Faltava pouco para a 1h00 da manhã na madrugada de 3 para 4 de outubro de 1910 quando Machado Santos, 2.º tenente da Marinha e carbonário, sai do Centro Republicano de Santa Isabel, em Campo de Ourique, com uma missão: fazer cair a monarquia e implantar a República. Juntamente com um grupo carbonário, um movimento secreto que funcionava como “uma espécie de maçonaria dos trabalhadores”, liderado por um civil e com apenas 14 armas, tomam o quartel de Infantaria 16 ainda antes da hora combinada com outros grupos, que estavam concentrados no regimento de Artilharia 1.Era o início da revolução que levaria ao instaurar da República e ao fim da monarquia. Nessa noite, segundo explica ao DN o historiador Fernando Rosas, autor do livro A Primeira República 1910-1926: como se venceu e como se perdeu, Machado Santos “faria depois a barricada essencial do 5 de outubro, na Praça do Marquês de Pombal”. Nestas barricadas, relatou o jornalista Jorge D’Abreu no livro A Revolução Portugueza: O 5 de Outubro (Lisboa 1910), “os revoltosos dispozeram-se a morrer dentro d’esse fraco reducto com uma coragem e um desprendimento da vida dignos do maior elogio” [sic].Apesar da “coragem”, os mortos “devem andar à volta dos 100 e tal, 150 no máximo”, diz Fernando Rosas, recordando que “morre muita gente em Lisboa e há muitos feridos”. Afinal, “houve combates na Avenida da Liberdade, e combates em toda a zona do Palácio das Necessidades e em Pedrouços”. Isto tudo juntando “ao assalto aos navios, que estão fundeados no Tejo e são tomados de assalto pelos marinheiros republicanos”. Segundo o historiador, trata-se de “um verdadeiro processo revolucionário”, ao longo “de vários pontos da cidade”, que se inicia a 4 de outubro e terminará só no dia seguinte. Além disso, houve ainda descrentes do sucesso da Revolução, nomeadamente o almirante Cândido dos Reis, que devia ser um dos líderes da insurreição, que se suicidou por acreditar que o golpe militar teria falhado.Fernando Rosas destaca porém que, apesar de transversal ao país, a implantação da República acontece acima de tudo a nível local, na zona de Lisboa. “Nesses dias, não há nada noutros pontos do país. Como diria João Chagas [primeiro primeiro-ministro do regime republicano] no seu diário: Lisboa proclama a República e decreta-a por telégrafo ao resto do país. A República nunca deixa de ser uma realidade profundamente urbana, criada em Lisboa, e que, com isso, tem problemas de legitimidade e aceitação no resto do país.”.Apesar de culminarem nos dias 3, 4 e 5 de outubro, as movimentações começaram dois anos antes, com o regicídio, focadas “sobretudo nos grandes centros urbanos”. Nesses locais, “existe uma pequena burguesia urbana” que cresce desde finais do século XIX, e que tem “ambição para poder chegar à governação do país”, com uma “influência grande” do Partido Republicano.Criado em 1876, o Partido Republicano Português vinha a “enfrentar um liberalismo oligárquico e pouco democrático”, onde o “sufrágio é muito restrito e com manipulação eleitoral evidente”. No fundo, era um “liberalismo completamente incapaz de, por si próprio, fazer face à massificação da política”, explica Fernando Rosas. Isso leva a que “sobretudo a partir do assassinato do rei D. Carlos” acabe por haver “uma elite republicana” que se alia com “aquilo a que alguns autores chamam a plebe urbana das grandes cidades, como trabalhadores da indústria e pequenos funcionários públicos”. “É essa aliança entre a plebe urbana, mais essa elite republicana e a pequena burguesia que acaba por decidir fazer a revolução do 5 de Outubro de 1910”, diz o historiador. Mas o processo até esse dia, e a decisão de avançar para a revolução, não foi consensual dentro dos próprios republicanos: “O republicanismo está decidido contra isso, mas acaba por ser dominado por um movimento mais radical, aliado em grande parte à carbonária. É essa aliança entre carbonária e o republicanismo radical que faz o 5 de Outubro.”.