Presidência dinamarquesa do Conselho da União Europeia tem tentado negociar com os Estados-membros a adoção do "chat control", um regulamento que prevê a “obrigação de os prestadores de serviços de comunicações e de alojamento monitorizarem, analisarem e reportarem às autoridades o conteúdo de mensagens privadas”, com o objetivo de combater o abuso sexual de crianças.
Presidência dinamarquesa do Conselho da União Europeia tem tentado negociar com os Estados-membros a adoção do "chat control", um regulamento que prevê a “obrigação de os prestadores de serviços de comunicações e de alojamento monitorizarem, analisarem e reportarem às autoridades o conteúdo de mensagens privadas”, com o objetivo de combater o abuso sexual de crianças.D.R.

Proposta do PS para discutir "chat control" no Conselho da UE aprovada no Parlamento com apoio do PSD

Partidos pediram rejeição do regulamento europeu de combate à proliferação de conteúdos ilegais de menores, que passa por fiscalizar todas as mensagens. PS e PSD querem levar o tema a Bruxelas.
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O projeto de resolução do PS que pretende que o Governo negoceie na reunião de líderes euroepeus, na Dinamarca, em outubro, a harmonização das medidas do regulamento da Comissão Europeia para combater a proliferação de conteúdos ilegais de menores, que implica uma fiscalização prévia de todas as mensagens de todos os utilizadores, foi esta sexta-feira, 19 de setembro, aprovada no Parlamento. Baixa agora à Comissão dos Assuntos Constitucionais.

IL, Chega, Livre e BE também apresentaram medidas sobre a matéria, no sentido de rejeitar o chamado "chat control" liminarmente – com o argumento de que significava um atentado grave ao direito à privacidade –, mas foram chumbadas pela maioria parlamentar.

O deputado socialista João Torres começou por defender que "o abuso sexual de crianças é uma das mais graves violações da dignidade humana", classificando-o como "um crime hediondo que deixa marca profundas e irrecuperáveis na vida das vítimas". 

Com a ideia de que é também um "fenómeno que se agravou com a expansão das plataformas digitais, tornando-se mais difuso, mais oculto e mais difícil de combater", o deputado do PS explicou que, para a sua bancada, "há sempre discussão quando está em causa o crime de abuso sexual de menores, e a União Europeia não pode ficar indiferente".

Antes da intervenção de João Torres, já IL, Chega e Livre tinham apresentado vários argumentos para que o Governo português transmitisse a Bruxelas, sem direito a discussão sobre matéria, uma rejeição de Portugal face à potencial adoção deste regulamento, que tem sido proposto pela Dinamarca, que preside ao Conselho da União Europeia.

"A criminalização [de conteúdos relacionados com abusos sexuais de menores] já é obrigatória desde a diretiva de 2011, mas a realidade mostra-nos que a resposta continua insuficiente e fragmentada", argumentou João Torres, lembrando que "algumas empresas tomaram iniciativas voluntárias, mas de forma desigual e limitada".

"A intenção é harmonizar regras reforçar a prevenção, tornar obrigatória a deteção e criar um Centro Europeu de Coordenação e Apoio" sobre esta matéria, explicou o deputado, ainda que tenha ressalvado que, apesar dos objetivos serem "justos, mais do que legítimos, o caminho proposto não pode deixar de suscitar dúvidas sérias". 

"Organizações da sociedade civil, especialistas em cibersegurança e defensores da privacidade alertam para os riscos de monitorização excessiva de comunicações interpessoais", destacou o deputado socialista, recordando que "há receio de que medidas mal calibradas abram espaço a formas de vigilância em massa, comprometendo o equilíbrio entre a proteção das crianças e os direitos fundamentais dos cidadãos".

Porém, a posição do PS relativamente a este regulamento, explicou João Torres, passa por "uma resposta firme, mas equilibrada".

