“Ainda não há dados”. Todos os politólogos com quem o DN fala repetem o mesmo. Querem dizer que tudo o que possam aventar sobre o que ocorreu neste domingo em que a esquerda perdeu 22 deputados, permitindo à direita toda (AD mais Chega mais Iniciativa Liberal), com 156 lugares — para já, antes dos círculos da emigração —, superar dois terços do parlamento, se baseia em análises mais intuitivas que factuais. Uma intuição escorada na factualidade observada noutros países e naquilo que se sabe de anteriores eleições nacionais, nas quais a extrema-direita foi buscar votos sobretudo à abstenção. Um cenário que se parece ter alterado agora, já que a abstenção subiu em relação a 2024 mas o Chega continuou crescer. É com esse prévio enquadramento da ausência de dados que Marina Costa Lobo, investigadora coordenadora no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, aceita partilhar “algumas reflexões” com o DN: “As mudanças na geografia do voto, com Setúbal, Beja, Algarve com o Chega em primeiro lugar, sugerem que em 2025 se quebrou o dique que impedia estes votantes de esquerda de migrarem para o Chega”. Esta sugestão é confirmada pelas reportagens efetuadas no terreno, como aquela que o DN publicou esta terça-feira, na qual eleitores que votaram BE, CDU e PS nas eleições anteriores, e que votam à esquerda nas autárquicas, assumiram ter desta vez escolhido o partido de André Ventura.A politóloga enquadra o ocorrido: “Em 2022 e 2024 [as duas legislativas anteriores, ambas seguindo-se à dissolução do parlamento por decisão do Presidente da República], o Chega cresceu sobretudo à custa da abstenção e do PSD. Em 2025 terá crescido em parte substancial devido à queda do PS e da esquerda.” O que, considera, “reflete um processo que tem ocorrido no mundo ocidental, onde aqueles com menos rendimentos e escolaridade têm passado a votar à direita, mobilizados pelo tema da imigração, do fechamento das fronteiras, da recusa da globalização.”Será por exemplo o caso alemão, com a Alternativa para a Alemanha (AfD) a conseguir 20,8% nas eleições federais de 23 de fevereiro, duplicando o resultado de 2021, suplantando o SPD (este congénere do Partido Socialista português perdeu quase 10 pontos percentuais, de 25,7% para 16,4%, das últimas eleições para estas) e ficando a menos de oito pontos da vencedora CDU (União Democrata Cristã).É uma mudança que tem estado a ocorrer em todas as democracias avançadas, nota Marina Costa Lobo (atente-se a esta expressão, “democracias avançadas” — voltaremos a ela). A questão é como exatamente se opera essa mudança. Será que os ganhos da extrema-direita se deveram realmente a transferência direta de votos da esquerda?“A esquerda foi castigada pelo tema da imigração”Marco Lisi, investigador do Instituto Português de Relações Internacionais da Universidade Nova de Lisboa, assume que é cedo — lá está, “ainda não há dados” — para poder responder à pergunta. “Pode ter ocorrido por etapas, ter havido transferência de votos do PS para a AD e da AD para a direita radical. E pode também ter havido uma desmobilização do voto na esquerda e no PS, porque houve uma quebra de três pontos na participação.” Mas, adverte, “se a esquerda como um todo perdeu muito peso, o PS está em trajetória descendente desde 2022, quando conquistou, em eleições muito atípicas, a segunda maioria absoluta da sua história.”Uma trajetória descendente na qual conseguiu, ainda assim, um quase "empate" com a AD nas legislativas de 10 de março 2024, e um primeiro lugar nas europeias do mesmo ano (9 de junho), com 32,08%. Que sucedeu, então, neste último ano?Marina Costa Lobo arrisca várias explicações. “O líder do PS, Pedro Nuno Santos, concordou com umas eleições que os portugueses não queriam, sem ideias novas e ainda na ressaca de oito anos de governação PS, sem governo pronto a assumir funções, sem alternativa para a estabilidade governativa; Montenegro teve a vantagem do incumbente e quis estas eleições, mas o caso Spinumviva provavelmente fez com que a AD não tenha conseguido fazer funcionar o voto útil à direita como aconteceria em condições normais. Ambos, por razões diferentes, favorecerem o crescimento do Chega.” ."A 'esquerda radical' não soube dar resposta ao tema da imigração e aos temas da família, da identidade nacional. Ao contrário dos partidos de direita, que mostraram ao eleitorado que têm uma solução, que é demarcação e exclusão.”Marco Lisi, investigador do Instituto Português de Relações Internacionais da Universidade Nova. Por outro lado, argumenta ainda Costa Lobo, “estas eleições focaram a saúde e o crescimento económico, mas os temas da imigração e da corrupção estiveram sempre presentes e de forma muito mais importante do que em 2024 ou 2022. Ora, a esquerda tem grande dificuldade em encontrar-se com os portugueses no tema da imigração e terá sido castigada por isso. A AD conseguiu no ano passado passar a mensagem de que o governo do PS abriu demasiado as portas à imigração. O BE está favorável a um política de portas abertas, e a CDU com o foco nos trabalhadores com vínculo e com cartão de sindicato também não foca contextos de fluidez laboral onde a questão da imigração é mais premente.”A chamada “questão da imigração”, que surgiu em força na discussão pública em 2024, lançada pelo Chega e rapidamente agarrada pela AD (antes disso o foco nesse assunto era marginal nos media e no discurso político, inclusive — como frisam, num paper de 2024, Pedro Magalhães e Rui Costa Lopes — no do Chega), é também vista por Marco Lisi como fator na perda observada no PS. “Houve