Ao longo de quase uma década de mensagens de Ano Novo e de dois mandatos enquanto Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa manteve um registo pedagógico, atento ao contexto internacional, insistente na coesão social e na defesa das instituições democráticas, e marcado por uma ideia recorrente de Portugal ter uma “vocação” de “plataforma entre povos, culturas e civilizações” (de acordo com o discurso de Ano Novo de 2019). Agora, em janeiro de 2026, quando terminar o seu mandato em Belém, esse registo cessará, mas deixará uma marca indelével na História da política nacional, até porque, nas 10 vezes que o Parlamento foi dissolvido em 51 anos de democracia, três delas aconteceram por decisão de Marcelo. O DN conversou com os professores de Ciência Política Paula do Espírito Santo e Riccardo Marchi, que fizeram um exercício analítico de como será o derradeiro discurso de Ano Novo de Marcelo. Terá um “tom pedagógico”, de acordo com Paula do Espírito Santo, mas “irá em várias ocasiões apontar o dedo a estas guinadas radicais dos últimos anos da política portuguesa, e às consequências que podem ter, não só pela estabilidade interna das instituições, como pela imagem de Portugal no mundo”, vaticina Riccardo Marchi.Marcelo Rebelo de Sousa foi eleito Presidente da República, pela primeira vez, a 24 de janeiro de 2016, com 52% dos votos. Em 2017, no seu primeiro discurso de Ano Novo, o Presidente procurou equilibrar balanços e apelos. Nessa mensagem inaugural, ainda no rescaldo da intervenção da troika, sublinhou a “estabilidade social e política” e o “rigor financeiro”, mas sem ignorar fragilidades estruturais como a dívida pública, a lentidão da justiça e as desigualdades sociais, lembrando, porém, que “tudo visto e somado, o balanço foi positivo”. Foi a primeira mensagem de Ano Novo de Marcelo como Presidente da República num Governo de António Costa.Em 2018, Marcelo lembrou 2017 pela morte de Mário Soares, pela vinda a Portugal do Papa Francisco e pelas contradições de um ano com “veementes proclamações de paz e de abertura económica, e tão preocupantes ameaças de tensão e protecionismo, pondo à prova a paciência e a sensatez de muitos, e, em particular, do secretário-geral [da ONU] António Guterres”.“Se o ano tivesse terminado em 16 de junho, ou tivesse sido por mais seis meses exatamente como até então, poderíamos falar de uma experiência singular, constituída quase apenas por vitórias”, observou o Presidente, em referência aos incêndios que afetaram a zona de Pedrógão, acabando por rematar o discurso com a evocação do “pesadelo” que conduziu a “perdas humanas e comunitárias que acabariam por largamente pesar no balanço de 2017”.Nos anos seguintes, Marcelo Rebelo de Sousa insistiu numa leitura simultaneamente interna e externa. Em 2019, alertou para os riscos do populismo, sublinhando “que não há ditadura, mesmo a mais sedutora, que substitua a democracia, mesmo a mais imperfeita”, e apelou diretamente à participação cívica: “Votem. Não se demitam de um direito que é vosso”.Em 2020, já depois de eleições legislativas que terminariam com a “geringonça” e dariam um segundo Governo, minoritário, a António Costa, Marcelo, a partir da ilha do Corvo, nos Açores, deu centralidade aos “portugais esquecidos”, à pobreza persistente e à coesão territorial. Foi aí também que Marcelo falou em “esperança”, que “quer dizer Governo forte, concretizador e dialogante, para corresponder à vontade popular, que escolheu continuar o mesmo caminho, mas sem maioria absoluta”.Em 2021, o Presidente escolheu não deixar uma mensagem de ano Novo ao país, justificando que estava num período de pré-campanha eleitoral para as presidenciais, das quais voltou a sair vencedor, com 60,7% dos votos.A pandemia marcou as mensagens de 2022 e 2023, com apelos à resiliência, ao uso responsável dos fundos europeus e à necessidade de “virar a página”, num mundo já atravessado pela guerra na Ucrânia.A partir de 2023, o Presidente passou a enquadrar os anos até 2026 como decisivos. “Um 2023 perdido compromete, irreversivelmente, os anos seguintes”, afirmou, ligando estabilidade política a responsabilidade governativa. Em 2024 e 2025, com o cinquentenário do 25 de Abril e um ciclo político em transformação, reforçou a defesa da democracia, lembrando que “sem voto, não há nem liberdade, nem democracia”, e alertando para os efeitos sociais de um crescimento sem justiça.Este percurso ajuda a antecipar o tom do discurso de Ano Novo de 2026. Para Paula do Espírito Santo, Marcelo deverá manter a estrutura habitual: um enquadramento internacional, referência às tensões geopolíticas e europeias, e uma leitura pedagógica da situação interna. “Ele tem sempre uma visão muito pedagógica de como encarar estes desafios e de como devemos serenamente acreditar nas nossas potencialidades enquanto povo”, sublinha, prevendo um discurso “de harmonização e de pacificação dentro do sistema político-partidário”, marcado por uma “passagem de testemunho pacífica para o seu sucessor”.Já Riccardo Marchi aponta para um discurso de balanço alargado, mais do que uma análise do último ano. Para além de procurar afirmar o seu papel como garante da estabilidade institucional e da democracia, num contexto de crescimento do populismo de direita, Marcelo sai também marcado por polémicas, refere o politólogo.Assim, se no “princípio do seu mandato” se apresentava “como o Presidente muito querido pelo povo - e que aí teria feito a diferença, teria representado no vértice do Estado a voz do povo, até contra as torturas, os problemas deste regime -, não conseguiu fazer nada disso, não conseguiu representar diferença nenhuma, envolvendo-se, aliás, em vários escândalos pessoais”, considera Riccardo Marchi. “É isso que fica na memória dos eleitores. Portanto, terá que resolver este problema de imagem”, conclui o investigador.