"Defendemos que qualquer medida de deteção ou denúncia seja sempre precedida de mandado judicial, defendemos que a ação das autoridades respeite os critérios de proporcionalidade e se encaminhe para casos concretos em que exista uma suspeita razoável de envolvimento em crimes de abuso sexual de crianças", elencou.

"Mas ao mesmo tempo – e este aspeto é essencial – reafirmamos que a revolução digital em curso não pode deixar de ser acompanhada e regulada, porque, se nada fizermos, se não dotarem as nossas sociedades de instrumentos adequados, vastos fenómenos de criminalidade crescerão diante de todos sem que possamos responder à altura da gravidade dos desafios", justificou, antes de concluir que "Portugal deve ser uma parte ativa nesta discussão europeia".

"O nosso compromisso [do PS] é duplo e inseparável: proteger as crianças e proteger a liberdade", rematou, recomendando ao Governo "que procure acomodar estas preocupações no âmbito – importa sublinhar – de um processo negocial que ainda está em curso".

No final da manhã, a proposta do PS foi a única aprovada sobre a matéria, com os votos favoráveis da bancada socialista, com a abstenção do PSD, Chega e CDS, e com os votos contra dos restantes partidos.

Il pede "mandato" para o Governo rejeitar a proposta em Bruxelas

O tema foi proposto pela IL que, através da intervenção do deputado Jorge Teixeira, defendeu que esta discussão "não é apenas sobre o chamado 'chat control', é sobre como é que nós queremos viver na era digital".

Com a mesma garantia dada por todos os outros partidos, de que este regulamento "nasce de uma preocupação legítima", que é "a segurança das nossas crianças na Internet", o deputado da IL afirmou que "o regulamento foi demasiado longe", porque "acaba com a encriptação das nossas mensagens".

"A encriptação é a única garantia de que uma mensagem só pode ser lida por quem a envia e por quem a recebe", vincou Jorge Teixeira, acrescentando que "sem encriptação as nossas mensagens tornam-se um livro aberto".

Por estes motivos, garantiu sobre a adoção do regulamento, "arriscamos a priovacidade de todos".

"A partir desse dia, seremos vigiados por plataformas digitais armadas com exércitos de algoritmos a varrer as nossas conversas e a sinalizá-las depois às autoridades", vaticinou o deputado da IL, explicando alegoricamente o funcionamento do "chat control".

"Com os algorítmos de hoje, quantos erros, quantos falso positivos teríamos", alertou, com uma referência aos potenciais erros do sistema.

"Se em Portugal temos uma constituição é para pôr um travão a iniciativas como esta", destacou, antes de se virar para o PS, com a sugestão de que a bancada socialista, para travar este cenário, "terá de emendar o seu voto contra esta iniciativa em 2022".

"Esta Assembleia [da República] só tem de fazer uma coisa, que é dar ao Governo um mandato claro para rejeitar esta proposta no Conselho [da União europeia]", lançou, antes de concluir que "não há discussão, não há debate possível quando é a privacidade que está em jogo".

Chega alerta para "fim da comunicação livre"

Os argumentos do Chega, apresentados pelo deputado Ricardo Dias Pinto, lembram que este regulamento é "um pretexto nobre e digno", mas que é apenas isso.

"Se algo define e dá sentido ao ocidente é a centralidade da liberdade humana", sustentou, enquanto acusava Bruxelas de querer "a instauração de uma estrutura totalitária de vigilância sobre todos e cada um de nós".

"Não quer poderes para punir criminosos, quer ferramentas de controlo, escuta e perseguição de inocentes que se atrevem a pensar diferente", afirmou, antes de apelar à denúncia desta estratégia, recorrendo para o efeito ao grupo a que o Chega pertence no Parlamento Europeu: "Temos de denunciar aqui como fazemos em Bruxelas via Patriots."

"Queremos que o povo português entenda o que aqui está em causa será o fim da comunicação livre", atirou, antes de considerar que, de forma alegórica, "se o garrote do 'chat control' vier a ser imposto, nenhum e-mail será privado".

