MP já ouviu a jovem colombiana agredida no Porto

Processo entrou em segredo de justiça. PSP e IGAI ainda não ouviram Nicol Quinayas. Segurança que a agrediu alega que ela o agrediu primeiro.
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Nicol Quinayas, a jovem colombiana agredida na madrugada do dia de São João, por um segurança da empresa 2045, ao serviço da Sociedade de Transportes Coletivos do Porto, foi ontem ouvida pelo Ministério Público. A audição terá decorrido das 14.30 às 18 e Nicol foi instruída no sentido de não fazer mais declarações sobre o caso, que entrou agora em segredo de justiça. Nicol, recorde-se, apresentou queixa por agressão - terá sido esmurrada pelo menos três vezes e mantida no chão, de cara para baixo, até à chegada da polícia --, acusando o segurança de lhe ter chamado "preta de merda" e de lhe ter dito para "ir apanhar um autocarro na tua terra" na sequência de uma altercação com um passageiro que teria acusado Nicol de lhe estar a passar à frente na fila.

O MP é a primeira instituição a ouvir Nicol; apesar de a PSP ter aberto um inquérito à atuação dos agentes que na madrugada de 23 para 24 de junho foram chamados ao local da agressão, que terá ocorrido por volta das 5.30 da manhã, nem a agredida nem as duas amigas que com ela estavam foram até agora chamadas por aquela polícia. A Inspeção Geral da Administração Interna, que instaurou um "processo administrativo" relacionado com a atuação da PSP, também não ouviu Nicol até agora.

"Tenho muito medo"

Foi a mãe de Nicol, Angela Morales, que confirmou ao DN que a filha já foi ouvida pela procuradoria, confessando os seus sentimentos contraditórios face ao caso. "Sabe, estou com muito medo. Acho que tínhamos que avançar com a queixa, mas tenho medo que lhe aconteça alguma coisa, que haja represálias. Estamos aqui sozinhas, não temos ninguém, sou só eu e os meus filhos. Tenho muita tristeza por ela estar a passar por isto, só tem 21 anos. E sinto-me responsável por tê-la trazido para aqui, por termos saído da nossa terra."

O segurança que agrediu Nicol, e que segundo informação recolhida pelo DN junto da PSP alega que ela também o agrediu e em primeiro lugar, não tinha, até à primeira semana de julho, apresentado queixa por essa alegada agressão. O DN tentou ouvi-lo para a reportagem publicada a 27 de junho, mas o funcionário da 2045 não respondeu a uma abordagem no Facebook, tendo bloqueado quem o abordou em nome do jornal. Também Tânia Marques, uma das amigas de Nicol que alega ter sido empurrada e também alvo de linguagem racista pelo mesmo segurança, não terá até agora apresentado queixa.

Em causa no processo a decorrer no MP está o crime de ofensas à integridade física, que poderão ser qualificadas (ou seja, agravadas) se se provar a motivação racista na agressão. Nesse caso, trata-se de um crime público; se se considerar que se trata de ofensas à integridade física simples, o crime é semipúblico. Já o inquérito da PSP prende-se com a acusação, por parte de Nicol e de várias testemunhas, de que os agentes que compareceram no local não procederam a qualquer identificação - nem sequer da agredida -- ou recolha de testemunhos e/ou indícios, nem informaram Nicol dos seus direitos; nomeadamente, não lhe terão perguntado se queria fazer queixa. Outro facto que determinou o inquérito é o auto de notícia sobre a ocorrência só ter sido elaborado no dia 27, já após saírem várias notícias sobre o caso e a corporação ter sido confrontada com perguntas de jornalistas sobre a atuação dos agentes e a existência ou não de um auto.

PSP desmente que tenha desmentido Nicol

"Não foram polícias", disse Nicol ao DN sobre a atuação dos agentes, garantindo que nada existia no sistema da PSP quando na noite de 24 foi apresentar queixa à esquadra da Corujeira. O polícia que recebeu a queixa terá mesmo anotado no texto da queixa que não havia qualquer reporte policial da ocorrência, e portanto não havia identificação do funcionário da 2045 que, de acordo com os relatos da própria e de outras testemunhas, esmurrou repetidamente Nicol e proferiu insultos racistas.

