Chega. "Partido tóxico" ou muito apetecível no centro-direita?
"Foi um erro." No espaço de dias, por duas vezes, pessoas muito diferentes que participaram em atividades do Chega vieram retratar-se publicamente. Uma, a mãe de uma criança negra que foi exibida com um cartaz no comício promovido pelo partido para desmentir o racismo no país. A outra, o vocalista da banda Santos e Pecadores, Olavo Bilac, que após ter atuado no comício em Leiria, para lançar a candidatura de André Ventura a Belém, se demarcou de qualquer aproximação política ao partido por se ter deixado fotografar ao lado do candidato. Os dois episódios foram reflexo de uma forte censura nas redes sociais e são sinal de que o Chega é visto como um "partido tóxico"?
O analista político Pedro Adão e Silva admite que há esse perigo para as figuras e os partidos que não se identifiquem com as ideias de André Ventura, que lidera aquela força e agora é também candidato à Presidência da República. "É um partido tóxico porque tem um efeito de contaminação no PSD, que é mais ancorado ao centro", frisa.
Critica mesmo o facto de Rui Rio e, depois, Miguel Albuquerque terem aberto a porta a conversações com o Chega para um futuro entendimento político "O que tem sido dito tem o efeito de legitimar o Chega e o voto nesse partido, quando se admite inscrevê-lo numa coligação ultrapassa-se uma barreira e tem um efeito muito importante, porque se passa a pensar que o voto no Chega compensa." E questiona: "Quem poderá agora no centro-direita ter um discurso de que o voto no Chega não vale a pena?" Insiste que o partido "é minúsculo" e só conseguiu 1,29% dos votos nas legislativas de 2019, embora as sondagens apontem para um crescimento eleitoral.
Pedro Adão e Silva estabelece um paralelo com o que se passa noutros países da Europa, lembrando que sempre que estes partidos de "extrema-direita" passam a ter representação parlamenta, acabam por provocar uma maior radicalização nos partidos de centro-direita. Por isso, defende, "é preciso um cordão sanitário à volta do Chega".
O analista político deteta ainda a contaminação nas relações entre sociais-democratas e centristas. "A aproximação ao Chega foi uma machadada no CDS, agora quem está à direita tem argumentos para votar no Chega." E um partido e o outro não são comparáveis no xadrez da democracia. "O papel do CDS em 1975 foi a de integrar a direita no regime, o do Chega é o de pôr o regime em causa."
Posição idêntica é a do politólogo André Freire: "Comparar o Chega ao CDS, como fez Miguel Albuquerque, é completamente descabido. O CDS é o contrário do Chega, é um partido estruturado, com doutrina, fiável e que já integrou vários governos."
Insiste que o partido "é minúsculo" e que só conseguiu 1,29% dos votos nas legislativas de 2019, com a eleição de um deputado (o próprio André Ventura), embora as sondagens apontem para um crescimento eleitoral. O que explica, garante, o magnetismo em relação ao PSD. "No fundo, há a expectativa na direita de que o Chega vá crescer e possa ser útil para fazer uma maioria." Pedro Adão e Silva vai no mesmo sentido: "Desde a constituição da geringonça que o nosso sistema político sofreu uma alteração e todos já perceberam que para formar governo será preciso coligações."
Já a reação tempestuosa perante a participação de Olavo Bilac no comício de Ventura também se inscreve, segundo Pedro Adão e Silva, num sentimento de rejeição ao que esta força política defende. "A censura social é muito poderosa", contra o que diz ser um "partido tóxico, liderado por um oportunista, que diz a cada momento o que é conveniente". E isso, assegura, "torna-o perigoso".
André Freire não gosta muito da palavra "tóxico", mas entende que "eleitoralmente pode trazer mais prejuízos do que benefícios" para os partidos que se aproximarem, como o PSD. Tal como Pedro Adão e Silva, lembra que o partido de Rui Rio é posicionado ao centro, longe dos "ziguezagues" da força centrada em André Ventura. Dá exemplo do programa do partido onde há orientações radicalmente ultraliberais na economia com a "incongruência" de querer "captar as camadas socioeconómicas mais desfavorecidas". Além de que, lembram, defende várias coisas que ferem a Constituição, entre as quais a castração química e a diferenciação de defesa consoante os crimes em causa. "Isso fere, obviamente, o princípio da presunção da inocência."
André Freire considera, contudo, que os partidos do sistema devem olhar para certas matérias que André Ventura explora "porque têm uma base de realidade que é preciso atacar". Invoca o problema das "comunidades que não querem cumprir as regras sociais ou, por exemplo, a quarentena, e até atacam quartéis de bombeiros. Isso existe e não pode ser escamoteado". Ou seja, "Ventura toca nalgumas vacas sagradas que a comunidade política devia dar atenção".
Quem sentiu na pele os efeitos da aproximação ao Chega foi Pedro Borges de Lemos, que se desfiliou do CDS recentemente para "conversar" com o partido de André Ventura. Isto depois de ter participado na polémica manifestação contra a ideia de que há racismo por estas bandas.
O ex-líder da tendência conservadora CDS XXI admite que foi fortemente atacado nas redes sociais, com comentários "desfavoráveis e até insultuosos". O que se repetiu quando anunciou a intenção de bater com a porta ao partido de Francisco Rodrigues dos Santos.
O comentador político Pedro Marques Lopes foi uma das vozes críticas e apelidou-o mesmo de "pateta racista" no Facebook, onde partilhou o texto também ele crítico do centrista Francisco Mendes da Silva. Apesar destas reações virulentas, Pedro Borges de Lemos não se demove de uma aproximação ao Chega. "Assumi esta posição e continuarei a assumir."
O livro A Nova Direita Anti-Sistema - O Caso do Chega, de Riccardo Marchi, professor do Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa (ISCTE), também deu brado. Como assinalou na terça-feira a politóloga Mariana Costa Lobo no Público, a polémica do verão, no que diz respeito às ciências sociais, foi sem dúvida a carta publicada no mesmo jornal por umas dezenas de investigadores e professores universitários, "denunciando a posição apologética do professor universitário Riccardo Marchi nas televisões e nos jornais quando convidado a falar do Chega".