Política
20 abril 2022 às 14h25

Da asfixia do sistema, da clareza das leis e da Justiça a preço de champanhe francês

A falta de recursos humanos e materiais voltou a marcar a abertura do ano judicial, numa cerimónia que esteve "confinada" nos últimos dois anos. Lucília Gago, Menezes Leitão, Catarina Sarmento e Castro e Augusto Santos Silva disseram de sua "justiça"

A Procuradora-Geral da República afirmou que as "potencialidades" de trabalho e investigação dos magistrados do Ministério Público (MP) "vêm sendo condicionadas, por vezes severamente, por um expressivo e persistente deficit de recursos materiais e humanos, imprescindíveis para a cabal prossecução das suas atribuições, a justificar a afirmação de ser a autonomia do Ministério Público insatisfatória, e até ilusória, ao não contemplar a vertente financeira".

Na intervenção esta tarde no Supremo Tribunal de Justiça (STJ) onde decorreu a cerimónia de abertura do ano judicial, Lucília Gago sublinhou que "a vastidão de competências que lhe estão atribuídas, sem paralelo na generalidade dos outros Estados, e o atual contexto em que as exerce, em particular, o grave déficit de quadros - avultando o ritmo de jubilações que vêm ocorrendo e que previsivelmente continuarão a ocorrer nos tempos mais próximos -, tornam bem difícil a gestão e igualmente o desempenho de todos e de cada um dos magistrados".

A magistrada sublinhou que "nesse contexto adverso pontua também a generalizada insuficiência da afetação de oficiais de justiça e de recursos materiais e humanos para dar cabal resposta às cada vez mais imprescindíveis perícias financeiras, contabilísticas e informáticas, com crescentes reflexos nesse desempenho que se defronta com dificuldades dificilmente superáveis, se não mesmo, nalguns domínios, de verdadeira asfixia".

A falta de recursos também esteve presente no discurso do Bastonário da Ordem dos Advogados, Menezes Leitão: ​"​​​​​​Existe neste momento uma absoluta falta de recursos humanos no nosso sistema judiciário. Temos 1960 juízes, mas só 1801 estão em funções nos tribunais, sendo que grande parte dos restantes exercem presentemente funções não judiciais. No Ministério Público faltam 195 magistrados. E temos 1000 funcionários judiciais a menos. Situação tende a agravar-se, como se vê pelas notícias de que o Centro de Estudos Judiciários perdeu 2/3 dos seus candidatos em dez anos, o que vai afectar por muitas décadas a qualidade da nossa justiça. E todos os dias se sucedem as jubilações de magistrados, sendo notório que uma das causas será a sua desmotivação com a actual situação existente no sistema judiciário".

Mas o Bastonário também fez exigências ao MP. "Temos assistido nos últimos tempos a muitas absolvições de cidadãos que exerceram funções políticas ao mais alto nível, os quais, no entanto, tiveram que viver durante anos com o estigma de uma acusação criminal", disse Luís Menezes Leitão.

Para Menezes Leitão, "esperar-se-ia, a bem da credibilidade da nossa justiça que, sendo as mesmas julgadas improcedentes nos Tribunais, os cidadãos tivessem uma explicação pública por parte do Ministério Público sobre o que motivou a sua acusação".

O Bastonário começou a sua intervenção a lembrar as "flagrantes inconstitucionalidades" legisladas durante a pandemia".

"O país passou assim a viver em sucessivos estados de exceção não declarados, no que ameaça tornar-se a nova normalidade, já desconfiando os cidadãos se alguma vez regressarão a um estado normal e por quanto tempo. Na verdade, como referiu o grande filósofo e sociólogo francês Edgar Morin, "quando o estado de exceção se tornar normal, o estado normal tornar-se-á excecional", asseverou.

"Esta flagrante inconstitucionalidade das sucessivas medidas lesivas de direitos fundamentais dos cidadãos passou sem qualquer reação das diversas entidades a que a Constituição atribui competência para a fiscalização da constitucionalidade das leis. Foram apenas os Advogados, não por acaso o único grupo profissional a quem não foi concedido qualquer apoio durante a pandemia, que reagiram nos Tribunais em defesa dos cidadãos lesados, designadamente instaurando providências de habeas corpus contra a ilegal privação da liberdade dos seus constituintes", completou.

Menezes Leitão defende que seria "essencial que, logo após o fim da pandemia, seja feito um relatório sobre a violação dos direitos fundamentais dos cidadãos que ocorreu durante este período, para que estas situações não se venham a repetir".

