Paula e João foram dos primeiros doentes com covid a entrar no Hospital Curry Cabral. Ele a 13 março, ficou 22 dias. Ela a 15, e por 68 dias. No dia 16, ambos foram para os cuidados intensivos. Ficaram lado a lado, sem saberem. O amor deles é assim, "unidos na saúde e na doença", brincam. Ali, João esteve dez dias, Paula 38. Quando acordaram, não falavam, não se mexiam, não sabiam o que acontecera. João pensou que tinha sido raptado, Paula que o mundo estava em guerra. Era o primeiro sinal do sofrimento que a doença traz agarrado a ela: pesadelos terríveis, um medo intenso de não saber se se está vivo ou não, e alucinações. Um mês depois da alta de Paula, contam como foi. A normalidade chega aos poucos, mas com algumas sequelas.."Ela está aqui internada, o marido também e as filhas sozinhas em casa. Ela tem de reagir." A frase contada por Paula Lopes arrepia. É um dos flashes que guarda dos 38 dias passados na Unidade de Cuidados Intensivos do Hospital Curry Cabral devido à covid-19 e quando lutava pela vida..Ainda hoje não sabe quem eram as colegas que falavam dela e do marido - Paula também é enfermeira no Hospital Dona Estefânia, há 33 anos, na pediatria, 15 dos quais em cuidados intensivos -, mas só tem a agradecer-lhes, porque hoje sente que foi uma das coisas que a fizeram reagir. "Lembro-me de que pensei: 'Filhas em casa? Marido internado? Sou eu, estou viva, tenho de sair daqui.'" Depois tudo se apagou novamente, aos poucos ia sabendo que estava viva por pequenos gestos, procedimentos e até mesmo pelas palavras de quem a tratava. "Eu sabia que estava viva quando ouvia o bip-bip do termómetro no ouvido. Fazia-me pensar: 'Estou cá.' E era a isso que me agarrava.".Os medicamentos aliviam a dor física, mas trazem a amnésia. Nalguns casos, deixam flashes, noutros pesadelos terríveis e até alucinações. E estas, juntamente com "o medo, um medo intenso", foram o sofrimento maior que Paula diz ter sentido aos 55 anos, porque "dor física não senti nenhuma, foi fantástico. Estava sedada e bem sedada"..O marido, João Silva, de 54 anos, chefe de cabina da TAP, não viveu o mesmo, a situação não foi tão grave, apesar de ter tido 36 horas em que os rins quase pararam, mas depois reagiu. João esteve dez dias em cuidados intensivos, mudaram-no de lugar quando Paula piorou. "Tiveram esse cuidado", conta. Ele e a mulher não poupam elogios à equipa que os tratou, "lutaram por nós, não desistiram. Foram fantásticos", afirmam.."Pensava que tinha sido raptado".João não guarda flashes do período em coma induzido, recorda o alívio que sentiu na garganta quando o extubaram e do primeiro pensamento que teve quando acordou. "Vi as pessoas com aqueles fatos e pensei que tinha sido raptado. Só queria fugir. Levantei-me da cama, ia caindo, tiveram de me amarrar para não o voltar a fazer. Só dizia que me tinham raptado, queria chamar a polícia", conta.."Quem acorda fica com a sensação de que esteve num cenário de guerra." Depois foi transferido para infecciologia, onde esteve 12 dias e até à alta hospitalar. Paula também teve pesadelos terríveis. "Nem sei explicar, uns tinham monstros, outros eram com cirurgias, queriam tirar-me os órgãos todos e fazer-me implantes. Não sei se coincidiu com a minha ida ao bloco. Depois explicaram-me que tudo era normal, e que se devia à medicação.".Mas Paula não foi só atingida pelo coronavírus. Este provocou-lhe também uma pneumonia bacteriana e fúngica, uma trombose na perna esquerda, o que a levou ao bloco para a colocação de uma rede na veia cava inferior para evitar que o coágulo subisse, e várias outras situações. "Quando cheguei à enfermaria, foram-me contando aos poucos o que tinha acontecido, mas quando li o relatório clínico penso: 'Bolas, estive mesmo mal'." Antes do vírus, Paula já sofria de uma doença crónica. "Insuficiência renal, faço diálise, talvez tenha sido isto que também agravou o meu estado", explica..Por isso, hoje, prefere recordar os incentivos à vida: "Paula, o teu marido já está em casa. Está tudo bem. Reage" ou "Paula, as tuas filhas estão à tua espera. Tens de reagir". Não os consegue diferenciar no tempo nem quem os disse, só que lhe deram força. Acredita mesmo que terá sido o que fez a diferença entre a vida e a morte, porque, diz, "não há muita explicação para que eu, com tantas situações associadas, tenha sobrevivido e um médico sem qualquer doença não", comenta referindo o primeiro caso de morte de