"Às vezes, acho que vou andar com a casa às costas até me reformar"
São 18 586 os professores contratados colocados até ao momento. Quantos deles foram colocados, e aceitaram a colocação, longe de casa não se sabe ao certo, mas estima-se que sejam alguns milhares. Que vida levam e como é que a pandemia veio afetá-la?
É de Mirandela e há 12 anos que o seu futuro profissional tem o prazo de validade de um ano letivo, que só conhece em finais de agosto, princípios de setembro, e que é diferente a cada ano.
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Ilda Cristina Contins, 40 anos, professora de Matemática e Ciências Naturais, já passou pelo Laranjeiro, em Almada, por Odivelas e Amadora, na Grande Lisboa, por Pias e Amareleja, no Alentejo, por Faro, Silves e agora Loulé, no Algarve. A cada ano, volta à casa de partida, que é a da família, e de lá sai rumo a sul, à procura de casa adotiva. Já perdeu a conta àquelas por onde passou, mas são uma das maiores dificuldades que um professor deslocado enfrenta. Em poucas semanas, há que encontrar alojamento e os preços raramente são de feição.
"Na região de Lisboa e arredores são incompatíveis com o salário de um professor contratado, a maioria divide casa ou aluga quarto. No Algarve, os preços são um bocadinho melhores, mas em junho, julho, os senhorios querem as casas para alugar aos turistas. É complicado", diz.
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Uma reportagem do DN, no ano passado, dava conta desta realidade, contando as histórias de professores que estavam a viver em parques de campismo no Algarve, enquanto procuravam alojamento.
A 700 quilómetros de casa, que permitem apenas visitas em período de férias letivas, este ano nem na Páscoa Cristina Contins pôde matar saudades da família, devido ao confinamento.
Este ano, a pandemia jogou a favor de Cristina, no que à casa diz respeito, porque permitiu-lhe manter a que tinha. "Com a quebra no turismo, os senhorios preferiram jogar pelo seguro e eu fiquei. Com os anos, os contratados vão conseguindo fazer alguns cálculos que lhes permitem antecipar em que zona serão colocados e com que horários. Esta vida requer jogo de cintura".
Requer. E Cristina parece tê-lo. Assim como dedicação à causa. Em março, quando as escolas fecharam, não pôs sequer a hipótese de voltar para Mirandela e fazer de lá a base para o ensino à distância. A dar aulas ao primeiro ciclo do ensino básico num meio desfavorecido e a uma turma em que a maioria não tinha computador ou acesso às tecnologias, a professora ficou por perto, para garantir que não deixava ninguém para trás. "Todas as semanas ia entregar fichas e trabalhos ao agrupamento, que os encarregados de educação iam buscar e depois traziam. Assim, os meus meninos não perderam o contacto com a escola".
A 700 quilómetros de casa, que permitem apenas visitas em período de férias letivas, este ano nem na Páscoa pôde matar saudades da família, devido ao confinamento.
Em todos os concursos, "por descargo de consciência", candidata-se a colocações na sua região, mas sem qualquer esperança de conseguir vaga. "A maioria dos professores são do norte e a maioria das vagas está no sul. Seria preciso que um elevado número de professores lá em cima se reformasse para existir uma hipótese de ficar lá e mesmo assim as vagas que vão surgindo vão para os mais graduados e efetivos que pedem mobilidade. Às vezes acho que vou andar com a casa às costas até me reformar", diz Cristina, que tem o Algarve e o Alentejo como alternativas de eleição.
"Para quem tem filhos e família constituída é mais complicado sempre, mas acho que este ano ainda mais. Por não quererem estar longe neste contexto, mas também porque não estão para se deslocar, com tudo o que isso implica, por um horário incompleto e temporário que pode deixar de existir se passarmos a teletrabalho"
Apesar de este ser o seu terceiro ano na região algarvia, o que pode dar ideia de alguma estabilidade, a verdade é que quando o ano acaba, nunca sabe, com certeza, o que o próximo lhe reserva. Este ano, foi colocada na terceira reserva de recrutamento, no agrupamento de escolas Duarte Pacheco, em Loulé, com turmas de 5.º e 6.º anos, a dias de o novo ano letivo arrancar. "Ainda fui a tempo da receção aos alunos e da reunião de pais da minha direção de turma".
