, e a União Europeia não pode ficar indiferente".Antes da intervenção de João Torres, já IL, Chega e Livre tinham apresentado vários argumentos para que o Governo português transmitisse a Bruxelas, sem direito a discussão sobre matéria, uma rejeição de Portugal face à potencial adoção deste regulamento, que tem sido proposto pela Dinamarca, que preside ao Conselho da União Europeia."A criminalização [de conteúdos relacionados com abusos sexuais de menores] já é obrigatória desde a diretiva de 2011, mas a realidade mostra-nos que a resposta continua insuficiente e fragmentada", argumentou João Torres, lembrando que "algumas empresas tomaram iniciativas voluntárias, mas de forma desigual e limitada"."A intenção é harmonizar regras reforçar a prevenção, tornar obrigatória a deteção e criar um Centro Europeu de Coordenação e Apoio" sobre esta matéria, explicou o deputado, ainda que tenha ressalvado que, apesar dos objetivos serem "justos, mais do que legítimos, o caminho proposto não pode deixar de suscitar dúvidas sérias". "Organizações da sociedade civil, especialistas em cibersegurança e defensores da privacidade alertam para os riscos de monitorização excessiva de comunicações interpessoais", destacou o deputado socialista, recordando que "há receio de que medidas mal calibradas abram espaço a formas de vigilância em massa, comprometendo o equilíbrio entre a proteção das crianças e os direitos fundamentais dos cidadãos".Porém, a posição do PS relativamente a este regulamento, explicou João Torres, passa por "uma resposta firme, mas equilibrada". "Defendemos que qualquer medida de deteção ou denúncia seja sempre precedida de mandado judicial, defendemos que a ação das autoridades respeite os critérios de proporcionalidade e se encaminhe para casos concretos em que exista uma suspeita razoável de envolvimento em crimes de abuso sexual de crianças", elencou. "Mas ao mesmo tempo – e este aspeto é essencial – reafirmamos que a revolução digital em curso não pode deixar de ser acompanhada e regulada, porque, se nada fizermos, se não dotarem as nossas sociedades de instrumentos adequados, vastos fenómenos de criminalidade crescerão diante de todos sem que possamos responder à altura da gravidade dos desafios", justificou, antes de concluir que "Portugal deve ser uma parte ativa nesta discussão europeia"."O nosso compromisso [do PS] é duplo e inseparável: proteger as crianças e proteger a liberdade", rematou, recomendando ao Governo "que procure acomodar estas preocupações no âmbito – importa sublinhar – de um processo negocial que ainda está em curso".No final da manhã, a proposta do PS foi a única aprovada sobre a matéria, com os votos favoráveis da bancada socialista, com a abstenção do PSD, Chega e CDS, e com os votos contra dos restantes partidos.Il pede "mandato" para o Governo rejeitar a proposta em BruxelasO tema foi proposto pela IL que, através da intervenção do deputado Jorge Teixeira, defendeu que esta discussão "não é apenas sobre o chamado 'chat control', é sobre como é que nós queremos viver na era digital".Com a mesma garantia dada por todos os outros partidos, de que este regulamento "nasce de uma preocupação legítima", que é "a segurança das nossas crianças na Internet", o deputado da IL afirmou que "o regulamento foi demasiado longe", porque "acaba com a encriptação das nossas mensagens"."A encriptação é a única garantia de que uma mensagem só pode ser lida por quem a envia e por quem a recebe", vincou Jorge Teixeira, acrescentando que "sem encriptação as nossas mensagens tornam-se um livro aberto".Por estes motivos, garantiu sobre a adoção do regulamento, "arriscamos a priovacidade de todos"."A partir desse dia, seremos vigiados por plataformas digitais armadas com exércitos de algoritmos a varrer as nossas conversas e a sinalizá-las depois às autoridades", vaticinou o deputado da IL, explicando alegoricamente o funcionamento do "chat control"."Com os algorítmos de hoje, quantos erros, quantos falso positivos teríamos", alertou, com uma referência aos potenciais erros do sistema."Se em Portugal temos uma constituição é para pôr um travão a iniciativas como esta", destacou, antes de se virar para o PS, com a sugestão de que a bancada socialista, para travar este cenário, "terá de emendar o seu voto contra esta iniciativa em 2022"."Esta Assembleia [da República] só tem de fazer uma coisa, que é dar ao Governo um mandato claro