profissionais de saúde em Portugal..Quando regressou ao hospital e esteve com alguns dos colegas que a trataram chegou mesmo a perguntar: "Quem é que embirrava com o meu cabelo?" Ninguém se acusou, mas o simples gesto de lhe tocarem no cabelo fê-la sentir-se viva e isso também lhe deu força. "Tinha o cabelo comprido, devia estar todo emaranhado, os colegas tentavam pentear-me e não conseguiam. Lembro-me de um dia ouvir um a dizer: 'Estou farto deste cabelo, qualquer dia corto-o.' As luvas arrepiavam-me o couro cabeludo, mas faziam-me sentir que estava cá." E tudo se sobrepôs ao momento em que sentiu que estava a afundar-se, a desistir. "Não sei em que altura foi, mas sentia-me muito cansada. Tive a sensação nítida de que ia morrer. Desisti. Lembro-me de pensar: 'Não aguento mais, vou ter com quem quer que seja', mas houve algo que me deu força.".Ao fim de 38 dias em coma induzido, Paula acordou e começou a respirar sem ajuda. "Já tinham marcado uma traqueostomia para o dia seguinte para me extubarem. Não me podiam aguentar mais tempo assim. Tinham tentado extubar-me várias vezes, mas ficava muito instável e não conseguiram, mas quando percebi que estava a respirar, que estava a ver colegas e que estava consciente, foi um alívio." Ficou mais dois dias nos cuidados intensivos para estabilizar e só depois foi para o isolamento em infecciologia, aqui novo choque..Reaprender a falar e a andar."Foi horrível quando percebi que não me mexia e que não conseguia falar. Queria pedir uma coisa tão simples como: 'Mudem-me de posição', e ninguém percebia. Fazia gestos e nada. A equipa ficava desesperada. Vinha um, depois outro e mais outro, e eu não conseguia fazer-me entender." Como profissional, tem consciência de que "fui muito chata para os meus colegas durante este período. Estava sempre a chamá-los, não me sentia bem. Estava numa dependência horrível e foi complicado"..Depois da doença, de dias a fio de barriga para baixo, imobilizada, é natural que o organismo pare. Paula sabe-o bem, já o tinha visto acontecer, mas naquele momento era ela que ali estava. "Foi como renascer. Tive de ser ensinada a movimentar-me e a colocar-me de pé. A primeira vez tiveram de me segurar, não tinha sensibilidade, não sentia sequer o chão.".O regresso aos sons, às palavras e às frases sincronizadas não foi fácil. "Achava que estava a expressar-me muito bem, mas ninguém me entendia. Enrolava a língua, a voz parecia que não saía, e ninguém me percebia." Fez terapia da fala, ensinaram-lhe sons, que praticava como se estivesse a cantar e isso "ajudou-me muito". Embora a fala percetível só tenha surgido mais tarde e de um momento para o outro, depois de uma grande emoção. "Um médico, a quem tinha chateado muito durante a noite, chegou ao pé de mim pela manhã e disse-me: "Vou ligar ao teu marido." Fiquei admirada. Ele fez uma videochamada e vi o meu marido e as minhas filhas. Chorei e depois disse-lhe: "Obrigada." Ele percebeu. Foi uma festa." Mais um profissional que "vai ficar para sempre no meu coração", remata..Regressa a casa e a filha está positiva.Mas enquanto ela ainda lutava pela normalidade, João já estava em casa com as filhas. Tinha regressado ao fim de 22 dias de internamento e a filha mais velha, que antes tinha testado negativo, estava positiva. Mariana, de 20 anos, já na faculdade, ficou 15 dias isolada no quarto.."Eu ainda estava fragilizado, fazia qualquer coisa e tinha de parar, mas a mais nova, Margarida, de 14 anos, ajudou-me muito." Foram tempos difíceis, que coincidiram também com a fase em que Paula piorava. "Cada vez que ligava para o hospital, diziam-me que tinha de levar um dia de cada vez, mas com esperança. Ao mesmo tempo, faziam-me miniconsultas e diziam o que tinha de fazer.".Foi à esperança que se agarraram e hoje seguem em frente. João fala como se já nada se passasse, embora sinta, e Paula o repita, que também está diferente: "Mais calmo." Quando acordou, também não se mexia, não conseguia andar e mal falava. Diz que teve uns cinco dias difíceis, mas depois "começou a fazer tudo naturalmente". É um otimista por natureza. Ao fim de duas semanas, estava a conduzir, já faz caminhadas e já está a ir ao ginásio. Em agosto gostava de regressar ao trabalho, mas não sabe..Sintomas após voo a Brasília.João é chefe de cabina da TAP em voos de longo curso, tinha acabado de chegar de um voo de Brasília quando começou a sentir sintomas da doença, mas não associou. "Todos