Foi o mais novo dos oradores na conferência Cibersegurança e Ciberdemocracia, promovida pelos Serviços de Informações e pela Defesa Nacional no início da semana. Com apenas 22 anos e já uma longa experiência em "contranarrativas" de ódio, David Ruah, professor de Filosofia, é um determinado ativista dos direitos humanos. Na conferência chamou a atenção pela forma simples e direta como falou dos perigos do extremismo violento e como os jovens o podem combater. Faz parte de uma rede europeia que "desmonta" a desinformação dos terroristas e da extrema-direita..O que é ser um especialista na área da contrapropaganda ou contranarrativa digital?.Sempre tive interesse desde muito cedo na temática da violência extremista. Na escola, sempre que se falava da Inquisição, do Holocausto, tudo o que envolvia violência extremista suscitava em mim uma grande motivação para debater. Com 16 anos comecei a envolver-me no associativismo de direitos humanos..Qual foi a sua primeira missão?.Comecei na Amnistia Internacional, na área de educação para os direitos humanos. Nessa altura recebemos um convite para um workshop de contranarrativas, organizado por um think thank inglês - Institute for Strategic Dialogue - especializado na prevenção e no combate à violência extremista..Que idade tinha?.Tinha 18 anos..E nessa altura - estamos a falar de há quatro anos - quais eram as preocupações?.Já se falava muito no terrorismo islâmico e na forma como era utilizada a internet para difundir as suas mensagens, radicalizar e recrutar jovens. Este instituto era pioneiro nas contranarrativas e capacitaram um grupo de ativistas de direitos humanos, como era o meu caso, atores, pessoas ligadas à comunicação, para desenvolverem campanhas de contranarrativas. Deram-nos um dia para desenvolver um plano. O instituto dava apoio de consultoria, mas nós é que tínhamos de executar o projeto quando regressássemos aos nossos países..Foi aí que nasceu a campanha Humans of Tomorrow?.Sim, foi aqui. Eu e outros cinco jovens espanhóis e portugueses tivemos a ideia, embora depois acabasse por ser eu a avançar. O objetivo era combater a linguagem de ódio que é difundida online, através de testemunhos na primeira pessoa, relacionadas com problemáticas dos direitos humanos. Era uma espécie de "Humans of New York", mas direcionada para os direitos humanos. Entrevistei vítimas de terrorismo, ex-terroristas, ativistas de direitos humanos, pessoas ligadas a conflitos - tudo numa perspetiva global e com grande enfoque nos jovens..Qual destes testemunhos foi o mais desafiante?.O mais desafiante, que ainda hoje me faz pensar muitas vezes, foi o do sobrevivente do atentado extremista da Noruega em 2011 [levado a cabo por Anders Breivik], que é hoje meu amigo. A mensagem fundamental é que, apesar de toda a violência e do ódio pelo qual passou, ainda assim consegue ser resiliente o suficiente para não ter um sentimento de vingança. Em vez de dizer "isto aconteceu-me e tenho de me vingar de todos os extremistas de direita", foi trabalhar em projetos de desradicalização, atribuindo assim significado à experiência traumática que teve, utilizando-a como força para melhorar o mundo..Que mensagem pode um ex-terrorista trazer para um objetivo de contrariar a narrativa do ódio?.Pode contar na primeira pessoa toda a sua experiência e assinalar os efeitos nefastos da violência..Mas vai desradicalizar alguém?.Vai fazer uma coisa muito importante, que é alertar para os efeitos da violência - e essa mensagem pode ser relevante para prevenir a radicalização de um indivíduo vulnerável que não seja ainda um terrorista. O testemunho pode não combater a ideologia, mas vai demonstrar como o extremismo leva a danos físicos, traumas psicológicos e consequências do ponto de vista legal. Este ex-terrorista do IRA foi condenado e esteve vários anos na prisão..E como o convenceu a participar?.Acontece muitas vezes a pessoas que já abandonaram a violência extremista começarem a trabalhar em desradicalização, de modo a dar o seu exemplo. É muito relevante amplificar estas vozes..E acabou por ser convidado para ir à sede das Nações Unidas apresentar este seu projeto, não foi?.Sim. O Instituto para o Diálogo Estratégico considerou a campanha tão relevante que me dirigiu esse convite. Neste ano, espero criar uma ONG que terá como âmbito a tecnoética e a cidadania digital; colocarei o Humans of Tomorrow debaixo da tutela dessa ONG..E daqui passa para a RAN - Radicalization Awarness Network -, uma rede de alerta europeu, para a prevenção da radicalização?.Depois desta campanha, decidi que queria continuar a trabalhar nesta área. Contactei várias ONG a oferecer-me como voluntário. Por coincidência, a RAN, que é um projeto da Comissão Europeia, estava a criar o seu grupo de jovens. Conheciam o Humans of Tomorrow e convidaram-me para liderar a plataforma RAN Young, na qual tinha uma equipa com outros