Numa alusão a governos totalitários, como os de Hitler ou de Estaline, Ricardo Dias Pinto disse que "nenhuma máquina de repressão do passado teve semelhante poder".

Nos argumentos do deputado do Chega surgiu ainda a ideia de que este regulamento não será a solução para o problema, até porque "os verdadeiros criminosos operam na sombra da dark web".

"A isto o Chega diz não e incita todos os partidos verdadeiramente democráticos a fazer o mesmo", rematou.

Livre defende que "o direito à privacidade é um pilar do Estado de Direito"

De acordo com o deputado do Livre Paulo Muacho, o "chat control" é "a lei mais contestada da história da União Europeia" na mesma medida em que "é uma das maiores ameaças à liberdade, à privacidade e à reserva da intimidade da vida privada dos tempos modernos".

"Nenhum de nós aceitaria que qualquer pessoa lesse ou controlasse o nosso e-mail", exemplificou, antes de afirmar que "é precisamente disso que aqui se trata".

Para Paulo Muacho, a presidência dinamarquesa da União Europeia "voltou a pôr esta proposta em cima da mesa" com "o pretexto do combate ao abuso sexual de menores".

Sem questionar o motivo para o regulamento e vincando "que combater a criação de conteúdos relacionados com abuso sexual de menores e jovens é urgente, e isso não pode ser colocado em questão", Paulo Muacho lembrou que a União Europeia é a maior região onde o fenómeno ocorre.

"Falhamos com esta crianças e jovens sempre que os seus direitos sejam postos em causa", afirmou.

Porém, "sermos forçados a decidir entre o direito à segurança e o direito à privacidade não é o caminho".

A diminuição de conteúdo encripatados, de acordo com o parlamentar do Livre, implica uma atenção redobrada, "num momento em que assistimos a um aumento do autoritarismo", o que pode levar a "reprimir povos inteiros", sustentou.

Portanto, "o direito à privacidade é um pilar do Estado de Direito" e é "condição essencial para o exercício da liberdade de expressão, da liberdade de imprensa".

"Não podemos aceitar que Governos ou empresas privadas assumam o controlo da nossa vida privada", sublinhou.

CDS rejeita "chat control": "Opomo-nos claramente"

Com a garantia de que a proteção das crianças "merece, quer das entidades nacionais, quer das entidades europeias, a tutela tão alargada quanto possível para evitar esse tipo de crimes que a todos repugna", o deputado centrista João Almeida afirmou no debate que "o 'chat control' tendo esse objetivo é provavelmente das piores soluções".

"E, quando estamos a falar de soluções vindas da União Europeia, a concorrência é bastante grande. É das piores soluções que a União Europeia já conseguiu gerar para um problema concreto", lançou.

"Nós opomo-nos claramente a esta linha por razões de princípio, por razões de coerência, por razões de existirem alternativas e por razões técnicas", explicou.

De acordo com João almeida, as "razões de princípio" impõem-se "porque o desequilíbrio entre aquilo que é a proteção das crianças e aquilo que é a devassa total e absoluta daquilo que é a privacidade, daquilo que são os direitos individuais, de tudo aquilo que é protegido pela própria carta dos direitos fundamentais da União europeia é total. E não somos só nós que o dizemos." 

O deputado do CDS lembrou que "Já houve jurisprudência da própria União Europeia a confirmá-lo, quer relativamente ao Artigo 7.º, quer relativamente ao Artigo 8.º da Carta dos Direitos Fundamentais."

"Acresce a esta desproporção a insuficiência da solução técnica, como já várias entidades tecnicamente habilitadas disseram. Esta ideia de que não se fiscaliza a comunicação ponto a ponto, mas que se fiscaliza previamente é alguma coisa de extraordinário", e passa por "criar claramente as backdoors [portas que não são de entrada principal] para entrar e para permitir que seja totalmente violado tudo aquilo que temos nos nossos próprios dispositivos".

