Reis Novais, constitucionalista.
Reis Novais, constitucionalista. FOTO: Diana Quintela / Global Imagens

“O Ministério Público deve colocar uma ação para destituição de Montenegro”

Constitucionalista Reis Novais defende existir, no mínimo, violação de obrigação de exclusividade pelo PM, e que este deveria ser, em última análise, demitido pelo PR ou destituído pelos tribunais.
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Q

O regime do Exercício de Funções por Titulares de Cargos Políticos diz, no artigo 6º, número 2, que “o exercício de funções em regime de exclusividade é incompatível com quaisquer outras funções profissionais, remuneradas ou não, bem como a integração em corpos sociais de quaisquer pessoas coletivas de fins lucrativos”. Luís Montenegro (LM) criou em 2021 a empresa Spinumviva e em 2022, quando foi eleito presidente do PSD, cedeu as quotas à mulher e filhos - e assim ficou a empresa até agora. Isso é compatível com o que a lei impõe?

A

A impressão imediata que se poderia retirar é a de que haveria ali uma situação complicadíssima de corrupção - que ou estão a financiar o partido ou o estão a corromper a ele. Mas a minha posição é a de partir do princípio de que não há aqui uma situação pura e simples de corrupção. E partindo desse princípio, o que temos é uma indiscutível violação da exclusividade. Porque, de há uns anos para cá, temos um conjunto de empresas a despejar dinheiro na empresa Spinumviva. O que temos é uma situação em que há empresas que pagam por uma adjudicação de serviços - uma série de empresas que têm uma avença por uma prestação de serviços da outra parte, a Spinumviva. E aqui entra um outro pressuposto, que é de que estando Luís Montenegro casado em comunhão de adquiridos, toda aquela cessão de quotas que ele fez à mulher e aos filhos é nula, não existe. 

Q

Pode explicar porquê?

A

É uma situação em que é exatamente o mesmo dizer que as empresas estão a pagar à Spinumviva e dizer que estão a pagar a Luís Montenegro. Porque ele não pode doar à mulher aquilo que era dele e dela. Porque era ele que estava a doar e era ele que estava a receber. O que significa que em termos jurídicos, de uma forma muito clara e nítida e incontestável, tudo aquilo foi uma simulação nula, uma fraude à lei. Aquelas empresas, quando pagam, estão a pagar a Luís Montenegro.

Q

Então há violação da exclusividade.

A

Excluindo corrupção, a única coisa que se pode estar a passar, em termos jurídicos, é que há ali avenças para obter uma prestação de serviços por parte de Luís Montenegro. Partindo desta base - porque todas as outras situações seriam piores -, o primeiro-ministro não está, como primeiro-ministro, em exclusividade. 

Q

E as consequências são?

A

É complicado. Porque a lei, para salvaguardar a separação de poderes, estabelece que no caso do Presidente da República e do primeiro-ministro a consequência imediata não é o termo do mandato. Se fosse outra situação qualquer, qualquer outro ministro, qualquer outra pessoa, a imediata consequência era o termo do mandato. O que significa que, em termos puramente jurídicos, para a coisa seguir normalmente, o Ministério Público [MP] deveria estar a trabalhar para fazer cessar o mandato. 

Q

“Tem legitimidade para intentar as ações previstas o MP”, diz o artigo 11º da lei (“Regime Sancionatório”). Como deve o MP proceder?

A

A partir do momento em que se constata que o primeiro-ministro esteve um ano, ou quase um ano, a receber avenças - porque o que temos aqui é que o primeiro-ministro recebia uns sete mil euros pelo cargo de primeiro-ministro e recebia 15 mil das avenças que lhe caíam lá todos os meses - e como não perde o mandato automaticamente por ser primeiro-ministro, cabe ao MP atuar junto dos tribunais administrativos. 

Q

Há outra possibilidade, a de o Presidente da República (PR) proceder à demissão do primeiro-ministro.

A

Isso é outra questão, a questão política, que é até mais interessante. Nesta altura estamos numa situação em que o primeiro-ministro não toma a iniciativa de apresentar uma moção de confiança e o maior partido da oposição não toma a iniciativa de apresentar uma moção de censura. Porque o primeiro-ministro sabe que isso seria o termo e o líder da oposição tem medo de ir a eleições. Estamos numa situação que na relação entre governo e parlamento é irresolúvel, é a continuidade do pântano. Num regime semi-presidencial como é o nosso, entra ou deveria entrar uma terceira figura, que é o Presidente da República. Que tem um poder muito simples, muitas vezes confundido mas muito simples, que é: se  está em causa o regular funcionamento das instituições e se nem a Assembleia da República [AR] nem o primeiro-ministro tomam a iniciativa, um de pedir a demissão, outra de demitir, então cabe ao PR, para assegurar o regular funcionamento das instituições, demitir o primeiro-ministro. E a seguir, optar: ou nomeia um novo primeiro-ministro, ou dissolve a AR e convoca eleições. É uma dificuldade acrescida para Marcelo Rebelo de Sousa porque construiu uma teoria, que só existe na cabeça dele, de que os portugueses elegem um primeiro-ministri, e portanto se o primeiro-ministro cai, tem de haver eleições. Mas isso é uma construção que ele fez. O que ele não pode é ficar como está, em silêncio, quando chegámos a uma situação em que é a única entidade com capacidade para resolver o problema. A única pessoa com capacidade para acabar com este pântano é o Presidente da República - se tivéssemos um Presidente da República, essa é a questão.

Q

Quiçá o Presidente está convicto de que, após várias crises políticas nas quais interveio, os portugueses não querem mais.

A

Mas nem isso diz, está calado. Não se ouve nada de Marcelo Rebelo de Sousa desde há dois ou três dias. Deve estar a imaginar o que vai fazer, como Presidente da República ou comentador. 

Q

O comunicado de Montenegro foi sábado, estamos a falar num domingo. O PR está muito em tempo de intervir.

A

Sim, é verdade. A minha dúvida é se a próxima intervenção vai ser como comentador ou Presidente da República. Alguma das duas há-de ser. 

Q

Voltando ao MP, que também está em tempo de agir: se nada fizer, que conclusão se pode tirar?

A

Não há nada a fazer, é o MP, é autónomo. Mas se nada fizer, ficará evidente a duplicidade de critérios de atuação. Poderá até haver uma denúncia anónima sobre uma situação de potencial corrupção e eles continuarem sem abrir inquérito - ao contrário do que fizeram noutras vezes. Mas é preciso ser cego para não ver que há aqui problemas complicados. Se aqui não há fumo, onde é que existem esses fumos?

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