As perguntas que queimam no caso Ihor

Mais de oito meses depois de a morte do cidadão ucraniano ser tornada pública, ainda está quase tudo por perceber - nomeadamente até onde foi a tentativa de encobrimento e que papel teve a recém-demitida diretora. O DN enumera as principais questões no dia em que Eduardo Cabrita vai ao parlamento.
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Foi na noite de 29 de março que a TVI deu a notícia ao país: tinha morrido um cidadão ucraniano sob custódia do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) no aeroporto de Lisboa e havia três inspetores suspeitos do homicídio. As circunstâncias da morte, ficou-se então a saber, tinham sido denunciadas à Polícia Judiciária (PJ) por um anónimo, já que o SEF a tinha tratado como "natural". A TVI revelou o essencial da investigação: os três inspetores teriam espancado o cidadão estrangeiro, cujo nome não era dito, na manhã de 12 de março, e este teria morrido cerca de dez horas depois: o INEM foi chamado mas não o conseguiu salvar.

Na manhã de 30, os três inspetores foram detidos no seu local de trabalho e o diretor de Fronteiras de Lisboa, Sérgio Henriques, assim como o seu adjunto, Amílcar Vicente, que dirigiam o SEF do aeroporto de Lisboa, demitidos.

A direção nacional do SEF fez um comunicado nesse dia a confirmar as detenções e demissões e a assegurar que colaborara com a investigação "desde o início", tomando "logo medidas disciplinares". Nunca esclareceu que "logo" era esse, já que os suspeitos estavam ao serviço quando detidos, tal como a direção de Fronteiras de Lisboa estava em funções até esse momento.

A diretora nacional do SEF manteve o silêncio sobre o caso até 15 de novembro, quando na RTP afirmou que se tratara de "tortura evidente". E que fora enganada, já que lhe tinham dito que tinha morrido uma pessoa de paragem cardiorrespiratória na sequência de uma crise convulsiva - o que está escrito na certidão de óbito assinada pelo médico do INEM que tentou reanimar Ihor e lhe atestou a morte às 18.40 de 12 de março (à Polícia Judiciária, quando inquirido, o clínico afirmou que não se dera conta de sinais de agressão).

Na mesma entrevista, Cristina Gatões garantiu que só soubera pormenores do caso pela comunicação social - ou seja a partir de 29 de março.

Não foi questionada sobre quem a tinha enganado e que medidas tomara ao saber da morte; por que motivo o SEF só a comunicara à Inspeção-Geral da Administração Interna passados seis dias, a 18 de março, quando a lei impõe que o faça "de imediato"; que acontecera ao processo de averiguações interno obrigatório nestes casos, e do qual o relatório da IGAI, conhecido à data da entrevista (e que propõe processos disciplinares a 12 inspetores), aparentemente não encontrou rasto.

Posteriormente a esta entrevista, o DN noticiou que Gatões tinha tido conhecimento das suspeitas de crime logo a 19 de março - pelo menos, já que a Brigada de Homicídios da PJ, que fora alertada para o caso a 14, por uma denúncia anónima e pelo médico que fez a autópsia, iniciou os contactos escritos com o SEF a 17.

Como se demitiu antes da audição desta terça-feira, esta inspetora do SEF de carreira, que está nesta polícia desde 1992, não vai ser confrontada com estas questões.

E mais uma: se Gatões sabia desde 19 de março da existência de uma investigação, como se explica que o ministro diga que ele só soube a 30? A diretora do SEF escondeu o facto da tutela? E tê-lo-á escondido igualmente do seu adjunto José Luís Barão, que assumiu agora a direção do SEF a título interino? Poderia o adjunto, que foi chefe de gabinete de Eduardo Cabrita, desconhecer a investigação da Brigada de Homicídios ao SEF?

Questões:

1. ATRASO NA COMUNICAÇÃO DA MORTE. A morte de Ihor Homeniuk foi declarada por um médico do INEM às 18.40 de 12 de março, no espaço equiparado a centro de instalação temporária (EECIT) do aeroporto de Lisboa, onde são detidos os estrangeiros a quem é recusada a entrada no país.

A lei impõe que quando haja morte de um detido esta deve ser comunicada "imediatamente" ao Ministério Público, à Inspeção da Administração Interna (que fiscaliza as polícias) e à família.

A comunicação escrita ao MP foi efetuada pelas 21.59; para a Embaixada da Ucrânia seguiu um mail poucos minutos antes da meia-noite, quando o corpo já fora entregue ao Instituto de Medicina Legal. Não é conhecida a razão pela qual o cadáver ficou tanto tempo no EECIT.

A IGAI só foi notificada a 18 de março, quando até já existia uma investigação criminal da Polícia Judiciária (que foi alertada para a morte a 14 de março, por uma denúncia anónima e pelo médico que fez a autópsia - o MP determinou que esta fosse realizada). Ou seja, nenhuma das comunicações ocorreu de imediato como a lei prevê, e uma delas levou seis dias a efetivar-se.

O SEF não cumpriu a lei em nenhum dos casos e no da IGAI atrasou a comunicação quase uma semana. Esse atraso nunca foi explicado pela direção do SEF e o MAI nunca o valorizou. Porquê?