três jovens. O objetivo era defender e implementar o ideal de que os jovens são protagonistas com um papel relevante na prevenção do radicalismo. Quando falamos do recrutamento terrorista, o primeiro alvo são sempre os jovens..E como é que os jovens podem prevenir a violência extremista?.Através de táticas de linguagem interpares podem desafiar e desconstruir a propaganda terrorista, ter um papel relevante em processos de inclusão dos seus amigos e familiares e, de algum modo, estar capacitados para lidar com este problema no futuro. Estive neste projeto até ao final do ano passado e a plataforma agora já se transformou num grupo oficial RAN Young, o que é espetacular..Sente que fazem diferença? Ou a voragem de toda a desinformação extremista é imbatível?.A resposta da sociedade aos processos de desradicalização e de prevenção não é apenas com as nossas contranarrativas. É multissetorial. Há grupos que envolvem diversos setores de atividade, desde autoridades policiais a responsáveis ligados à educação, à saúde, aos apoios sociais, a universidades. Redes como a RAN o que fazem é juntar profissionais de primeira linha de todas essas áreas, sentá-los à mesa a dialogar para encontrarem soluções tangíveis que combatam a violência extremista. Esta abordagem multissetorial é a única hipótese de mitigar um problema de tão grande complexidade como é a violência extremista. Sem esta rede as coisas seriam muito mais difíceis..Quais são os principais desafios neste momento na contranarrativa digital?.Destaco quatro desafios principais: a descentralização operacional, a segmentação de interesses das audiências, a facilidade de criação de milícias online e as ambiguidades da linguagem de ódio. Com o acesso ao mundo digital e às facilidades que este proporciona, os grupos terroristas podem estar descentralizados operacionalmente. Isto implica que tenhamos indivíduos que se autorradicalizam e, nesses casos, o mundo online funciona como um catalisador do processo social de radicalização. O digital não é a fonte mas um acelerador, a fonte são as vulnerabilidades e é por aqui que tem de começar o nosso combate..Que vulnerabilidades?.As vulnerabilidades psicológicas e sociais, por exemplo. O processo social de radicalização vai sempre iniciar-se numa vulnerabilidade. Falo de sentimentos de alienação e injustiça social, de exclusão, de pessoas que sentem que o país não está a dar a resposta económica que era precisa ou que se sentem discriminadas. É este tipo de vulnerabilidades que são aproveitadas pelos grupos terroristas e extremistas. Esses grupos surgem como a resposta a essas vulnerabilidades. Dizem-lhes: "Vocês sentem-se excluídos pela sociedade e nós vamos ajudar-vos a mudar o mundo, impedindo que mais pessoas sintam o mesmo. Vocês podem ser heróis!".E como é que se desmonta isso?.Em primeiro lugar tentar diminuir estas vulnerabilidades. Uma contranarrativa vai tentar amplificar vozes que contrariem os pensamentos que levam um indivíduo vulnerável a acreditar que a única solução é a violência extremista. Por exemplo, se estamos a falar de extremismo de origem salafista, essa violência extremista vai basear-se no sentimento de injustiça social que alguns muçulmanos sentem nas comunidades. Vão dizer que o islão verdadeiro é aquele que consegue combater o Ocidente. É evidente que se trata de uma visão fundamentalista do islão, mas os extremistas vão difundir esta mensagem. Uma contranarrativa vai amplificar a voz de quem consegue responder contra esta visão fundamentalista, dando voz, por exemplo, a líderes e ativistas das comunidades islâmicas que consigam desconstruir esta propaganda..Mas as vulnerabilidades de que fala não são virtuais. Há pessoas de certas comunidades, ou estratos sociais, que se sentem mesmo excluídas e injustiçadas....É por isso que as contranarrativas não podem ser só em relação aos conteúdos online. O objetivo é sistematizar uma resposta, que como já disse é sempre multissetorial, e aplicá-la também online, tal como fazem os extremistas..Além do extremismo islâmico, como vê o avanço também da extrema-direita e dos populismos no meio digital?.Há aqui um conceito fundamental que é o da guerra psicológica. A violência extremista tenta sempre disseminar uma ideologia. A guerra psicológica envolve operações claras de desinformação. Minar as estruturas epistémicas das pessoas, fazer que estas não saibam distinguir os factos dos não factos. Fazer que se sintam inseguros do ponto de vista das suas crenças fundamentais. Depois há também a propaganda que vai tentar manipular, não apenas cognitivamente, mas também emocionalmente, dando resposta às tais vulnerabilidades. Não se pode reduzir a violência extremista ao salafismo. A violência extremista existe em todos os setores religiosos, sociais, políticos. Na Europa, neste momento, além do extremismo religioso islâmico, também há o da extrema-direita. E