Mação. Há um plano para evitar que o município modelo volte a arder ciclicamente

O investigador Paulo Pimenta de Castro defende que só a mudança da paisagem, com outras espécies, pode acabar com o flagelo dos incêndios. Por ironia, Mação é considerado um exemplo em matéria de prevenção e limpeza da floresta. De pouco valeu. A autarquia contabiliza 95% do território queimado, um recorde de área ardida em Portugal, o país onde se regista maior número de reacendimentos.
Publicado a
Atualizado a

"O mal está feito. Agora é preciso mudar de vida. Em Mação e em todo o interior", disse hoje ao DN o investigador Paulo Pimenta de Castro, presidente da Acréscimo (Associação de Promoção ao Investimento Florestal), co-autor do livro "Portugal em chamas", publicado depois dos fogos de 2017, em parceria com João Camargo.

O silvicultor que mais tem denunciado os malefícios da monocultura do eucalipto em Portugal acredita que é possível evitar que o interior continue a arder ciclicamente, mas "para isso é preciso intervir rapidamente na floresta, é preciso que o Governo se convença que tem de gastar alguns milhares de milhões de euros". Pimenta de Castro tem passado os últimos dias nas diversas televisões do país a explicar como é que o eucalipto se tornou na espécie dominante por todo o país, suplantando já espécies como o pinheiro bravo e o sobreiro.

"O que temos de fazer agora é convencer a autarquia de Mação - e outras - a mudar de vida, através de um modelo de adaptação ecológica das diferentes espécies. Mas para isso é preciso levar os técnicos para o terreno", disse esta terça-feira ao DN, numa altura em que parece dominado o incêndio que deflagrou no sábado à noite em Vila de Rei, e se estendeu rapidamente aos concelhos da Sertã e Mação. O presidente da Acréscimo pensa reunir nos próximos tempos um grupo de trabalho ligado à arquitetura paisagística, no Instituto Superior de Agronomia, e desenvolver um modelo que possa ser adaptado a vários territórios nacionais, com soluções específicas para cada um". Depois é preciso avançar para essa fase, que requer investimento municipal e nacional.

"É uma questão de perceber o que queremos: se continuamos a ter esta produção lenhosa intensiva e extensiva, ou se avançamos para outra modalidade agro-florestal", sublinha o engenheiro silvicultor, advertindo que, se não quebrarmos aqui esta corrente de fogo que deflagra ciclicamente no interior do país, dentro de pouco tempo "isto será um deserto sub-tropical". Quer dizer com isto que, dentro de poucos anos, quando desaparecerem os habitantes idosos que ainda se mantêm nas casas, o interior não terá condições de atrair moradores. De resto, Pimenta de Castro lembra que até os habitantes estrangeiros que vieram povoar muitas das aldeias desabitadas vão começar progressivamente a abandonar esses territórios. "Ou são apanhados pelo fogo ou começam a fugir dele, antecipadamente".

Quando o eucalipto substituiu o pinheiro bravo

Quando no sábado à noite soube do incêndio em Vila de Rei e Mação, o silvicultor antecipou que o pior estaria por vir, que o cenário de terra queimada e devastação acabaria por repetir-se. Ele que tem com Mação uma ligação especial, pois que morou no Sardoal, foi professor no extinto curso de agricultura na escola profissional, em Mouriscas, e que quando chegou ao território, em 1991, "mal tinha acabado de fazer a mudança já andava de mangueira na mão, a apagar fogo. Foi a minha estreia", conta ao DN. Mais tarde, haveria de viver com intensidade o primeiro grande fogo de Mação, em 1995, quando o pinheiro bravo ainda era a espécie predominante.

Foi depois desse grande incêndio - que consumiu a maior parte da floresta - que os proprietários trocaram a espécie pelo eucalipto: crescimento mais rápido e por isso mais rentável, sem necessitar de grandes cuidados. De modo que, quando voltou a arder com intensidade em 2003, já era mais eucaliptal que pinhal.

"Os proprietários resolveram um problema criando outro", recorda Pimenta de Castro, que em 2015 andou pelo território com o vereador António Louro, atual vice-presidente da Câmara. Foi quando percebeu que "Mação tinha aquilo que a maioria não tem: o cadastro feito". Não apenas da floresta como da população que supostamente toma conta dela, mas cujo retrato é revelador do abandono - 80% está fora do concelho, volta apenas ao fim de semana ou em férias, e dos 20% que restam pelo menos dois terços tem mais de 65 anos.

Mas além desse cadastro, o concelho de Mação é, ironicamente, um dos que são considerados exemplo na prevenção de fogos: estradões que permitem o acesso e combate e limpeza das matas, mesmo antes de serem decretadas por lei. Ao final do dia de hoje as estimativas apontavam para 95% de território queimado. Dos 40 mil hectares de floresta restam cerca de dois mil, nesta altura.

O país recordista em reacendimentos

Na tarde desta terça-feira, quarto dia do incêndio, o fogo estava dado como dominado mas não extinto. O IPMA continuava a registar temperaturas muito altas, entre os 37 e os 40 graus, naquela zona do distrito de Castelo Branco. Mais de 1000 bombeiros continuavam no terreno, apoiados por mais de 300 viaturas e oito meios aéreos, que atuavam sobretudo na prevenção de reacendimentos. E esse foi, de resto, o maior problema desde domingo.

Também a este propósito, Pimenta de Castro lembra que "somos o país recordista", pois que além da área ardida, é o que nos distingue do resto da europa, nomeadamente da vizinha Espanha.

No incêndio de 2017, que se seguiu a Pedrógão Grande, Mação viu arder cerca de 27 mil hectares. Desta vez, contabilizam-se mais de seis mil, até ao momento.

"Não há nenhum concelho que se possa comparar. Naquilo que ardeu em 2017 em Mação cabem três vezes o concelho de Pedrógão Grande e mais do que ardeu em Monchique, Portimão e Silves, tudo junto, no incêndio de 2018", disse esta manhã o vice-presidente António Louro, em declarações à TSF. E sublinhava aquilo que já ontem o presidente da Câmara, Vasco Estrela, dissera ao DN: nenhum sistema municipal de proteção civil tem "qualquer capacidade para responder a frentes de fogo, vindas de outros concelhos, com três a quatro quilómetros".

De resto, ambos os autarcas estão convencidos da mesma ideia defendida por Pimenta de Castro: mais do que apostar nos meios de combate ao fogo, é preciso "mudar a paisagem e apostar o regresso da agricultura", no que era o retrato do país rural, em que os agricultores zelavam pelos campos, roçavam mato nos pinhais e ainda mantinham o equilíbrio com a pastorícia.

Artigos Relacionados

No stories found.
Diário de Notícias
www.dn.pt