Caso das gémeas. Relatório preliminar da CPI aponta para "eventual prática de abuso de poder" de Marcelo
TIAGO PETINGA/LUSA

Caso das gémeas. Relatório preliminar da CPI aponta para "eventual prática de abuso de poder" de Marcelo

Cronologia diz que "houve uma interferência política", segundo relatora da CPI. Chega apresentou relatório preliminar ao mesmo tempo que o deu a conhecer aos partidos que ainda não votaram documento.
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O relatório preliminar da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) ao caso das gémeas luso-brasileiras, conhecido esta sexta-feira, aponta "eventual prática de abuso de poder" do Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa. Chega apresentou documento quase ao mesmo tempo que o deu a conhecer aos partidos que integraram a CPI.

"A conduta do Presidente da República é especialmente censurável por se tratar do Chefe de Estado e, como tal, qualquer pedido feito por si ou em seu nome tem inerente uma convicção de obrigatoriedade de cumprimento por parte de quem recebe o pedido, ainda que não seja necessariamente uma ordem, revelando assim a eventual prática de abuso de poder", lê-se numa das conclusões do documento, a que o DN teve acesso.

Segundo o relatório, o "Presidente da República agiu de forma consciente e intencional, pois foi ele próprio que mandatou dois funcionários da Casa Civil (Maria João Ruela e Frutuoso de Melo) para verificarem a situação das gémeas, o que implicou contactos com pelo menos um hospital, vários contactos com o filho e o envio de ofício reportando a situação para o Gabinete do Primeiro-Ministro, não tendo sido possível, no entanto, confirmar se este depois chegou ao Ministério da Saúde".

Esta proposta de relatório, que tem de ser aprovada, foi apresentada aos partidos durante a conferência de imprensa, na qual a relatora Cristina Rodrigues, deputada do Chega, revelou as conclusões preliminares da CPI ao caso das gémeas luso-brasileiras tratadas no Hospital de Santa Maria, em Lisboa, com o medicamento Zolgensma, um dos mais caros do mundo.

Numa das conclusões é referido que "ficou provado que Nuno Rebelo de Sousa pediu ajuda ao pai, o Presidente da República, para salvar as gémeas luso-brasileiras, tendo ficado provado que este tomou diligências acrescidas face ao que costuma fazer com outros cidadãos que a ele recorrem".

"É absolutamente evidente" que Lacerda Sales "interferiu"

Já sobre o ex-governante António Lacerda Sales, um dos três arguidos no processo aberto pelo Ministério Público - Nuno Rebelo de Sousa e o ex-diretor clínico do Hospital de Santa Maria, Luís Pinheiro, são os outros dois arguidos -, o relatório preliminar indica que é "absolutamente evidente que o Secretário de Estado da Saúde [na altura] interferiu neste processo, tendo dado ordem expressa e inequívoca para a marcação da consulta, bem sabendo que o que se pretendia não era uma mera consulta mas sim o tratamento com Zolgensma".

Documento indica que "é Lacerda Sales que executa a ordem para que estas crianças entrem no Serviço Nacional de Saúde, havendo fortes indícios que terá sido a pedido do Presidente da República, através do seu filho, Nuno Rebelo de Sousa".

Aliás, a relatora da CPI referiu na conferência de imprensa, que contou com André Ventura, líder do partido, que a "cronologia dos factos deixa muito evidente a atuação de certos atores políticos e deixa evidente que houve uma interferência política".

"Nuno Rebelo de Sousa é o promotor da ilegalidade cometida, ainda assim a responsabilidade política não é dele, mas do Presidente da República e do Secretário de Estado", conclui o relatório preliminar, da autoria da deputada do Chega. Segundo estas conclusões, Marcelo Rebelo de Sousa e Lacerda Sales "permitiram a criação e o desenvolvimento de um circuito irregular e abusivo de acesso ao SNS, através de interferência direta ou indireta naquele circuito, conforme ficou bem explanado neste relatório".

Na conferência de imprensa, Cristina Rodrigues falou, aliás, na questão de Lacerda Sales que disse "que nunca teve qualquer intervenção neste processo". "No entanto, há um conjunto de evidências que deixa muito difícil tal afirmação, desde logo o facto de ter reunido" com o filho de Marcelo, a "7 de novembro, em que ele diz expressamente que Nuno Rebelo de Sousa lhe pede auxilio para desbloquear a situação", afirmou a deputada, referindo depois "depoimentos" que apontam que Lacerda Sales "deu a ordem para que fosse marcada a consulta".  