Face a todos estes argumentos, concluiu João Almeida, "só há um caminho: é interromper rapidamente este processo e iniciar um novo processo, porque este não tem emenda."

PCP assegura que "não é este o caminho para se proteger crianças"

Com uma referência a "violação de direitos, liberdades e garantias" como forma de descrever o "chat control", a deputada do PCP Paula Santos argumentou que "não pode haver a retirada de funções soberanas do estado" e não se pode "lançar uma suspeição sobre todos os cidadãos".

"É a privacidade que está colocada em causa", considerou a deputada comunista, enquando explicava que "não é este o caminho para se proteger crianças".

Paula Santos criticou a obsessão que parece existir para a aplicação deste regulamento, "como se tudo o que fosse proposto pela União europeia tivesse de ser acatado".

A líder parlamentar do PCP referiu ainda uma análise da associação internacional Internet Society, que alertou para o facto de o "chat control" instituir uma "vigilância massiva", pelo que "tenta resolver um problema social com uma solução totalmente tecnológica".

Nessa análise, referida por Paula Santos, o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos mostra preocupação perante a "quebra da encriptação de comunicações", motivo pelo qual, sustentou a deputada comunista, "temos de defender os direitos das crianças ao seu desenvolvimento, mas este mecanismo não é solução".

PSD lembra que "este regulamento está em negociação"

"O papel do nosso país é participar ativamente, influenciar e garantir que o texto final respeita os nossos princípios constitucionais, a Carta Europeia dos Direitos Fundamentais e a jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia", sustentou a deputada do PSD Eva Brás Pinho, numa intervenção em que começou por vincar que "o combate ao abuso sexual de crianças é um dever absoluto de qualquer Estado de Direito", porque "este tipo de crimes no espaço digital é uma das maiores ameaças do nosso tempo".

Se acordo com a social-democrata, "é precisamente por esta ser uma matéria tão séria que o debate exige rigor e, acima de tudo, verdade".

"O que estamos a discutir não é um regulamento para controlar o WhatsApp das pessoas. Discutimos um regulamento que quer proteger crianças do abuso sexual online. Sabemos que crimes desta natureza não conhecem fronteiras e que é só uma resposta europeia que pode ser eficaz", argumentou.

Eva Brás Pinho perguntou ao Parlamento, de forma retórica, como é que é possível, "com honestidade intelectual, exigir ao Governo que rejeite um regulamento que não está terminado, que está em negociação e cuja versão final nenhum de nós conhece. Portugal não pode nem deve ausentar-se de um processo europeu onde se joga um jogo de equilíbrio difícil: de um lado, a proteção intransigente das crianças; do outro, a salvaguarda dos direitos fundamentais, como a privacidade, a reserva da vida privada e a proteção de dados."

Referindo estes "sinais de que a negociação funciona" e num apelo para que se confie na "sensatez das instituições europeias", a deputada do PSD consiedrou que não se pode "aceitar discursos que transformam a União Europeia numa caricatura totalitária".

"Ao longo das últimas semanas assistimos a partidos, num alarmismo injustificado, com slogans inflamados, o Estado vai ler todas as suas mensagens, o teu telemóvel vai ser um Big Brother. Isto é populismo, é uma retórica que desinforma, que mina a confiança dos cidadãos e não ajuda a proteger nenhuma criança", concluiu.

No final, a proposta do PS, para que haja uma negociação dos termos do regulamento e não uma rejeição liminar do documento, foi aprovada, com o voto favorável da bancada proponente, com as abstenções do PSD, Chega e CDS, e com os restantes votos contra.

Presidência dinamarquesa do Conselho da União Europeia tem tentado negociar com os Estados-membros a adoção do "chat control", um regulamento que prevê a “obrigação de os prestadores de serviços de comunicações e de alojamento monitorizarem, analisarem e reportarem às autoridades o conteúdo de mensagens privadas”, com o objetivo de combater o abuso sexual de crianças.
“Chat control” leva partidos a debater direito à privacidade

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