a contradição de Pedro Nuno Santos, surgindo a demarcar-se da política do Governo Costa, dizendo que a manifestação de interesse tinha sido mal pensada, como que validando as críticas dos partidos de direita em relação ao legado do PS, e não apresentando soluções, esvaziando assim ainda mais a base eleitoral do partido”. Para este cientista social, também a área que refere genericamente como “esquerda radical” “não soube dar resposta ao tema da imigração e aos temas da família, da identidade nacional”. Ao contrário dos partidos de direita, que “mostraram ao eleitorado que têm uma solução, que é demarcação e exclusão.” Lembra, justamente, que a dias das eleições o Governo anunciou a expulsão de milhares de imigrantes, “numa manobra claramente eleitoralista”. “O discurso da direita tornou-se hegemónico”A “esquerda radical”, crê Lisi, “ficou com um eleitorado muito de nicho, porque crescia quando havia crise económica, desemprego. Há gente que na altura da crise votava nesses partidos e agora vota Chega. E os reformados, que eram uma base social importante da esquerda, assim como os funcionários públicos, poderão ter mudado o voto para a direita, por acharem que a AD fez um bom trabalho neste ano, por ter conseguido mais paz social, aumentando os salários. Quanto ao PS, a imagem do líder está, enquanto governante, ligada à habitação e aos transportes e a um fraco desempenho. As pessoas estão insatisfeitas com o desempenho dos serviços públicos e a ideia de se poder repetir uma aliança entre o PS e a esquerda radical não ajudou.”Terá igualmente feito diferença, diz este investigador, a falta, no discurso do PS, da possível aliança entre PSD e Chega: “Isso desapareceu com Montenegro a afirmar que não queria ter nada a ver com o Chega. Esse travão, que foi muito importante em eleições anteriores, desapareceu aos olhos dos eleitores moderados, centristas.”Depois, claro — ou antes —, há a questão da informação: “As novas tecnologias de comunicação não ajudaram e aceleraram ainda mais o processo, sobretudo com o afastamento dos jovens dos partidos da esquerda radical. Há muitos estudos que comprovam a maior capacidade da direita populista de dominar esse tipo de comunicação, inclusive com a criação de perfis falsos.”Certo é que isto a que se assiste em Portugal não é, como frisa Marco Lisi, uma novidade: a ascensão da extrema-direita e daquilo a que se dá o nome de “nativismo” (postura política que dá prioridade aos interesses e bem-estar dos “nativos” ou residentes de longa data de um determinado país em detrimento dos dos imigrantes, defendendo restrições à imigração) é um fogo que alastra no mundo ocidental, nas tais “democracias avançadas” das quais falou mais acima Marina Costa Lobo.Para Lisi, trata-se da combinação de dois fatores fundamentais: “Situações económicas mais confortáveis e a politização de questões não económicas e internacionais”. Os partidos de direita, ao contrário dos partidos sociais-democratas, diz este politólogo, “conseguiram criar um imaginário, uma nova agenda, que diz que os países e os recursos são para os nativos. O bloco ideológico da direita tem hegemonia no discurso — o que explica que as pessoas que ideologicamente se afirmam de esquerda possam votar à direita.” Maior triunfo da esquerda é razão da sua queda?Face a esse discurso da direita, prossegue Lisi, "os partidos de esquerda não conseguiram encontrar uma nova agenda, uma nova visão do mundo.” Esta espécie de perda de discurso iniciou-se, explica, “na Europa do século passado. Quando o Estado Social se desenvolveu, e conseguiu aquilo que se propunha conseguir, começou a decadência dos partidos que o construíram.”Nesta perspectiva, a esquerda está a ser vítima do seu próprio sucesso — o que pode explicar que em Portugal seja justamente quando se celebram 50 anos de democracia representativa e constitucional (face às primeiras eleições livres de 25 de abril de 1975, para a Assembleia Constituinte) que a extrema-direita se prepara para alcançar o segundo lugar na votação.Uma das pessoas entrevistadas pelo DN no Seixal, Diana, diretora de recursos humanos de 37 anos que diz ser ex-votante de BE e PS e ter votado Chega no domingo, resume numa frase o impasse dos partidos que construíram e defendem o Estado Social: “Não queremos acreditar que a realidade que temos hoje é o melhor que nos podem dar”. Para esta votante da extrema-direita, “os portugueses há muito que não veem uma melhoria nas condições de vida” — uma afirmação que os dados contradizem, quer do ponto de vista económico quer social.É, paradoxalmente, em nome das deficiências no Estado Social que a democracia construiu do zero neste meio século, por decisão e trabalho dos partidos que acusa de nada fazerem “para melhorar a vida dos portugueses”, que Diana escolheu dar o seu voto ao Chega.Ou seja, a um partido que na primeira versão do seu programa, em 2019, propunha desmantelar esse mesmo Estado Social, acabar com os transportes públicos e o Código de Trabalho, instituir a total ausência de regras no arrendamento e reduzir a mínimos os impostos sobre o rendimento e a propriedade, recusando “a função redistributiva do Estado”. Propostas que desapareceram ou foram “suavizadas” numa nova versão do programa, em 2021, justificada com a “adequação do programa político aos desafios do crescimento" do Chega e "respetiva expressão nacional”. “Adequação” que não impediu o líder de remeter, no seu discurso de “vitória”, para o tempo pré-democracia e portanto e pré-Estado Social: “É a primeira vez que isto acontece desde 25 de abril de 1974”.