os anos tenho uma gripe, ainda fiz um teste à malária, que deu negativo, mas o cansaço começava a ser muito e, um dia, por descargo de consciência liguei para a linha SNS 24. Perguntaram-me se tinha estado em Itália, disse que não, que tinha vindo do Brasil, mandaram-me aguardar em casa. Depois, comecei a ter febres altas e voltei a ligar para a SNS 24, já ninguém me atendeu. No dia 13 de março, a Paula estava a trabalhar e eu chamei o INEM, não aguentava mais. Foram-me buscar e levaram-me para o Curry Cabral. Fiz o teste e deu positivo.".Depois foi a vez de Paula fazer o teste. Há dias que tinha dores de cabeça terríveis e muito cansaço, confessa que ela terá desvalorizado os sintomas, como profissional, e desde que se começou a falar do vírus pensava que se iria passar por uma situação idêntica à que já tinha vivido com a SARS ou com a gripe A. Nunca associou, só depois de o marido estar internado. E, no dia seguinte ao teste, ligaram-lhe a dizer que estava positiva. "O INEM iria buscar-me. Lembro-me de ainda ter ligado às minhas filhas e aos meus pais, mas quando cheguei ao hospital apaguei. A partir daqui são só flashes", diz..Quando acordou, não se lembrava sequer do coronavírus, pensou que havia uma guerra. "Vi imagens na televisão de ruas desertas, filas para comprar comida, falava-se de desemprego e eu perguntei se estávamos em guerra. Foi quando me explicaram que vivíamos uma pandemia provocada pelo vírus que eu tinha tido.".Até hoje, Paula e João não sabem como se infetaram. No trabalho, de um e de outro, mais ninguém teve a doença, na família também não, a não ser depois a filha mais velha, mas talvez por eles e "nunca se conseguiu encontrar uma cadeia de transmissão", explica Paula..João saiu do Curry Cabral no início de abril, Paula a 22 de maio, depois do isolamento e de mais 15 dias na enfermaria de reabilitação, onde lhe cortaram finalmente o cabelo. Nesta semana voltou à unidade para consulta de avaliação. Os exames que fez ao coração e ao fígado, órgãos que estão a ser mais afetados pela doença, indicam que está tudo bem. ."Até os rins parecem estar bem, mas hoje viram uma pequena coisa nos pulmões e já me encaminharam para uma consulta de pneumologia", afirma. As sequelas irão chegar, nem que seja anos mais tarde. Com a SARS, em 2002, há doentes que continuaram a ter mais propensão para doenças até 12 anos depois de terem tido a doença..Com a covid-19, e seis meses depois de o vírus ter sido identificado em Wuhan, na China, ainda não se sabe como será. A ciência busca uma vacina que a previna ou um medicamento que a trate. Estudos realizados aos primeiros doentes revelam danos no fígado, coração, nos globos oculares e nas articulações dos pés..Paula e João ainda não têm sintomas de nada, a não ser de cansaço e de falta de resistência, até muscular. "Há coisas que ainda não consigo fazer. Quis cortar as unhas e não consegui. Foi um colega no hospital que o fez", explica Paula. Mas também começou a movimentar-se de cadeira de rodas e agora, depois do andarilho e da bengala que deixou há duas semanas, já anda pelo seu próprio pé. O que antes faziam para se manterem em forma, ir ao ginásio, caminhar, subir escadas, hoje é reabilitação, mas "a vida segue em frente"..Quando um está mais em baixo, tem o apoio do outro e das duas filhas, que "foram excecionais durante este período todo". E quem os vê andar de mãos dadas, numa tarde desta semana, pelo Parque das Nações, nunca diria que já passaram pela batalha da covid-19 e que a venceram. "A esperança não pode deixar de existir, temos de nos agarrar às coisas boas e não estar sempre a voltar ao passado.".João quer regressar aos aviões já em agosto, Paula ainda não sabe quando o poderá fazer. "A minha médica diz-me que vai levar algum tempo. A minha chefe e as minhas colegas dizem-me que vou só para o ano"..Paula é enfermeira no Hospital Pediátrico D. Estefânia há muitos anos. Hoje está nas consultas externas, "muito ligada à de pneumologia, sobretudo crianças com necessidade de ventilação", explica, mas coordenava também o apoio domiciliário a crianças e jovens com doenças complexas e a equipa de paliativos. "Gosto muito do que faço e ainda quero voltar este ano"..A doença revelou-lhes o medo, as fragilidades, mas acreditam que também revelará mudanças. Para eles, algo já mudou, "sentimo-nos muito agradecidos pelo apoio que recebemos da família, dos amigos e até dos desconhecidos".