Três governantes acusados, demitidos e depois absolvidos em tribunal

Eduardo Cabrita, Azeredo Lopes, Miguel Macedo foram três ministros que se demitiram por terem sido visados criminalmente e que depois foram absolvidos. O primeiro-ministro, António Costa, demitiu-se depois de saber que estava a ser investigado. Qual é a responsabilidade do Ministério Público? Nenhuma, segundo o Sindicato dos Magistrados.
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O ex-ministro da Administração Interna, Eduardo Cabrita, investigado pelo Ministério Público (MP) pelo crime de homicídio negligente pelo atropelamento de Nuno Santos, funcionário de uma empresa que realizava trabalhos de manutenção na A6, foi esta semana despronunciado (não vai a julgamento) pelo tribunal.

Cabrita tinha anunciado a sua demissão, em dezembro de 2021, depois de ser conhecida a acusação sobre o seu motorista. Não foi o primeiro governante, ou titular de cargo público a demitir-se, voluntária ou por imposição, depois de ter sido visado num processo judicial e que, no final, acabou ilibado.

Sucedeu o mesmo com o também ex-ministro da Administração Interna do governo PSD, Miguel Macedo, e, no mesmo processo designado de "Vistos Gold", com o ex-diretor nacional do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF), Manuel Jarmela Palos; com o ex-ministro da Defesa, Azeredo Lopes, e há mais tempo, com o deputado e porta-voz socialista Paulo Pedroso.

Até onde vai a responsabilização do Ministério Público quando é anunciado ou noticiado, oficialmente, como no recente caso do primeiro-ministro António Costa, ou por violação do segredo de justiça, como em inúmeros processos conhecidos, que os políticos estão envolvidos em investigações e isso leva a demissões e a danos reputacionais quase sempre irrecuperáveis, como se de uma "pena perpétua" se tratasse?

CitaçãocitacaoNum Estado de Direito, democrático, ninguém está acima de ser visado no âmbito de uma investigação criminal e existindo notícia de um crime o MP está obrigado a iniciar o inquéritos, sem qualquer juízo de oportunidade"

"A demissão de titulares de cargos políticos ou governantes na sequência do conhecimento de inquéritos em que são visados ou quando constituídos arguidos é uma decisão de foro estritamente político e nada tem a ver com o MP. Trata-se de uma avaliação política do próprio. Num Estado de Direito, democrático, ninguém está acima de ser visado no âmbito de uma investigação criminal e existindo notícia de um crime o MP está obrigado a iniciar o inquéritos, sem qualquer juízo de oportunidade", afirma Adão Carvalho, presidente do Sindicato dos Magistrados do Ministério Público (SMMP).

O representante sindical dos procuradores lembra que "o início de um inquérito não quer dizer que a pessoa visada vai ser acusada ou condenada, visa essencialmente determinar se existiu ou não crime e se o visado é responsável pelo mesmo. Por isso, o MP não pode ser responsabilizado caso a pessoa não venha a ser condenada ou sequer acusada. Não pode é deixar de investigar e cumprir a sua função".

O desempenho de Eduardo Cabrita no ministério da Administração Interna foi marcado por diversas controvérsias, a mais grave das quais a morte do cidadão ucraniano Ihor Homeniuk na sequência de agressões de três inspetores do SEF. Mas nem este, nem o caso das golas inflamáveis, nem as polémicas com o SIRESP o levaram à demissão.

Apenas quando foi conhecido o despacho de acusação, por homicídio negligente, do seu motorista pelo atropelamento fatal na A6 de um funcionário de manutenção das autoestradas, Cabrita apresentou a sua demissão ao primeiro-ministro.

Viria depois também a ser investigado, igualmente pelo crime de homicídio negligente, mas na fase de instrução do processo, acabaria despronunciado.

Mas o estrago estava feito e irrecuperável para o antigo braço direito de António Costa, arredado da vida política e cujo chumbo da candidatura que fez a um alto cargo na Agência de Fronteiras Europeias (FRONTEX) não foi, certamente, alheio a este percurso.