Referindo-se aos médicos "que tiveram um papel central na denúncia da pressão politica que sofreram", a deputada do Chega afirmou: "Fica evidente que não se trata apenas de uma decisão clínica. Há uma decisão política que se coloca acima da decisão clínica".

O relatório preliminar da comissão parlamentar de inquérito para a ‘Verificação da Legalidade e da Conduta dos Responsáveis Políticos Alegadamente Envolvidos na Prestação de Cuidados de Saúde a duas Crianças (Gémeas) Tratadas Com o Medicamento Zolgensma’ vai ser analisado pelos deputados que integraram a CPI. A discussão do documento está prevista para dia 26 de março, altura em que deverão ser retomados os trabalhos da CPI, que foram suspensos "pelo período mínimo de três semanas".

No entanto, caso a Assembleia da República seja dissolvida após a esperada rejeição da moção de confiança que vai ser debatida e votada na próxima terça-feira, a comissão de inquérito pode terminar sem conclusões, já que a votação em plenário poderá não acontecer, informou esta semana Rui Paulo Sousa, presidente da comissão de inquérito.

Caso das gémeas. Relatório preliminar da CPI aponta para "eventual prática de abuso de poder" de Marcelo
Caso das gémeas. Relatório preliminar da comissão de inquérito entregue sexta-feira

BE acusa Chega de "partidarização e instrumentalização". "É um assalto institucional"

A deputada do BE Joana Mortágua acusou o Chega de "partidarização e instrumentalização" com fins eleitorais da comissão de inquérito ao caso das gémeas e indicou que enviou um protesto ao presidente desta comissão.

Em conferência de imprensa na Assembleia da República, a coordenadora do BE na comissão de inquérito ao caso das crianças luso-brasileiras indicou que enviou ao presidente -- Rui Paulo Sousa, do Chega -- um protesto "em relação à forma como André Ventura e a deputada Cristina Rodrigues se aproveitaram dos trabalhos desta comissão e de um relatório que não lhes pertence, mas que pertence à discussão e ao contraditório no âmbito da comissão, para fazer uma conferência de imprensa partidarizada e que não reflete as conclusões da comissão de inquérito".

"É um assalto institucional, é uma partidarização e uma instrumentalização de uma comissão de inquérito para efeitos eleitorais", acusou Joana Mortágua.

A deputada do BE disse que pediu ao presidente da comissão de inquérito "que convocasse urgentemente uma reunião da mesa e coordenadores" e indicou que fará o protesto chegar também à conferência de líderes, "porque o parlamento não pode permitir este abuso institucional sobre os seus instrumentos legais e os seus instrumentos democráticos".

A deputada falava aos jornalistas pouco depois de a relatora, Cristina Rodrigues, e o líder do Chega, terem apresentado o relatório preliminar em conferência de imprensa e o documento ter chegado aos partidos quase ao mesmo tempo.

Joana Mortágua afirmou que só a Cristina Rodrigues, do Chega, "cabe apresentar o relatório" e que o documento "foi apresentado em conferência de imprensa por ela e pelo presidente do Chega antes de a comissão de inquérito e os seus membros terem conhecimento" do mesmo.

A bloquista referiu que o documento "só chegou aos emails dos membros da comissão de inquérito quando já decorria a conferência de imprensa".

"Isto revela um enorme desrespeito e deslealdade institucional para com o parlamento. As comissões de inquérito não servem os interesses eleitorais e partidários de ninguém, são assuntos sérios e, portanto, é absolutamente inaceitável que, por ter falhado duas vezes a entrega do relatório a que estava obrigada, a deputada Cristina Rodrigues queira depois apresentar conclusões que são apenas suas e do seu partido como sendo conclusões da comissão de inquérito", criticou, acusando o Chega de um "assalto institucional aos poderes da comissão de inquérito" e de "aproveitamento político partidário".

Joana Mortágua assinalou que as conclusões ainda vão ter de "ser submetidas à discussão e votadas", sendo este um relatório preliminar.

A bloquista admitiu também que a comissão possa terminar sem conclusões finais, caso o parlamento seja dissolvido.

"Se acontecer o cenário previsível em relação ao chumbo da moção de confiança, é evidente que as conclusões da comissão de inquérito ficam comprometidas, e este relatório que é apresentado não pode ser considerado como a conclusão da comissão de inquérito porque ele não foi discutido nem votado na comissão de inquérito. Este relatório, ao ser apresentado com o presidente do Chega ao lado, deixa claro que são as conclusões do Chega, não são as conclusões da comissão de inquérito", sustentou.

