"Não vale a pena basear estratégias para lidar com o vírus numa vacina"

Para o bioquímico Miguel Castanho, a vacina contra a covid-19 é terreno incerto. Não se sabe para quando ou se quer se resultará. O investigador do IMM aposta tudo num medicamento, mas a cura, admite, não será "para a semana, nem para a seguir, nem para a outra".
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Miguel Castanho é responsável pelo laboratório de Bioquímica de desenvolvimento de Fármacos e Alvos Terapêuticos do Instituto de Medicina Molecular (IMM) João Lobo Antunes, em Lisboa. Nos últimos tempos, o trabalho do bioquímico e da sua equipa é contribuir para a informação disponível sobre o novo coronavírus. Em mente, tem a ânsia da cura, que acredita que virá não sob a forma de um medicamento já existente para outras doenças - como tem sido colocado em hipótese e testado -, mas de um fármaco novo, pensado para este género de vírus.

A vacina - que merece toda a atenção na sua perspetiva - pode estar, no entanto, longe. Pode nem sequer ser encontrada ou pode servir apenas para uma estação e perder o efeito a seguir com mutações do vírus. "Nas vacinas é tudo mais incerto", alerta.

Qual tem sido o contributo do IMM para o desenvolvimento de medicamentos que possam inibir o vírus SARS-CoV-2 (responsável pela doença covid-19)?
Nós temos trabalhado sempre no desenvolvimento de fármacos contra vários vírus, alguns deles com semelhanças estruturais (como o Dengue, Zika, HIV). O que nos tem permitido transpor aquilo que já sabemos desses vírus para o SARS-CoV-2.

A partir desse trabalho, que informações já conseguiram recolher sobre a covid-19?
A informação que temos é a que já está publicada a partir de outros grupos, porque o vírus chegou a Portugal recentemente e, obviamente, não poderíamos trabalhar com o vírus antes de o termos. A informação veio toda da China (onde o vírus apareceu e se registaram os primeiros casos) e tem sido divulgada de forma muito rápida e eficiente. Nem nós estávamos à espera. Aquilo que demorou anos com o vírus da Sida [HIV], demorou três meses com o SARS-CoV-2: o conhecimento das proteínas componentes do vírus, a sua estrutura, organização, a forma como o vírus opera dentro das células. Agora já estamos prontos para avançar com a nossa investigação com amostras locais. No nosso caso, provenientes do Hospital de Santa Maria [em Lisboa] devido à proximidade.

Neste momento, como é que estamos a tratar os doentes com covid-19, em Portugal?
A doença é tão recente que tem algumas tentativas de tratamento, mas não há uma forma muito bem estabelecida e consolidada de a tratar. Isto é, existem formas baseadas na experiência de outros vírus, medicamentos testados em estudos preliminares, mas sujeitos a muitas incertezas, como a hidroxicloroquina [medicamento usado no tratamento da malária] e agora o remdesivir [medicamento experimental utilizado para o vírus Ébola]. O primeiro já está em uso clínico, o segundo está em desenvolvimento.

Para quem trabalha à escala molecular, como nós [no IMM], é claro que somos céticos desde o inicio. A molécula da hidroxicloroquina atua num metabolismo muito especifico do parasita da malária, ora o vírus [SARS-CoV-2] nem sequer tem metabolismo próprio. A relação funcional entre as duas coisas só poderia ser um mero acaso.

O que significa isso na prática?
Significa que este medicamento pode ter eventualmente uma ação antiviral, mas essa ação não é diretamente transponível para este vírus, a forma de administração que se usa, as doses provavelmente não têm relação para o efeito que se quer contra o SARS-CoV-2. Até houve uma grande polémica, porque Donald Trump [o presidente dos Estados Unidos] investiu muito em hidroxicloroquina para dizer que ia travar assim a covid-19, mas isso não aconteceu. Hoje, sabe-se que a hidroxicloroquina tendo alguma ação mais pelo lado anti-inflamatório, não é um medicamento, que na forma atual, possa ser curativo.

Que expectativa tem sobre a descoberta de um medicamento curativo?
Tendo participado há muitos anos em estudos sobre antivirais, nomeadamente, no do SARS-CoV-1, eu deposito mais esperanças não em medicamentos que foram desenvolvidos para outros vírus, mas em estudos que, embora mais atrasados porque são moléculas ainda por aprovar, já pensam neste vírus em específico. Estou a falar do remdesivir, que já foi testado no SARS-CoV-1, mas como deixou de ter interesse mediático e, por isso, político e dos apoios às linhas de investigação foi deixado para trás. Há agora de novo um investimento e o fármaco tem um historial de desenvolvimento para este tipo de vírus [SARS, MERS e depois Ébola], que a mim me deixa mais otimista. Obviamente que vai demorar algum tempo, não só a ter alguma certeza, como há o problema da produção e da distribuição. Isto não é já, para a semana, nem para a seguir, nem para a outra.