Acusado em setembro de 2019 por quatro crimes - denegação de justiça, prevaricação, abuso de poder e favorecimento pessoal de funcionário - no inquérito que investigou o furto de material militar no paiol de Tancos a 28 de junho de 2017, Azeredo Lopes foi julgado e absolvido em janeiro de 2022.

Em causa estava o seu papel na investigação paralela da Polícia Judiciária Militar (PJM) à que estava a ser realizada pela Polícia Judiciária, sob titularidade do MP.

Azeredo Lopes, que tinha pedido a demissão em outubro de 2018 quando começaram a vir a público suspeitas de que tinha encoberto as ilegalidades da PJM, classificaria a acusação de ser "eminentemente política" e pediu a instrução do processo.

"Entrei neste processo com a cabeça levantada, passei por este processo com a cabeça levantada e saio deste processo de cabeça levantada, isto, para mim, como devem compreender era muito importante", afirmou quando foi conhecido o despacho de absolvição.

O seu advogado, Germano Marques da Silva, foi mais longe e afirmou que o processo era "uma vergonha", que só tinha sido possível por "incompetência de todos os que intervieram no processo até ao início do julgamento, na fase de inquérito, PJ, Ministério Público, instrução". O advogado defendeu ser necessário exigir que as pessoas sejam "competentes e responsáveis pelas asneiras que fazem".

O designado processo dos "Vistos Gold", que investigou corrupção e favorecimentos na atribuição das autorizações de residência para investimento, foi dos maiores desaires para o MP e teve como consequência o fim da carreira política de um dirigente do PSD em ascensão, Miguel Macedo, e um "anátema" que ainda dura sobre o ex-diretor do SEF, Manuel Palos.

Foram ambos integralmente absolvidos dos crimes de que foram acusados, mas os danos causados são irrecuperáveis.

O ex-ministro da Administração Interna do governo de coligação de Pedro Passos Coelho e Paulo Portas, demitiu-se em novembro de 2014, no dia em que o MP lhe imputou o alegado favorecimento de um grupo de pessoas que pretendia lucrar de forma ilícita com a atribuição de vistos gold, realizando negócios imobiliários lucrativos com empresários chineses que pretendiam obter estes vistos especiais.

"Apesar de não ter qualquer responsabilidade pessoal, no plano político as circunstâncias são de natureza distinta", afirmou na altura.

"O ministro da Administração Interna tem de ter sempre uma forte autoridade para o exercício pleno das suas responsabilidades. Essa autoridade ficou diminuída", acrescentou, justificando ainda a demissão "em defesa do Governo e da autoridade do Estado".

Foi acusado de prevaricação de titular de cargo político e tráfico de influência. Ainda a quente, depois de ouvir a sentença que o absolveu, falou do fundo da alma: "Foi a resposta às canalhices que me fizeram nos últimos quatro anos", declarou. O seu advogado, Castanheira Neves reagiu dizendo que "a montanha nem sequer um rato conseguiu parir".

Miguel Macedo nunca mais quis voltar à política e é advogado na sua terra natal, Braga.

No mesmo dia, outro homem, Manuel Jarmela Palos, alto dirigente que foi o primeiro diretor nacional de uma Polícia a ser detido, foi também absolvido de todos os crimes de que tinha sido acusado - um de corrupção passiva e dois de prevaricação. Sobre ele o tribunal disse não ter "quaisquer dúvidas" de que "tudo fez de acordo com os procedimentos do SEF".

Detido, sob ordem do juiz de instrução Carlos Alexandre, a 13 de novembro de 2014, esteve na cadeia durante cinco dias e depois cerca de quatro meses com pulseira eletrónica. Por ordem do mesmo magistrado viu os seus bens apreendidos e, durante cerca de dois anos, Manuel Palos, que estava na direção nacional do SEF há 14 anos, não recebeu qualquer salário.

"Foram quatro anos de pesadelo que ainda hoje não percebi porque aconteceram. O próprio tribunal reflete isso quando diz que não tem quaisquer dúvidas de que não cometi nenhum crime. Passados estes anos, não sei porque fui detido, não sei o quê ou quem esteve por trás", disse, na ocasião, em entrevista ao DN.