para rejeitar esta proposta no Conselho [da União europeia]", lançou, antes de concluir que "não há discussão, não há debate possível quando é a privacidade que está em jogo".Chega alerta para "fim da comunicação livre"Os argumentos do Chega, apresentados pelo deputado Ricardo Dias Pinto, lembram que este regulamento é "um pretexto nobre e digno", mas que é apenas isso."Se algo define e dá sentido ao ocidente é a centralidade da liberdade humana", sustentou, enquanto acusava Bruxelas de querer "a instauração de uma estrutura totalitária de vigilância sobre todos e cada um de nós"."Não quer poderes para punir criminosos, quer ferramentas de controlo, escuta e perseguição de inocentes que se atrevem a pensar diferente", afirmou, antes de apelar à denúncia desta estratégia, recorrendo para o efeito ao grupo a que o Chega pertence no Parlamento Europeu: "Temos de denunciar aqui como fazemos em Bruxelas via Patriots.""Queremos que o povo português entenda o que aqui está em causa será o fim da comunicação livre", atirou, antes de considerar que, de forma alegórica, "se o garrote do 'chat control' vier a ser imposto, nenhum e-mail será privado".Numa alusão a governos totalitários, como os de Hitler ou de Estaline, Ricardo Dias Pinto disse que "nenhuma máquina de repressão do passado teve semelhante poder".Nos argumentos do deputado do Chega surgiu ainda a ideia de que este regulamento não será a solução para o problema, até porque "os verdadeiros criminosos operam na sombra da dark web"."A isto o Chega diz não e incita todos os partidos verdadeiramente democráticos a fazer o mesmo", rematou.Livre defende que "o direito à privacidade é um pilar do Estado de Direito"De acordo com o deputado do Livre Paulo Muacho, o "chat control" é "a lei mais contestada da história da União Europeia" na mesma medida em que "é uma das maiores ameaças à liberdade, à privacidade e à reserva da intimidade da vida privada dos tempos modernos"."Nenhum de nós aceitaria que qualquer pessoa lesse ou controlasse o nosso e-mail", exemplificou, antes de afirmar que "é precisamente disso que aqui se trata".Para Paulo Muacho, a presidência dinamarquesa da União Europeia "voltou a pôr esta proposta em cima da mesa" com "o pretexto do combate ao abuso sexual de menores".Sem questionar o motivo para o regulamento e vincando "que combater a criação de conteúdos relacionados com abuso sexual de menores e jovens é urgente, e isso não pode ser colocado em questão", Paulo Muacho lembrou que a União Europeia é a maior região onde o fenómeno ocorre."Falhamos com esta crianças e jovens sempre que os seus direitos sejam postos em causa", afirmou.Porém, "sermos forçados a decidir entre o direito à segurança e o direito à privacidade não é o caminho".A diminuição de conteúdo encripatados, de acordo com o parlamentar do Livre, implica uma atenção redobrada, "num momento em que assistimos a um aumento do autoritarismo", o que pode levar a "reprimir povos inteiros", sustentou.Portanto, "o direito à privacidade é um pilar do Estado de Direito" e é "condição essencial para o exercício da liberdade de expressão, da liberdade de imprensa"."Não podemos aceitar que Governos ou empresas privadas assumam o controlo da nossa vida privada", sublinhou.CDS rejeita "chat control": "Opomo-nos claramente"Com a garantia de que a proteção das crianças "merece, quer das entidades nacionais, quer das entidades europeias, a tutela tão alargada quanto possível para evitar esse tipo de crimes que a todos repugna", o deputado centrista João Almeida afirmou no debate que "o 'chat control' tendo esse objetivo é provavelmente das piores soluções". "E, quando estamos a falar de soluções vindas da União Europeia, a concorrência é bastante grande. É das piores soluções que a União Europeia já conseguiu gerar para um problema concreto", lançou."Nós opomo-nos claramente a esta linha por razões de princípio, por razões de coerência, por razões de existirem alternativas e por razões técnicas", explicou.De acordo com João almeida, as "razões de princípio" impõem-se "porque o desequilíbrio entre aquilo que é a proteção das crianças e aquilo que é a devassa total e absoluta daquilo que é a privacidade, daquilo que são os direitos individuais, de tudo aquilo que é protegido pela própria carta dos direitos fundamentais da União europeia é total. E não somos só nós que o dizemos." O deputado do CDS lembrou que "Já houve jurisprudência da própria União Europeia a confirmá-lo, quer relativamente ao Artigo 7.