Não é fácil estar longe da família, não é fácil manter um relacionamento amoroso estável nem tantas vezes adiar a vida pessoal (e os filhos) à espera que a carreira assente, não é fácil a solidão e o isolamento dos lugares novos, que pesam (e desmotivam) mais à medida que o tempo passa, mas Cristina não desiste de ser professora. Nem em tempos de pandemia, que levou muitos colegas a não concorrerem (ou aceitarem colocação) a lugares muito longe de casa. "Para quem tem filhos e família constituída é mais complicado sempre, mas acho que este ano ainda mais. Por não quererem estar longe neste contexto, mas também porque não estão para se deslocar, com tudo o que isso implica, por um horário incompleto e temporário, que pode deixar de existir se se passar a teletrabalho, por exemplo".
Não há falta de professores em Portugal, há é falta de apoios e incentivos para que os muitos que estão por contratar no norte do país se desloquem para sul, onde estão a maioria das vagas por preencher.
O número de professores por colocar não é conhecido. Não é fácil apurá-lo, uma vez que todas as semanas as escolas abrem vagas na plataforma da Direção Geral de Administração Escolar, do Ministério da Educação (ME), que podem ou não ser preenchidas pelos professores contratados que fazem parte da reserva de recrutamento. A Fenprof diz que apenas o ME estará em condições de avançar esse número, mas, questionado pelo DN, o ME até ao momento não respondeu.
Num recente artigo do DN sobre a falta de professores, Manuel Oliveira, vice-presidente da Associação Nacional de Professores, e Filinto Lima, presidente da Associação Nacional de Diretores de Agrupamentos e Escolas Públicas, diziam que ainda era cedo para apurar quantos professores estavam em falta nas escolas portuguesas, mas tanto estes dirigentes como João Louceiro, da Fenprof, são unânimes em afirmar que, por enquanto, e sublinham este por enquanto, não há falta de professores em Portugal, há é falta de apoios e incentivos para que os muitos que estão por contratar no norte do país se desloquem para sul, onde estão a maioria das vagas por preencher.
Na opinião de João Louceiro, da Fenprof, este é um problema que não tem que ver com a pandemia, é muito anterior a esta e a curto prazo pode ser um desastre para a educação em Portugal. "A precariedade e instabilidade já fazem parte da imagem da profissão e esta carga simbólica está a afastar os jovens da docência. É um problema que urge resolver".
Dos 872 professores que passaram de contratados aos quadros, a média de idades era de 46 anos e a média do tempo de serviço era de 16 anos e meio.
E resolvê-lo, na opinião do dirigente sindical, passa por, além de criar incentivos e apoios aos professores deslocados, como existem para outras profissões, responder às necessidades permanentes das escolas com a abertura de lugares de quadro e o estabelecimento de vínculos efetivos.
"Este ano, foram até agora colocados 18 586 professores contratados, cerca de metade para horários completos (22 horas de componente letiva) e anuais, a outra metade para horários incompletos e temporários. Dos 872 professores que passaram de contratados aos quadros, a média de idades era de 46 anos e a média do tempo de serviço era de 16 anos e meio".
A legislação estabelece no entanto que depois de três anos de contrato, anual e com horário completo, um professor passa ao quadro. "Essa foi uma norma decorrente da transposição de uma diretiva comunitária para corrigir os abusos na contratação, que, apesar de algumas melhorias, tem revelado pouca eficácia. É a chamada 'norma travão', mas basta um professor, que já tenha tido dois anos de horário completo e anual, aceitar um horário incompleto e temporário, porque não tem alternativa e tem que trabalhar, para voltar à estaca zero. Nestas condições, é possível que um professor ande de contrato em contrato até à aposentação", diz João Louceiro.
É para evitar isso que muitos aceitam colocações longe de casa, na esperança de "efetivarem" mais depressa.