esta extrema-direita tem características diferentes do fundamentalismo religioso e da violência extremista salafista. Uma delas é a tentativa de vitimização, segundo a qual o islão está numa guerra com o Ocidente e se não fizermos nada o nosso território será todo controlado por "eles". Logo, não podemos aceitar o multiculturalismo..Os discursos anti-imigrantes, antirrefugiados....Exatamente. E fundamentados em teorias da conspiração, do género os judeus dominam a Economia, dominam o mundo, logo devem ser excluídos..Ainda nesta semana o secretário-geral da ONU, António Guterres, alertou para o crescendo de antissemitismo e incitações ao ódio e à violência por organizações neonazis....Apesar de Portugal ser um bom exemplo no que toca à inclusão social, esse é um tipo de discurso que está instalado em muitos países. Neste momento, tem-se também intensificado devido à polarização de opiniões em relação a Israel. Opiniões políticas todos podemos ter, mas não devemos atacar um todo em nome de uma parte. Costumo dizer aos meus alunos que é a "falácia da generalização precipitada", muitas vezes são estas falácias que estão na base da linguagem do ódio. São erros de raciocínio que fogem à factualidade e tentam manipular. Por outro lado, não podemos aceitar nenhuma incitação de violência, isso claramente ultrapassa os limites legais da liberdade de expressão..E como se educa as pessoas, principalmente os mais novos, para saber distinguir os factos das falácias?.Combate-se a guerra da desinformação fomentando o espírito crítico. É fundamental, a começar pelos jovens. Não é meramente ensinar-lhes teorias científicas, filosóficas. É também fazer que os jovens as questionem, educá-los para o pluralismo democrático e cultural, ensiná-los que temos de conviver com ideias diferentes, desde que essas ideias não desrespeitem a nossa Constituição. Ensiná-los a contra-argumentar e a não se deixarem ser manipulados. Contudo, é relevante afirmar que viver com culturas diferentes não significa um relativismo cultural, aceitar tudo. Temos também de ensinar aos nossos jovens que os direitos humanos estão acima das vivências culturais..É professor de Filosofia. Sente que os jovens são recetivos a isso?.Da minha experiência, concluo que sim. São muito críticos e motivados. Não são acéfalos nem acríticos. Estou até convencido de que presentemente o associativismo está a ganhar terreno entre os jovens..Ultimamente tem-se falado muito de extrema-direita e de racismo em Portugal. O que pensa disto?.Neste momento penso que a nossa extrema-direita não tem representatividade nem força. Não quer dizer que não possa vir a ter. E temos de ter muito cuidado com isso. A extrema-direita em Portugal, nas últimas décadas, esteve envolvida em crimes com motivações ideológicas, relacionados com processos sociais de radicalização. Quanto ao racismo, infelizmente existe quer no nosso país quer em todos os países do mundo. E como respondemos ao racismo? Nunca com ódio nem com mais discriminação - porque isso só irá dividir ainda mais a sociedade. Não podemos legitimar esse tipo de linguagem nem de ideias. Não creio que se combata o racismo com linguagem de ódio, por exemplo, contra elementos da autoridade policial..E qual é o seu próximo projeto?.Estou neste momento a trabalhar num projeto europeu, cofinanciado pela Comissão Europeia, liderado pela Universidade Lusófona, sob coordenação do professor José Oliveira. Chama-se Rethink - Alternative Narratives for Violent Extremism e consiste em campanhas, todas com contranarrativas que visam, com a ajuda de testemunhos de várias comunidades e experiências próprias, atingir vários públicos-alvo, quer vulneráveis ao extremismo islâmico quer à extrema-direita. A Comissão Europeia concluiu que uma das formas mais eficazes de combater o extremismo é dar ferramentas à sociedade civil para a desconstruir. Uma das campanhas visa também ajudar a sociedade civil a ganhar resiliência digital, saber distinguir as fake news, por exemplo..Quando olha para tudo o que está a acontecer no mundo, na Europa da solidariedade que não se entende para receber refugiados, o que o motiva para continuar?.Sou otimista e acredito nas novas gerações. A educação e todo este trabalho que temos feito não tem resultados imediatos. Mas quando chegam são muito compensadores. Como professor é uma grande motivação ver um aluno que há pouco tempo nem sabia o que eram direitos humanos, nem se preocupava em debater ideias e, entretanto, vai ganhando um espírito mais crítico, um entendimento da pluralidade democrática e consciência moral. É uma sementinha de curiosidade intelectual que fica. Tal como nas contranarrativas de prevenção de radicalização, onde se põe uma semente de dúvida, para que os públicos vulneráveis consigam questionar mensagens de ódio e ideais de violência..Entrevista originalmente publicada no DN de sábado, 2 de fevereiro