A coordenadora recusou antecipar o que poderá acontecer, mas considerou que "era muito mais provável chegar a uma conclusão sobre um relatório que tivesse sido entregue no dia 20 de fevereiro do que é chegar a uma conclusão sobre um relatório que é entregue no dia 7 de março". 

"Claro que estamos todos a jogar na incerteza do cenário político e eu acho que foi precisamente isso que o Chega entendeu fazer, foi jogar na incerteza do cenário político, antecipando-se às conclusões da comissão de inquérito para poder beneficiar do ponto de vista eleitoral das conclusões que não são da comissão de inquérito, são suas em relação à comissão de inquérito", criticou.

PSD diz que "não houve qualquer tipo de abuso de poder" de Marcelo

Pela voz do deputado António Rodrigues, o PSD contestou o relatório das conclusões preliminares, da autoria da deputada do Chega Cristina Rodrigues, ao considerar que "não houve qualquer tipo de abuso de poder" por parte do Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa.

"Está claro para o PSD que não houve qualquer intervenção do senhor Presidente da República exceto nos termos em que trata todos os outros casos, não houve qualquer tipo de abuso de poder, houve apenas e só o recebimento de um documento [o e-mail que recebeu do filho] que foi reencaminhado para o Governo e que o tratou como entendeu tratar", disse o deputado social-democrata, citado pela Lusa.

A posição do PSD foi transmitida aos jornalistas após a conferência de imprensa com o presidente do Chega, André Ventura, e a deputada relatora da CPI, que apresentou o relatório preliminar.

De acordo com António Rodrigues, "não há prova efetiva" do que está escrito na referida proposta de relatório. A "intervenção do Presidente da República limitou-se a prosseguir o percurso normal de intervenção da Casa Civil do Presidente da República quando havia pedidos de intervenção relativamente a situações graves, complexas, a situações que tinham a ver com a vida das pessoas", considerou o deputado.

"Nós sempre tivemos a noção que havia aqui um alvo político", declarou o social-democrata, que acusou o Chega de querer "atingir a honra do Presidente da República".

"É bom que se diga que aquilo que foi apresentado como conclusões finais apenas só foi enviado para a comissão parlamentar de inquérito às 16:57, quando a conferência de imprensa começou às 17h00. Estamos aqui, em primeiro lugar, numa farsa, numa tentativa de enganar as pessoas relativamente àquilo que a comissão discutiu durante todos os meses que durou", disse ainda o deputado.

Nesse sentido, António Rodrigues considerou que "a forma como este relatório foi apresentado" "não corresponde à ética parlamentar", uma vez que os deputados da CPI deviam ter conhecimento do documento antes de ser apresentado publicamente.

De acordo com o deputado, coordenador do PSD na CPI, "houve de facto alguém que interveio neste processo, que interveio de uma forma que violou a lei", o antigo secretário de Estado António Lacerda Sales.

"As crianças gémeas tiveram de facto o acesso ao tratamento mais rápido com uma marcação de uma consulta que não perseguiu os mecanismos que estavam previstos na lei", defendeu.

Depois do Chega, também o PSD vai apresentar as suas próprias conclusões na próxima semana, informou António Rodrigues, admitindo a possibilidade de pedir a prorrogação do prazo de funcionamento da comissão, de modo a que possam existir conclusões aprovadas por todos os partidos. Isto tendo em conta a hipótese de o parlamento ser dissolvido, após a discussão e votação da moção de confiança, e de a comissão de inquérito terminar os trabalhos sem a aprovação um relatório final.

"Seria mau para o parlamento que tivesse uma comissão parlamentar de inquérito que começou em maio do ano passado e que não conseguisse chegar a conclusões", considerou o deputado do PSD.

Órgãos de soberania falharam, diz Ventura

Já o presidente do Chega, André Ventura, defendeu que os "órgãos de soberania falharam" no caso das gémeas luso-brasileiras, considerando que "houve interferência externa na condução deste processo" e no acesso ao Serviço Nacional de Saúde (SNS).

"Este relatório chega também à conclusão que -- depois terá de ser validado -- que vários órgãos de soberania falharam", vincou André Ventura, durante a apresentação da proposta de relatório do inquérito parlamentar, que decorreu na Assembleia da República em Lisboa.

O líder do Chega apontou para as "conclusões relativas ao abuso de poder que o Presidente da República poderá ter cometido" e para as possíveis intervenções do antigo secretário de Estado da Saúde António Lacerda Sales e de Nuno Rebelo de Sousa, filho do chefe de Estado, no caso em que duas crianças foram tratadas com um dos medicamentos mais caros do mundo no Hospital Santa Maria, em Lisboa, em 2020.

Com Lusa

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