E uma vacina, pode estar no nosso horizonte?
Não vale a pena basear estratégias para lidar com o vírus na expectativa de uma vacina, porque para os medicamentos existe algum grau de previsibilidade. É tudo mais tipificável. Nas vacinas é tudo mais incerto. Deve-se investir e fazer de tudo para encontrar uma vacina, porque é uma arma excelente, mas temos de ter a noção de que é incerto se haverá. Ou se haverá uma vacina mais ou menos.

Por exemplo, no HIV investiu-se muito em vacinas, mas por uma razão ou por outra aquilo que parecia muito promissor não satisfez todos os critérios e a vacina nunca apareceu. E não foi por falta de investimento, esforço ou necessidade. A investigação científica pôde muito, mas não pôde tudo. No caso do Sarampo foi ao contrário, de alguma forma as mutações que o vírus foi sofrendo deixaram algumas partes estáveis e foi possível desenvolver a vacina. O que nos diz que pode ser possível desenvolver vacinas em vírus do tipo da SARS-CoV-2. O exemplo intermédio é a gripe, que não tendo uma vacina universal, temos uma vacina sazonal. Se for preciso fazer uma vacina sazonal contra o SARS-CoV-2, mesmo assim será muito bom. A história ensina-nos que o desfecho pode ser qualquer um.

E o processo será sempre longo.
Sim. Até agora não temos nenhuma vacina e ainda que alguma chegue até ao final da fase de testes e que tenha corrido tudo muito bem, depois a produção em escala mundial é um problema por si só, tal como a distribuição. Temos o planeta inteiro à espera da vacina. Há testes que estão a ser feitos e há candidatas a vacinas já testadas em humanos, mas o desfecho que terão é incerto.

Falou-se muito na possibilidade da vacina da BCG [vacina contra a tuberculose​​​​​​]​poder ser utilizada neste contexto. Reconhece o potencial?
Estamos a falar de uma vacina que foi desenvolvida com base num alvo completamente diferente. E nas vacinas tem de haver uma correspondência estrutural das moléculas que estão à superfície de uma determinada bactéria ou vírus. Ora esses elementos estruturais da BCG não têm nada a ver com os do vírus. Estamos a falar de coisas completamente diferente: uma bactéria e um vírus.

O que é que se especula? Que embora não tenha um efeito sobre o vírus em si, pode ajudar o sistema imunitário a lidar com o vírus. Mas se recuarmos e virmos o que está na génese desta hipótese - alguém que olhou para um grupo de países onde a BCG faz parte do plano de vacinação e para um grupo de países onde não faz e viu uma diferença. Lançou a hipótese, mas não quer dizer que haja uma causa-efeito.

Há pouco falava na possibilidade de uma vacina sazonal. Sabe-se se o SARS-CoV-2 pode ser um vírus sazonal e se pode diminuir a incidência durante o verão?
Não se sabe, mas podemos tentar estabelecer alguns cenários possíveis fruto do que já se conhece de outros vírus. Não é um exercício de imaginação é de extrapolação. Os vírus que atacam o sistema respiratório têm uma maior incidência no inverno, por isso podemos colocar a hipótese de estarmos um pouco mais protegidos no verão. No entanto, até agora temos estado todos fechados em casa e não nos temos expostos ao vírus. Temos retardado a progressão da doença, mas também não estamos a adquirir imunidade. Quando sairmos de casa irá ressurgir a aceleração das infeções.

Há alguma estimativa da quantidade de população que estará imune, em Portugal, apesar dos testes serológicos [analises ao sangue que detetam a imunidade da população] ainda não terem começado, pelo menos de forma generalizada?
Eu não tenho números fiáveis, mas as estimativas o que dizem é que a população imune é muito baixa, entre um e dois por cento.

E que quantidade da população é que seria importante estar imune?
Para termos uma imunidade de grupo a partir da qual o vírus já não tem tantas probabilidades de progressão, a maior parte dos especialistas estima entre 60 a 70% da população infetada. Estamos longe, mas é lógico, porque nos fechámos todos em causa. Conseguimos conter razoavelmente a primeira vaga, mas o preço a pagar é este: não termos adquirido imunidade. E agora há que fazer tudo com muita cautela, temos de fazer um plano para sair da quarentena que seja defensivo. Joga a nosso favor a chegada do verão. É possível que a sazonalidade vá determinar a nossa coexistência com este vírus durante algum tempo, ou até muito tempo. Foi o que aconteceu com a gripe. É possível que no futuro tenhamos uma convivência com o SARS-CoV-2 como temos com a gripe.

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