Os custos da Justiça merecer também uma atenção especial de Menezes Leitão. "Outra questão igualmente preocupante é o estado da nossa justiça cível que, deve dizer-se, só não é igualmente tão morosa em virtude do elevado valor das custas judiciais, que levam a que só lhe tenham acesso os muito ricos ou os muito pobres, estes últimos por beneficiarem do apoio judiciário. Há anos que se salienta ser imperioso a redução das custas judiciais, sendo inaceitável que a água que deveria saciar a sede de justiça dos cidadãos seja em Portugal paga pelos mesmos ao preço do champanhe francês. A justiça não é um privilégio, é um direito, e, como tal, tem que estar acessível a todos os cidadãos".

O Presidente da Assembleia da República, Augusto Santos Silva, mostrou-se preocupado com a "clareza das leis". "Creio adequado dizer-se que a clareza da lei é um requisito da sua boa aplicação, designadamente pelos tribunais, em todos os ramos do direito. Uma lei enxuta, concisa, legível, e peças processuais igualmente claras, além de alinhadas com o nosso tempo, são condições, se não necessárias, pelo menos muito favoráveis para que a justiça, administrada em nome do povo, seja inteligível pela opinião pública e seja eficaz para assegurar a qualquer pessoa a possibilidade de a ela recorrer, para defender direitos e interesses legalmente protegidos", assinalou.

No seu entender, "a clareza das normas é também um elemento essencial da segurança jurídica indispensável ao funcionamento da economia e ao desempenho da administração pública. Leis e decisões judiciais claras representam um meio poderosíssimo para induzir a confiança nos contratos, agilizar procedimentos e diminuir burocracias, prevenir e combater a corrupção, facilitar o acesso à justiça e imprimir celeridade na sua administração. Geram, além do mais, substanciais reduções dos custos de contexto na realização de investimentos e enormes poupanças na despesa das famílias, das empresas e do Estado".

Para Augusto Santos Silva "temos mesmo de avançar, em conjunto, no esforço de tornar as leis mais rigorosas, mais simples e mais compreensíveis" e compromete-se a "para que o Parlamento faça, nesta tarefa de todos, a sua parte - que, enquanto a assembleia representativa de todos os cidadãos portugueses, na pluralidade e diversidade dos interesses e ideias, e enquanto o legislador por excelência, o Parlamento produza leis claras, tão simples quanto possível, compreensíveis por todos".

A estreante ministra a Justiça, Catarina Sarmento e Castro, reconhece que, apesar do "esforço" que tem sido feito, "mantêm-se grandes desafios de realização prática que permitam incrementar a confiança na Justiça, garantindo-se uma Justiça eficiente, ao serviço dos direitos e do desenvolvimento económico-social, mais próxima dos cidadãos, mais, moderna e acessível". Por isso, sublinha "é preciso fazer acontecer".

A Ministra reconhece que se manteve "a perceção social - embora bastas vezes sem correspondência com a realidade - de que a ineficiência dos tribunais seria genérica e sempre limitadora da defesa de direitos".

Para combater essa perceção, sublinhou, é "decisivo que se reforce o investimento na melhoria dos indicadores da Justiça, agora com recurso a ferramentas eletrónicas renovadas, e se potencie o seu uso"

Nesse sentido, "a medição contínua, o recurso a inteligência artificial para análise de dados e a partilha interoperável dos resultados, o bom uso deste conhecimento acumulado e dinâmico, permitem ao gestor do sistema conhecer as pendências, identificar tendências, reconhecer estrangulamentos, até em tempo real, possibilitando o desenvolvimento de mecanismos de alerta precoce para situações de risco de incumprimento dos prazos processuais e congestionamento dos tribunais, sinalizando ou antecipando problemas e possibilitando soluções atempadas, mormente gestionárias, utilizando a gestão de conhecimento nas organizações".

Para Catarina Sarmento e Castro "a melhoria do conhecimento, designadamente com recurso à inteligência artificial no tratamento de informação jurisprudencial, permitirá, também ganhos no apoio e na própria gestão do desenrolar do processo realizada individualmente por quem faz, aos mais diversos níveis, a sua vida permanentemente ligada à realização da Justiça".

No novo ciclo que se abre na Justiça, a ministra garantiu que podem contar com ela para "ouvir todos, mas sobretudo para fazer com todos", mas exigindo que "esse caminho de melhor justiça e para todos" seja percorrido por todos.

"Uma justiça mais eficiente e mais célere, mais próxima, de maior qualidade e mais cognoscível, porque mais transparente e, por isso, refundadora da confiança", foi outras das metas traçadas por Catarina Sarmento e Castro, que prometeu todo o seu empenho.