Montijo. Autarca manda abrir cartas dos vereadores da oposição
O presidente da Câmara do Montijo mandou abrir todo o correio que entra e sai da câmara. Vereador do PSD vai apresentar queixa no Ministério Público. E especialistas dizem que a decisão de Nuno Canta é "ilegal" e até pode configurar "crime". Autarca alega que é a bem da "transparência" e da eficiência da vida autárquica.
A carta, no caso um ofício da GNR, chegou aberta ao gabinete do vereador do PSD na Câmara do Montijo. João Afonso pediu explicações aos serviços camarários e a resposta foi simples: o presidente da autarquia, o socialista Nuno Canta, tinha dado ordens para abrir e registar toda a correspondência que entra e sai da Câmara. O autarca social-democrata vai apresentar queixa no Ministério Público.
"Para que se perceba, e que eu saiba, nunca antes na vida democrática de Montijo a oposição foi objeto de tão lamentável determinação profundamente totalitária e desrespeitosa, que atenta contra o estado de direito democrático e o estatuto da oposição", escreveu no Facebook o vereador do PSD, que não tem pelouros num executivo camarário maioritário socialista.
Ao DN João Afonso, eleito em coligação com o CDS, explica que na sua condição de vereador comunica com entidades públicas, por e-mail ou ofícios expedidos, e recebe cartas dos cidadãos do Montijo, e que toda a correspondência que entra e sai é registada pelo seu gabinete, onde tem um funcionário.
Subscreva as newsletters Diário de Notícias e receba as informações em primeira mão.

João Afonso, vereador do PSD na Câmara do Montijo
© Direitos reservados
"Qual não é o meu espanto quando recebo uma carta aberta. Pedi explicações ao presidente da Câmara que, por escrito, me disse que somos tratados como se fossemos funcionários ou diretores de serviço", diz o vereador social-democrata, que afirma ainda que o presidente considerou que os vereadores da oposição - também há dois da CDU - não podem interagir com o exterior usando papel timbrado da câmara municipal ou usar os serviços, pagos pela autarquia, sem se sujeitar às mesmas regras dos outros vereadores do executivo.
"Eu vereador eleito e da oposição, tenho o presidente da Câmara a escrutinar o que ando a fazer e até os cidadãos podem querer denunciar", afirma ao DN. Admite que o episódio de há 15 dias não se voltou a repetir. "Os funcionários camarários decidiram não cumprir a ordem de abertura do correio por suspeitarem que a mesma seja ilegal mas estão com medo de lhes ser instaurado processo disciplinar pelo incumprimento da ordem do presidente", diz João Afonso, acrescentando: "Não conheço mais nenhuma câmara onde isto aconteça com os vereadores da oposição". Tenciona, por todas as razões, apresentar queixa ao Ministério Público da decisão do presidente da Câmara do Montijo.
Carlos Almeida, vereador da CDU, também toma posição contra a decisão de Nuno Canta, que justifica a abertura e registo de toda a correspondência, incluindo o seu conteúdo, com regulamentos que já existiam na Câmara há vários anos e só não estavam a ser aplicados. "Não somos vereadores com competência delegada na maioria, somos vereadores da oposição. Tem algum sentido que eu envie um envelope ou receba e possa ser fotocopiado o seu conteúdo? Fazer oposição significa não estar de acordo", frisa Carlos Almeida.
"Eu vereador eleito e da oposição, tenho o presidente da Câmara a escrutinar o que ando a fazer e até os cidadãos podem querer denunciar"
O vereador comunista dá um exemplo: "Imagine que é um grupo de cidadãos que quer fazer uma queixa contra o executivo camarário. O presidente e os seus vereadores têm direito a saber do que as pessoas estão a queixar-se a um vereador da oposição?". Carlos Almeida diz que esta decisão do presidente da Câmara é "inadmissível" e enquadra-se num conjunto de outras situações polémicas desde que ganhou a câmara com maioria absoluta em 2017. "Transformou uma maioria absoluta em poder absoluto no Montijo". E também diz que a CDU vai pedir a apreciação do Ministério Público daquela decisão.
O que diz o presidente?
Nuno Canta garante ao DN que faz parte das normas internas da Câmara, há bastante tempo, a obrigatoriedade de registo de toda a correspondência da entrada e saída da câmara. "São normas que todas as câmaras têm, para regular e o fluxo de correspondência e é como devem funcionar administrativamente".