Cátia Magalhães tem 29 anos, é de Braga e foi reconduzida para a Escola Secundária D. João V, na Damaia. Divide casa com três colegas, todas do norte do país.
© Paulo Spranger/Global Imagens
É o caso de Cátia Magalhães, 29 anos, professora de Português, História e Geografia, que é de Braga e depois de três anos no Algarve, em escolas diferentes e sempre com horários incompletos e temporários, que a fizeram algumas vezes pôr a hipóteses de desistir, foi colocada o ano passado no agrupamento de escolas D. João V, na Damaia, onde continua este ano, uma vez que foi reconduzida.
Foi um alívio, mas só o sentiu em agosto, quando saíram as listas da contratação inicial. Desde março que estava em casa, a dar aulas à distância, e por isso voltou a experimentar a dor de cabeça de encontrar alojamento. "Há muita oferta, mas são preços impossíveis. Para cima de 600 euros por um T0 não mobilado nos arredores de Lisboa está fora de causa para um professor contratado".
A solução foi partilhar casa com três colegas, todas do norte. 300 euros por um quarto na Amadora. Mais as despesas de transportes, alimentação e outras. No Algarve pagava a mesma coisa por um T2 onde vivia sozinha. Mas está contente com a escola e os alunos, mesmo nestes tempos estranhos.
"Não tenho filhos nem tenho que gerir uma relação à distância, por isso não é tão complicada para mim esta opção, mas sei de colegas para quem é um problema grande".
"Eu sou uma professora de afetos e custa-me muito não os abraçar, então agora no início ainda foi mais difícil, mas tem que ser. Eles são muito cumpridores e a escola está muito capacitada para responder à situação da pandemia", diz Cátia, para quem partilhar casa neste contexto não levantou nenhuma questão. "Somos todas muito cuidadosas"
Ainda se lembra de quando chegou ao Algarve de autocarro, saída de Braga às cinco da manhã, com quatro malas e apenas uma pálida ideia do que a esperava, aos 25 anos, sem ninguém que conhecesse, no extremo oposto do país.
"Foi uma aventura. Fiquei a primeira semana numa pensão. Depois, além do trabalho, é andar para cima e para baixo. Custa um bocadinho, o que safa são os amigos que vamos fazendo".
Focada na carreira e apostada em ganhar tempo de serviço e efetivar, tem concorrido sempre também para o QZP1, que abrange a sua zona de residência, mas sabe que a colocação é quase impossível. "Não tenho filhos nem tenho que gerir uma relação à distância, por isso não é tão complicada para mim esta opção, mas sei de colegas para quem é um problema grande".
"Gosto muito dos meus alunos. Quando estamos longe, eles acabam por ser a nossa família. Estava sozinha lá em baixo e tinha todo o tempo para trabalhar. Quanto menos tempo passasse em casa, melhor"
Branca Marques Esteves, 44 anos, espera que não o seja para si. Com dois filhos, de oito e dez anos, decidiu, aos 43, depois de muito tempo a trabalhar no privado, a recibos verdes e sem qualquer proteção laboral, que era agora ou nunca e concorreu ao ensino público.
Professora de Inglês e Alemão, de Gondomar, foi, no ano passado, colocada num agrupamento de escolas do Cacém, onde agarrou oito turmas, dos oito níveis de ensino, e a direção de uma turma complicada com quem agora fala regularmente por videochamada, tais as saudades e a relação de cumplicidade que criou.
"Gosto muito dos meus alunos. Quando estamos longe, eles acabam por ser a nossa família. Estava sozinha lá em baixo e tinha todo o tempo para trabalhar. Quanto menos tempo passasse em casa, melhor", diz Branca, que quarta-feira, 23 de setembro, soube que tinha sido colocada, agora em Cascais, onde terá que se apresentar na segunda-feira, 28 de setembro.
Em 24 horas arranjou casa em Carcavelos, que dividirá com uma professora de psicologia e dois engenheiros espanhóis, e ainda não parou com tudo o que tem que preparar até ir para baixo.