º, quer relativamente ao Artigo 8.º da Carta dos Direitos Fundamentais.""Acresce a esta desproporção a insuficiência da solução técnica, como já várias entidades tecnicamente habilitadas disseram. Esta ideia de que não se fiscaliza a comunicação ponto a ponto, mas que se fiscaliza previamente é alguma coisa de extraordinário", e passa por "criar claramente as backdoors [portas que não são de entrada principal] para entrar e para permitir que seja totalmente violado tudo aquilo que temos nos nossos próprios dispositivos".Face a todos estes argumentos, concluiu João Almeida, "só há um caminho: é interromper rapidamente este processo e iniciar um novo processo, porque este não tem emenda."PCP assegura que "não é este o caminho para se proteger crianças"Com uma referência a "violação de direitos, liberdades e garantias" como forma de descrever o "chat control", a deputada do PCP Paula Santos argumentou que "não pode haver a retirada de funções soberanas do estado" e não se pode "lançar uma suspeição sobre todos os cidadãos"."É a privacidade que está colocada em causa", considerou a deputada comunista, enquando explicava que "não é este o caminho para se proteger crianças".Paula Santos criticou a obsessão que parece existir para a aplicação deste regulamento, "como se tudo o que fosse proposto pela União europeia tivesse de ser acatado".A líder parlamentar do PCP referiu ainda uma análise da associação internacional Internet Society, que alertou para o facto de o "chat control" instituir uma "vigilância massiva", pelo que "tenta resolver um problema social com uma solução totalmente tecnológica".Nessa análise, referida por Paula Santos, o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos mostra preocupação perante a "quebra da encriptação de comunicações", motivo pelo qual, sustentou a deputada comunista, "temos de defender os direitos das crianças ao seu desenvolvimento, mas este mecanismo não é solução".PSD lembra que "este regulamento está em negociação""O papel do nosso país é participar ativamente, influenciar e garantir que o texto final respeita os nossos princípios constitucionais, a Carta Europeia dos Direitos Fundamentais e a jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia", sustentou a deputada do PSD Eva Brás Pinho, numa intervenção em que começou por vincar que "o combate ao abuso sexual de crianças é um dever absoluto de qualquer Estado de Direito", porque "este tipo de crimes no espaço digital é uma das maiores ameaças do nosso tempo".Se acordo com a social-democrata, "é precisamente por esta ser uma matéria tão séria que o debate exige rigor e, acima de tudo, verdade". "O que estamos a discutir não é um regulamento para controlar o WhatsApp das pessoas. Discutimos um regulamento que quer proteger crianças do abuso sexual online. Sabemos que crimes desta natureza não conhecem fronteiras e que é só uma resposta europeia que pode ser eficaz", argumentou.Eva Brás Pinho perguntou ao Parlamento, de forma retórica, como é que é possível, "com honestidade intelectual, exigir ao Governo que rejeite um regulamento que não está terminado, que está em negociação e cuja versão final nenhum de nós conhece. Portugal não pode nem deve ausentar-se de um processo europeu onde se joga um jogo de equilíbrio difícil: de um lado, a proteção intransigente das crianças; do outro, a salvaguarda dos direitos fundamentais, como a privacidade, a reserva da vida privada e a proteção de dados."Referindo estes "sinais de que a negociação funciona" e num apelo para que se confie na "sensatez das instituições europeias", a deputada do PSD consiedrou que não se pode "aceitar discursos que transformam a União Europeia numa caricatura totalitária". "Ao longo das últimas semanas assistimos a partidos, num alarmismo injustificado, com slogans inflamados, o Estado vai ler todas as suas mensagens, o teu telemóvel vai ser um Big Brother. Isto é populismo, é uma retórica que desinforma, que mina a confiança dos cidadãos e não ajuda a proteger nenhuma criança", concluiu.No final, a proposta do PS, para que haja uma negociação dos termos do regulamento e não uma rejeição liminar do documento, foi aprovada, com o voto favorável da bancada proponente, com as abstenções do PSD, Chega e CDS, e com os restantes votos contra..“Chat control” leva partidos a debater direito à privacidade