A 30 de junho, porém, a RTP noticiava que "a PSP desmentia a versão de Nicol Quinayas", quer no que respeita ao facto de os agentes não terem identificado no local os envolvidos e testemunhas, quer no que respeita à substância do ocorrido, já que, segundo a TV pública, "na estação do Bolhão o efetivo foi confrontado com versões contraditórias sobre o caso." Ao DN chegaram também por essa altura declarações off the record de responsáveis da PSP que garantiam que "a versão da jovem foi destruída pelas testemunhas no local." Mas, contactada formalmente pelo DN, a Direção Nacional da PSP desmentiu ter desmentido a jovem: "A PSP não desmentiu ninguém. Limitámo-nos a transmitir alguma informação genérica de acordo com o relato policial dos acontecimentos, aparentemente não coincidente com a versão apresentada pela jovem. Os agentes policiais não presenciaram as alegadas agressões de que teria sido vítima."

Atribuindo à RTP a responsabilidade pela expressão "desmentido", a Direção Nacional não só não esclareceu perante o DN a "informação genérica" veiculada à RTP como recusou dizer em que momento terá a PSP identificado Nicol Quinayas; assevera apenas que "no expediente policial estão identificados os envolvidos e eventuais testemunhas".

Uma vez que quando o expediente policial foi elaborado, a 27, já existia no sistema, desde dia 24, uma queixa de Nicol com relato dos acontecimentos e testemunhas identificadas, é relevante saber se as testemunhas referidas no auto policial entregue a 27 e que os agentes que responderam à ocorrência dizem ter identificado no local coincidem com as presentes na queixa da jovem ou se são referidas outras. Esclarecimento que a PSP, ainda antes de o processo estar em segredo de justiça, disse não poder dar: "Atendendo a que existe uma queixa e auto policial e que estes foram remetidos para o MP, não nos é possível avançar com detalhes sobre a ocorrência para além da informação genérica já veiculada." Quantos foram os agentes presentes no local, quantas chamadas foram efetuadas a pedir a comparência da PSP e por quem e quanto tempo levou a polícia a chegar são outros elementos que a corporação considera deverem manter-se confidenciais pelos mesmos motivos. Ainda assim a Direção Nacional corrobora a versão de Nicol e das amigas quanto à existência de muitos polícias no local e de que os primeiros a chegar estavam capacete: "Podemos dar nota que a primeira equipa no local foi uma EPRI, Equipa de Prevenção e Reação Imediata (os polícias dos capacetes que a jovem refere) e que, posteriormente, pelo menos a equipa de serviço à área também."

"Quando vi aquela notícia na RTP", diz Nicol ao DN, "pensei: 'Isto é um mundo mesmo mesmo muito mau. Mas não fiquei surpreendida, já esperava que se tentassem safar. Já não basta ter levado aquela porrada e ter sido enxovalhada daquela forma toda, ainda mais isto. Foi mais um soco, mas foi da parte da polícia. Aliás nestes últimos dias em que tenho vindo a tomar noção das coisas o que mais me revoltou foi que a polícia não fez nada, não me protegeu."

Polícia assume relato de agentes sob inquérito

Mas, se a PSP considera que as informações referidas são reservadas, parece ter um entendimento diferente quanto a factos que estão em averiguação pela própria polícia. Assim, apesar de a atuação dos agentes no local ser objeto de inquérito interno, a Direção Nacional veicula nas sua comunicação ao DN a certificação de que os agentes fizeram mesmo trabalho de polícia naquela madrugada, ou seja, recolheram testemunhos: "A referência a versões contraditórias, recolhidas nessa madrugada pelo efetivo que respondeu à ocorrência, resulta do facto de ambos os envolvidos se acusarem mutuamente de agressões e de estas terem sido iniciadas pela outra parte. Recordamos que foram acionadas duas ambulância para o local sendo o vigilante assistido aí e a jovem transportada para o hospital."

A suspeita de que a PSP não terá cumprido o seu dever suscitou perguntas ao ministério da Administração Interna por parte dos grupos parlamentares do BE e PCP, tendo também o líder parlamentar do PS, Carlos César, exprimido dúvidas sobre a atuação daquela polícia. O ministro da Administração Interna acabaria por fazer um comunicado sobre o caso, anunciando uma averiguação ao caso pela Inspeção Geral da Administração Interna.

Os agentes em causa, segundo o DN apurou junto da PSP, estão em serviço normal, não lhes tendo sido aplicada qualquer medida.

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