Branca Marques Esteves, com os dois filhos, de quem terá que se separar durante a semana. A professora de Inglês e Almeão de Gondomar sou na quarta-feira, 23 de setembro, que tinha sido colocada em Cascais.
© D.R.
"O ano letivo anterior foi completamente atípico e na prática só estive seis meses longe de casa. Desde março que os meus filhos me têm perto deles o dia todo, todos os dias, por isso acho que agora é que vai ser a prova de fogo", diz, confiante de que vai correr bem.
Conta com o apoio do marido, que passou a ter que vestir os miúdos, preparar refeições, fazer mochilas e ser pai e mãe, pelo menos durante a semana, e dos pais e dos sogros, que ajudam na parte logística de ir levar e buscar à escola. Todos os fins de semana, rumará a norte, para estar com a família.
"Se não tivesse estes apoios, com dois filhos, não poderia concorrer para longe", diz Branca, que considera que, tal como existe noutras profissões, os professores deviam ter ajudas de custo ou outro tipo de apoios. "As despesas são imensas e um contratado não sai do primeiro escalão, o que significa um salário de pouco mais de mil euros. Temos que pagar alojamento a dobrar, água, luz, gás, deslocações. É preciso ter muita vontade".
A pandemia levantou-lhe questões, mas não a fez pensar duas vezes. "As escolas são seguras, há mais riscos cá fora do que lá dentro e nós temos que aprender a viver com esta doença. Cá ou lá o risco seria o mesmo. Eu sou muito cuidadosa com o cumprimento das regras, faço as minhas deslocações em Lisboa todas de carro, raramente vou a cafés ou restaurantes, é casa-escola, escola-casa, e por isso acho que vai correr tudo bem. Temos é que fazer por isso".
" aquela iniciativa da Câmara Municipal de Oeiras de criar alojamento para professores deslocados devia ser uma medida central, mas ao que parece este não é um problema que esteja na linha da frente para ser resolvido"
Já José Paulo, 41 anos, de Braga, professor de Educação Especial, colocado há dois num agrupamento de escolas da Tapada das Mercês, em Sintra, tem alguns receios. Não tanto por ele, mas pelos pais, que há estão no grupo de risco da covid-19. A partilha de casa, as deslocações e o dia-a-dia são uma preocupação que gere com todos os cuidados para evitar o contágio.
Pouco confortável com a exposição das dificuldades por que passa um professor deslocado, porque não quer assumir o papel do "desgraçadinho", José Paulo prefere falar das soluções que na sua opinião deviam ser uma prioridade do governo.
"Por exemplo, aquela iniciativa da Câmara Municipal de Oeiras de criar alojamento para professores deslocados devia ser uma medida central, mas ao que parece este não é um problema que esteja na linha da frente para ser resolvido", diz, contando que quando esteve colocado na Amadora, pagava 495 euros por um quarto em Alfragide, fora as despesas extra de luz que a senhoria não raras vezes impunha.
Uma parte considerável da sua carreira foi passada a ministrar Ciências Experimentais nas AEC (Atividade de Enriquecimento Curricular), no primeiro ciclo, porque isso permitia-lhe ficar perto de casa, mas contava pouco para o tempo de serviço, o que o levou a arriscar concorrer para longe. Esteve quatro anos na Madeira, distância que contribuiu para o fim do seu casamento, passou por Almodôvar, no Alentejo, esteve dois anos na Amadora e agora está há outros dois na Tapada das Mercês, em Sintra.
Pelas salas de professores por onde passou, não foram poucos os que conheceu a quem a distância afetou a vida pessoal e os casamentos. Há muitos professores divorciados. Há muitas professoras que andam com os filhos atrás, de escola em escola. Há muita gente com as vidas adiadas. É um elevado preço a pagar na busca de alguma estabilidade profissional, mas José Paulo tem esperança que a sua, aos 41 anos, não esteja longe, ao contrário da sua cidade natal.
"É o segundo ano consecutivo que tenho um horário completo anual. Se correr tudo bem, falta-me um ano para efetivar".