Não quis falar ao DN presentemente, por exercer funções públicas e não estar autorizado a prestar declarações. É oficial de ligação para a imigração em Madrid, na dependência da nova Agência para a Integração, Migrações e Asilo. Só em meados de 2021 foi ressarcido dos salários e desistiu de um pedido de indemnização contra o Estado.

"O mal está feito, não há recuperação possível, é um anátema que não desaparece. Quando "googla" o seu nome a primeira coisa que aparece e este processo e a sua detenção e não todos os anos de trabalho que dedicou ao SEF", confidencia uma fonte do ex-SEF que lhe é próxima.

Era deputado e porta-voz do Partido Socialista (PS), em 2003, quando foi detido do parlamento, filmado por canais de televisão, sob suspeita da prática de relações sexuais com rapazes da Casa Pia, no âmbito do processo que envolveu figuras públicas. Paulo Pedroso ficou em prisão preventiva durante sete meses.

Em maio de 2004, o Tribunal de Instrução Criminal de Lisboa decidiu não levar o dirigente socialista a julgamento, por existirem sérias dúvidas sobre a forma como Paulo Pedroso foi identificado pelas alegadas vítimas de abuso sexual, decisão que foi confirmada em 2005 pelo Tribunal da Relação.

Paulo Pedroso queixou-se então ao Tribunal Europeu dos Direitos do Homem pela sua detenção sem evidências relevantes da prática dos crimes que lhe foram imputados pelo Ministério Público.

Quando foi libertado da prisão, dirigiu-se imediatamente para a Assembleia da República, tendo sido recebido em apoteose pelos seus colegas de partido, num gesto que, na altura, gerou muita controvérsia.

Em junho de 2018, o TEDH condenou o Estado a indemnizar Pedroso em 68.555 euros, ainda assim, abaixo dos 450 mil que pedia.

Segundo a decisão do tribunal, no momento da detenção do ex-ministro, que ficou em prisão preventiva, "não havia suspeitas plausíveis de abuso sexual porque não tinha sido identificado pessoalmente" pelas vítimas.

As razões apresentadas para a sua detenção "não eram relevantes nem suficientes", tal como já tinha sido decidido pelo Tribunal de Relação em 2003, acrescentou o TEDH.

"Finalmente fica reconhecido que, em Portugal, quem é preso ilegalmente e sem fundamento tem direito a ser indemnizado", disse o advogado Celso Cruzeiro.

Paulo Pedroso, por seu lado, declarou ao DN: "Só hoje voltei verdadeiramente a ser livre. Ponto final, finalmente, no processo em que fui envolvido erradamente e tratado em certos momentos de modo ilegal, injusto e atentatório dos direitos humanos".

"É estranho a Polícia Judiciária ficar fora destas investigações. É a mais apetrechada e mais experiente. Tem um departamento específico para esta criminalidade económica e financeira. A competência legal é em primeira linha sua. Estranho. A ideia que fica é que o MP desconfia desta polícia", escreveu na terça-feira, no jornal Público, o presidente da Associação Sindical dos Juízes Portugueses, Manuel Ramos Soares, a propósito de as buscas no âmbito do inquérito do Departamento Central de Investigação e Ação Penal, sobre os negócios do lítio e do do hidrogénio, terem contado com o apoio da PSP e da Autoridade Tributária.

Contactada pelo DN para clarificar esta situação, a PGR não quis responder. "De momento, nada a acrescentar à informação já prestada", declarou o porta-voz.

Da parte do Sindicato dos Magistrados do Ministério Público, não há nada de excecional. "O MP tem competência investigatória própria e, portanto, pode conduzir diretamente a investigação socorrendo-se para determinados atos, por falta de meios próprios, de qualquer órgão de polícia criminal. Tal não representa qualquer preterição da PJ", afirma o presidente Adão Carvalho.

"Só se a investigação tivesse começado por os factos terem sido comunicados à PJ é que era necessário decisão da PGR a determinar que a investigação fosse de outro órgão de polícia criminal, tal como resulta da lei de organização da investigação criminal. Tendo começado no MP não tem que delegar na PJ e muitas investigações são conduzidas diretamente pelo MP", acrescentou.

A direção nacional na PJ não quis comentar.

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