“A República surge pela aliança da plebe urbana, como trabalhadores da indústria, com uma elite republicana formada que cresceu após o regicídio de 1908.”Fernando Rosas, historiador.O regime, no entanto, viria a colapsar passados 26 anos, no golpe de 28 de maio, quando Gomes Costa viria a instaurar a Ditadura Militar, antecessora do Estado Novo. Mas, juntamente com estes “problemas de legitimidade”, há ainda “dois grandes erros” que traçam, logo à partida, o desfecho deste regime. “O primeiro é uma ausência total de política social”, o que leva a que o movimento operário e popular aliado dos republicanos, “se vire contra a República”. “Vai em cheio contra uma República que acaba por ser mais um prolongamento do tal liberalismo oligárquico do que a sua democratização”, explica Fernando Rosas, acrescentando que esse fator leva a uma “questão social permanente durante toda a República: não há política social mas, por outro lado, tem uma situação de grande contestação”. Além disso, o contexto internacional também acaba por ser desfavorável ao regime. “Há um conflito [I Guerra Mundial] e os efeitos da entrada na guerra, para um país absolutamente impreparado para entrar em guerra, teve efeitos económicos, políticos e sociais desastrosos”, explica o historiador. Contudo, os efeitos não se ficariam por ali, “prolongando a crise da República no pós-guerra e vão desaguar no golpe militar de 28 de maio de 1926”.“O Governo provisório abandona a carbonária”Apesar das divergências entre republicanos, a revolução acabaria por vir a triunfar, e “por volta das 11h00 da manhã”, José Relvas, um dos dirigentes do Partido Republicano subiria à varanda dos Paços do Concelho de Lisboa e acabaria por proclamar a República. Foi notícia de primeira página do DN, jornal que ia então a caminho de celebrar 46 anos.Porém, no dia 6 de outubro, começa a formar-se um Governo provisório, que “já abandona bastante a carbonária”, cujo papel foi tão importante na revolução. “Esse Governo”, diz Fernando Rosas, “é liberal-conservador” e “predomina até 1913”, quando Afonso Costa “toma conta do Partido Republicano”..A partir daí, o “republicanismo é mais radical, mas muito antissocial e anticlerical”. “Depois da I Guerra Mundial é que há uma nova fase”, que levará a “um corte na História da própria República, que se tenta erigir ao conflito mas é, na realidade, uma confusão permanente”. Esse período, a partir de 1918 (ano em que termina a I Guerra Mundial), é “um período de grande agitação social e política”. Surge então “um republicanismo mais à esquerda, digamos quase social-democrata, mas na realidade o nacionalismo ganha uma grande força. É um nacionalismo antiliberal e antidemocrático, que acabará por vencer a 28 de maio de 1926”.Pelo meio, há ainda o assassínio de Sidónio Pais, 4.º Presidente da República, a 14 de dezembro de 1918, às mãos de José Júlio da Costa, ativista da fação mais à esquerda dos republicanos.Depois dos primeiros anos de República, “acentua-se quer a legitimidade do regime, quer a agitação social” e o Partido Republicano “transforma-se num partido de bonzos, situacionista e dos negócios”. “No fundo, surgem novas formações à esquerda do Partido Republicano que tentam implementar políticas fiscais, de redistribuição dos rendimentos e há, digamos, um biénio radical entre 1923 e 1925 onde avultam nomes como José Domingos Santos ou Álvaro Castro, que fazem uma tentativa de adotar um republicanismo social-democrata, mas que não vence”, explica Fernando Rosas..De acordo com o historiador, “essa tentativa acabar por ser, na realidade, derrubada pelo establishment e por um Partido Republicano que se alia crescemente à direita, e à direita anti-liberal para derrubar a I República”.Anos mais tarde, já perto do fim do regime, Machado Santos, um dos heróis da revolução, acabaria por ser morto “na noite sangrenta de 1921”. “É um episódio que acontece numa altura em que o Governo cai e ainda não há outro em funções. Há uma espécie de vazio político e certos grupos ajustam contas com políticos, entre eles Machado Santos, que é fuzilado no Intendente”, conclui.