O presidente da Câmara frisa que a correspondência que vai dirigida a um vereador "não é privada, é institucional" e que deve ser registada e aberta. Nuno Canta diz que o problema do registo paralelo nos gabinetes dos vereadores da oposição foi detetado com um ofício da Agência Portuguesa do Ambiente, que vinha dirigido ao presidente da Câmara, e tinha dois números de registo".
Nega que esteja a tentar controlar a oposição. "É só uma questão democrática de transparência. Imagine que um munícipe quer consultar um determinado ofício, se não estiver registado a câmara não o pode fornecer". Nuno Canta insiste: "Até que ponto a correspondência que vem para cada um de nós é considerada privada? Os vereadores da oposição têm o direito de receber e expedir correspondência e quando o fazem é através dos serviços da câmara, pelo que têm de se conformar às suas regras". Nuno Canta garante que todas as suas cartas são abertas e escrutinadas pelos vereadores.
"Até que ponto a correspondência que vem para cada um de nós é considerada privada?"
Mas perante a revolta dos vereadores da oposição diz que a decisão de abrir a sua correspondência está a ser sujeita a uma consulta com juristas para eliminar quaisquer dúvidas sobre o processo.
Leis protegem eleitos
Especialistas ouvidos pelo DN são unânimes: "Os serviços camarários não podem abrir a correspondência dos vereadores". Primeiro porque o Código Penal, no seu artigo 194.º, o relativo à Violação de correspondência ou de telecomunicações - que no seu ponto 1 diz: "Quem, sem consentimento, abrir encomenda, carta ou qualquer outro escrito que se encontre fechado e lhe não seja dirigido, ou tomar conhecimento, por processos técnicos, do seu conteúdo, ou impedir, por qualquer modo, que seja recebido pelo destinatário, é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 240 dias - interdita a abertura de "correspondência nominal" de qualquer cidadão, incluindo os eleitos.
Além disso, o Estatuto do Direito à Oposição, a lei 24/98, reforça este direito ao sigilo da correspondência, através de uma norma que protege o direito da oposição e reforça a impossibilidade de abrir a correspondência dos eleitos, entre os quais os deputados, vereadores, deputados municipais, etc, que têm direito à privacidade da sua correspondência.
Os executivos camarários podem, no entanto, acordar que toda a correspondência do presidente da Câmara e vereadores com pelouro poderá ser aberta pelo secretariado para agilizar o serviço. Mas nunca essa deliberação pode abranger os deputados da oposição.
Manuel Ferreira Mendes, jurista especialista em Direito do Trabalho, afirma que apesar da Câmara Municipal do Montijo ter implementado regras internas sobre os procedimentos a dotar relativos à correspondência recebida, "se dessas regras resulta que toda a correspondência dirigida à CM Montijo, qualquer que seja o destinatário, poderá ser previamente aberta e lida pelo Presidente da Câmara, tenho reservas a respeito da conformidade legal das mesmas".
O jurista adverte ainda que "da perspetiva legal, o comportamento em causa, a confirmar-se, poderá consubstanciar a prática de crime de violação de correspondência". E que, do mesmo modo, "poderá traduzir-se na violação de direitos dos remetentes, que têm a expectativa, legítima, que a carta que enviaram apenas seja lida pelos seus destinatários e não por outros quaisquer terceiros, e, bem assim, dos destinatários (por analogia, por exemplo, direitos de reserva e confidencialidade previstos na lei laboral)".
Manuel Ferreira Mendes faz uma analogia: "Trazendo a situação para outra realidade política para se perceber o paradoxo da situação, era como ter o Ferro Rodrigues a ler previamente uma carta dirigida à Mariana Mortágua".
O constitucionalista Jorge Bacelar Gouveia partilha da opinião de Ferreira Mendes e insiste: "Se a carta for nominal, ou seja dirigida ao vereador, só ele é que a pode abrir ou a quem delegar essa competência". A decisão do presidente da câmara é uma "atitude inconstitucional", acrescenta.
Frisa ainda que "o segredo a alma da política e da oposição, é o que permite fazer oposição muitas vezes". Afirma ainda que, mesmo que haja um regulamento da câmara que obrigue à abertura da correspondência, esse regulamento não se sobrepõe à lei nem aos direitos dos vereadores da oposição. "O vereador foi eleito e é detentor de um cargo político", lembra.