Tortura e racismo na PSP: "Tiveste um AVC? Agora vais ter outro que te vai matar!"
A ser verdade o que Rui Moniz, 26 anos, contou esta sexta-feira no tribunal de Sintra, não existe um pingo de humanidade nos agentes da PSP que estavam na esquadra de Alfragide no dia em que este jovem foi detido, juntamente com outros cinco rapazes da Cova da Moura. Foi humilhado por ter uma deficiência, gozado por ser negro, espancado até ficar quase sem ar e não o deixaram tomar os medicamentos que tem de tomar diariamente para a sua doença.
O Ministério Público (MP) e a Polícia Judiciária (PJ) investigaram e acreditaram na sua versão. A descrição do que sofreu é dos capítulos mais chocantes da acusação que foi deduzida contra 18 agentes (um deles foi, entretanto, despronunciado em sede de instrução) por crimes de tortura, agressões e tratamentos cruéis e desumanos, motivados pelo racismo.
Aos sete anos sofreu um AVC que lhe deixou um braço paralisado e uma perna quase imobilizada. Desde essa idade que usa uma tala presa ao antebraço com ligaduras e move-se coxeando, meio inclinado para a direita. A fragilidade crua com que enfrentou o tribunal deu-lhe a força que, por vezes, não conseguiu ter com as palavras.
Entre risos nervosos, as palavras que utilizou foram poucas, mas muito fortes, no exercício de memória que o fez recuar ao dia cinco de fevereiro de 2015. Não chorou, como Flávio Almada, nem recordou o sofrimento dos negros do bairro, como Celso Lopes - outras das seis alegadas vítimas.
No dia dos acontecimentos, contou, tinha descido do bairro até uma loja de telecomunicações, ao lado da esquadra de Alfragide - momentos depois de ter visto Bruno Lopes (outra das vítimas) a ser detido na Cova da Moura e a ser levado na carrinha da PSP. Neste momento a PSP já tinha detido Flávio, Celso e Paulo Veiga - que tinham ido saber da situação de Bruno - alegando terem tentado invadir a esquadra.
Segundo Rui Moniz, quando passou ainda viu Miguel Reis - outro os ofendidos - "no chão, a ser abordado por polícias", cujo número exato não conseguiu definir, porque continuou o seu trajeto até à loja. Saiu momentos depois, aparentemente sem saber o que se tinha entretanto passado à porta da esquadra e depois no seu interior.
Recordou de uma vez, quase sem interrupções: "Saí da loja e ia a voltar ao bairro quando ouvi umas sirenes atrás de mim. Virei-me e vi três polícias na minha direção. Um deles disse "Olha, ainda por cima é amputado" e outro disse que eu estava a filmar. Levei logo uma cacetada na mão que me atirou o telemóvel para o chão. Depois um soco no olho e atiraram-me para o chão. Fui arrastado até à esquadra. Lá dentro comecei a apanhar mais, socos, pontapés, chapadas. Pediram-me a identificação mas tive medo de tirar. Um dos polícias tirou-ma do bolso, olhou e disse "F... ainda por cima é português" e o outro disse "português não, pretoguês". Depois perguntaram-se o que tinha acontecido ao braço e eu disse que tinha sido um AVC. "Tiveste um AVC e não morreste? Desta vez vais ter um que te vai matar", disse o outro agente. Um deles puxou-me as tranças, que usava na altura. Depois mandaram-me deitar no chão - e foi quando vi que já lá estavam os outros - com a cabeça virada para baixo. Tentaram algemar-me o braço com a tala, mas não conseguiram e prenderam-me ao banco. Todos os polícias que passavam pisavam-me e esfregavam o pé. Comecei a ficar aflito do peito, com falta de ar, não posso, por causa da doença estar assim virado para o chão. Pedi ajuda a um agente, disse que estava aflito. Deu-me um pontapé na cabeça e mandou-me baixar a cabeça".
A juiz presidente, Ester Pacheco, respira fundo e questiona: "tentaram algemar a tala?!?!". "Sim", confirma Rui. A juíza também insiste em saber se Rui estava ou não a filmar e ele garante que não. O telemóvel foi apreendido na altura PSP e devolvido "todo partido" quando os jovens foram presentes pela primeira vez em tribunal, dois dias depois do sucedido, mas como arguidos acusados de tentativa de invasão da esquadra.
O jovem revelou ainda que a sua mãe tinha ido levar à esquadra os medicamentos toma diariamente - aspirinas para prevenir a coagulação do sangue - e que os polícias não deixaram que os tomasse.
Relatou também outro episódio, que não consta da acusação, mas que não deixa de ser surpreendente, tendo em conta tudo o que estava a acontecer. Depois de ser agredido da forma como descreveu, Rui foi levado a outra esquadra, da Damaia, com os outros jovens, para ser feita a "resenha policial". No final, um dos agentes dessa esquadra "pediu" aos colegas de Alfragide para o deixarem ali mais um bocado porque queriam usá-lo numa "fila de reconhecimentos". E Rui, com dores em todo o corpo - ainda não tinha sido levado ao hospital - ainda teve de fazer esse favor aos polícias da Damaia, como se nada tivesse acontecido.
O depoimento de Rui Moniz coincide com o narrado pelos outros jovens e confirma as conclusões da investigação do MP e da PJ. E coincide também com alguns testemunhos que têm sido ouvidos naquele tribunal, por parte dos outros ofendidos, sobre a "normalidade" da violência policial, pelo menos naquela altura, no bairro da Cova da Moura.
Questionado sobre se alguma outra vez tinha ido aquela esquadra e como tinha sido tratado, Rui recordou apenas um incidente. "Houve uma rusga no bairro, encostaram todos à parede. Como eu não tinha identificação fui para a esquadra", referiu. "Mas não foi maltratado dessa vez pois não?", perguntou Ester Pacheco. "Maltratado? Mandaram-me tirar a roupa toda e fazer agachamentos", respondeu, meio a rir nervosamente.
A juiz quis saber que impacto tinha tido na sua vida a situação de 5 de fevereiro, como o tinha afetado. "Sinto-me revoltado", afirmou. "A acontecer o que diz que aconteceu, deve ter causado uma enorme angústia e sofrimento, não é? Já ultrapassou isso?", perguntou Ester Pacheco.
"Tenho medo de estar na rua com os amigos, medo de demorar na rua, medo de passar na frente da esquadra (segundo contou, desistiu de um curso de jardinagem que estava a tirar porque no caminho passa pela esquadra de Alfragide), medo dos agentes poderem aparecerem. Ainda no outro dia passaram numa carrinha e gritaram, "filho da puta!". Ignorei e baixei a cabeça". "Mas já depois deste caso?", surpreendeu-se a magistrada. "Sim", confirmou.