“O Ministério Público deve colocar uma ação para destituição de Montenegro”
O regime do Exercício de Funções por Titulares de Cargos Políticos diz, no artigo 6º, número 2, que “o exercício de funções em regime de exclusividade é incompatível com quaisquer outras funções profissionais, remuneradas ou não, bem como a integração em corpos sociais de quaisquer pessoas coletivas de fins lucrativos”. Luís Montenegro (LM) criou em 2021 a empresa Spinumviva e em 2022, quando foi eleito presidente do PSD, cedeu as quotas à mulher e filhos - e assim ficou a empresa até agora. Isso é compatível com o que a lei impõe?
A impressão imediata que se poderia retirar é a de que haveria ali uma situação complicadíssima de corrupção - que ou estão a financiar o partido ou o estão a corromper a ele. Mas a minha posição é a de partir do princípio de que não há aqui uma situação pura e simples de corrupção. E partindo desse princípio, o que temos é uma indiscutível violação da exclusividade. Porque, de há uns anos para cá, temos um conjunto de empresas a despejar dinheiro na empresa Spinumviva. O que temos é uma situação em que há empresas que pagam por uma adjudicação de serviços - uma série de empresas que têm uma avença por uma prestação de serviços da outra parte, a Spinumviva. E aqui entra um outro pressuposto, que é de que estando Luís Montenegro casado em comunhão de adquiridos, toda aquela cessão de quotas que ele fez à mulher e aos filhos é nula, não existe.
Pode explicar porquê?
É uma situação em que é exatamente o mesmo dizer que as empresas estão a pagar à Spinumviva e dizer que estão a pagar a Luís Montenegro. Porque ele não pode doar à mulher aquilo que era dele e dela. Porque era ele que estava a doar e era ele que estava a receber. O que significa que em termos jurídicos, de uma forma muito clara e nítida e incontestável, tudo aquilo foi uma simulação nula, uma fraude à lei. Aquelas empresas, quando pagam, estão a pagar a Luís Montenegro.
Então há violação da exclusividade.
Excluindo corrupção, a única coisa que se pode estar a passar, em termos jurídicos, é que há ali avenças para obter uma prestação de serviços por parte de Luís Montenegro. Partindo desta base - porque todas as outras situações seriam piores -, o primeiro-ministro não está, como primeiro-ministro, em exclusividade.
E as consequências são?
É complicado. Porque a lei, para salvaguardar a separação de poderes, estabelece que no caso do Presidente da República e do primeiro-ministro a consequência imediata não é o termo do mandato. Se fosse outra situação qualquer, qualquer outro ministro, qualquer outra pessoa, a imediata consequência era o termo do mandato. O que significa que, em termos puramente jurídicos, para a coisa seguir normalmente, o Ministério Público [MP] deveria estar a trabalhar para fazer cessar o mandato.
“Tem legitimidade para intentar as ações previstas o MP”, diz o artigo 11º da lei (“Regime Sancionatório”). Como deve o MP proceder?
A partir do momento em que se constata que o primeiro-ministro esteve um ano, ou quase um ano, a receber avenças - porque o que temos aqui é que o primeiro-ministro recebia uns sete mil euros pelo cargo de primeiro-ministro e recebia 15 mil das avenças que lhe caíam lá todos os meses - e como não perde o mandato automaticamente por ser primeiro-ministro, cabe ao MP atuar junto dos tribunais administrativos.
Há outra possibilidade, a de o Presidente da República (PR) proceder à demissão do primeiro-ministro.
Isso é outra questão, a questão política, que é até mais interessante. Nesta altura estamos numa situação em que o primeiro-ministro não toma a iniciativa de apresentar uma moção de confiança e o maior partido da oposição não toma a iniciativa de apresentar uma moção de censura. Porque o primeiro-ministro sabe que isso seria o termo e o líder da oposição tem medo de ir a eleições. Estamos numa situação que na relação entre governo e parlamento é irresolúvel, é a continuidade do pântano. Num regime semi-presidencial como é o nosso, entra ou deveria entrar uma terceira figura, que é o Presidente da República. Que tem um poder muito simples, muitas vezes confundido mas muito simples, que é: se está em causa o regular funcionamento das instituições e se nem a Assembleia da República [AR] nem o primeiro-ministro tomam a iniciativa, um de pedir a demissão, outra de demitir, então cabe ao PR, para assegurar o regular funcionamento das instituições, demitir o primeiro-ministro. E a seguir, optar: ou nomeia um novo primeiro-ministro, ou dissolve a AR e convoca eleições. É uma dificuldade acrescida para Marcelo Rebelo de Sousa porque construiu uma teoria, que só existe na cabeça dele, de que os portugueses elegem um primeiro-ministri, e portanto se o primeiro-ministro cai, tem de haver eleições. Mas isso é uma construção que ele fez. O que ele não pode é ficar como está, em silêncio, quando chegámos a uma situação em que é a única entidade com capacidade para resolver o problema. A única pessoa com capacidade para acabar com este pântano é o Presidente da República - se tivéssemos um Presidente da República, essa é a questão.
Quiçá o Presidente está convicto de que, após várias crises políticas nas quais interveio, os portugueses não querem mais.
Mas nem isso diz, está calado. Não se ouve nada de Marcelo Rebelo de Sousa desde há dois ou três dias. Deve estar a imaginar o que vai fazer, como Presidente da República ou comentador.
O comunicado de Montenegro foi sábado, estamos a falar num domingo. O PR está muito em tempo de intervir.
Sim, é verdade. A minha dúvida é se a próxima intervenção vai ser como comentador ou Presidente da República. Alguma das duas há-de ser.
Voltando ao MP, que também está em tempo de agir: se nada fizer, que conclusão se pode tirar?
Não há nada a fazer, é o MP, é autónomo. Mas se nada fizer, ficará evidente a duplicidade de critérios de atuação. Poderá até haver uma denúncia anónima sobre uma situação de potencial corrupção e eles continuarem sem abrir inquérito - ao contrário do que fizeram noutras vezes. Mas é preciso ser cego para não ver que há aqui problemas complicados. Se aqui não há fumo, onde é que existem esses fumos?