2. SEF ESCONDE SUSPEITAS DE CRIME. Na comunicação finalmente feita pelo SEF à IGAI não há menção a suspeitas de crime, apesar de a PJ ter iniciado a investigação a 16 e haver troca de mails da brigada de homicídios com o SEF a partir de 17 - dia em que a PJ terá também visitado as instalações do SEF no aeroporto. Como se explica que apesar de ter conhecimento de que existia uma investigação de homicídio o SEF mantivesse a versão da morte natural para a entidade que o fiscaliza?

3. DIRETORA SOUBE DAS SUSPEITAS DE CRIME MAS NÃO AGIU. Segundo a IGAI, esta ficou a aguardar "mais informações" sobre a morte; a 30, com a detenção dos três inspetores suspeitos do homicídio de Ihor, o ministro determinou-lhe a abertura de inquérito disciplinar.

Durante todo esse tempo, o SEF não comunicou à IGAI as suspeitas de crime. Mas, como o DN revelou a 5 de dezembro, um mail de 19 de março do então diretor de Fronteiras de Lisboa, Sérgio Henriques, para a PJ, com a lista dos funcionários ao serviço nos dias 10, 11 e 12, seguiu com conhecimento para o gabinete da diretora nacional Cristina Gatões e para o chefe do departamento de inspeção interna do SEF, João Ataíde.

Prova-se assim que desde esse dia - senão antes - que a diretora sabia da investigação da PJ. No entanto o SEF só tomou medidas disciplinares a 30 de março, demitindo o diretor de Fronteiras de Lisboa e o seu adjunto, quando a PJ deteve os três inspetores suspeitos do homicídio de Ihor. Porquê os 17 dias de inação do SEF? E, mais uma vez, como se explica que não tenha informado a IGAI do que se passava?

4. DIRETORA AFIRMA QUE FOI ENGANADA E SÓ SOUBE PELA COMUNICAÇÃO SOCIAL. Em entrevista à RTP difundida a 15 de novembro, a então diretora do SEF disse ter sido "enganada", que lhe "esconderam a verdade" e que só soube das suspeitas pela comunicação social. Mas, como se prova, estava pelo menos desde 19 de março a par da investigação. Por que motivo alega não ter sabido?

5. MINISTRO FOI ENGANADO? Eduardo Cabrita já repetiu várias vezes que só soube das suspeitas de crime a 30 de março. Significa isso que a então diretora do SEF lhe escondeu a existência da investigação da PJ? Nesse caso, porque não a demitiu de imediato?

6. UMA AVERIGUAÇÃO QUE NÃO AVERIGUOU NADA? De acordo com o que Eduardo Cabrita disse na audição de 8 de abril, o SEF abriu "logo a 13 de março" um processo de averiguações interno à morte.

Porém no seu relatório sobre as circunstâncias da morte a IGAI não faz qualquer menção a esse processo de averiguações e suas eventuais conclusões. Que averiguou esse processo de averiguações? Quando foi encerrado? Porquê? Com que conclusões?

7. NÃO HÁ CONSEQUÊNCIAS PARA DEPARTAMENTO DE INSPEÇÃO INTERNA DO SEF? No relatório da IGAI não só não é mencionado o dito processo de averiguações interno do SEF como não é referida a sua obrigatoriedade nem retiradas quaisquer consequências do facto de aparentemente a IGAI não o ter encontrado.

Não é suposto alguém ser responsabilizado por o processo ter desaparecido, nunca ter existido ou não se ter averiguado nada? O departamento de inspeção do SEF, que é uma polícia criminal, serve para quê?

8. AÇÃO CONCERTADA DE ENCOBRIMENTO: QUEM PARTICIPOU? De acordo ainda com o relatório da IGAI, o então diretor de Fronteiras de Lisboa (DFL), Sérgio Henriques, esteve no CIT após a morte de Ihor e ao pé do corpo - as câmaras de vigilância registaram a sua imagem junto à sala onde o cidadão ucraniano morreu, cerca de duas horas após o óbito.

Foi só depois de Henriques chegar que foram feitas as comunicações por escrito ao MP (houve um telefonema anterior, do qual não se sabe a hora) e à embaixada. Segundo a IGAI, Henriques terá enviado um mail para todos os inspetores que tinham contactado com Ihor para que "lhe fizessem chegar por escrito qual tinha sido a respetiva interação" com o ucraniano.

Não é especificada a data do mail nem aquela em que esses textos lhe chegaram; mas o relatório de ocorrência (RO) respeitante a Ihor - e que quando este morreu estava em branco em parte do dia 11 e em todo o dia 12, apesar de ser obrigatório o seu preenchimento (todos os passos dos estrangeiros a quem é recusada a entrada devem ser ali anotados) - enviado à PJ a 7 de abril é manuscrito com várias caligrafias e com as datas e as horas anotadas como se tivesse sido preenchido à medida que as coisas aconteciam.

Segundo a IGAI, o que ali foi dito não corresponde à verdade: "Da leitura do RO compaginada com a factualidade apurada é evidente a omissão de informações fundamentais, o que demonstra uma intenção de ocultação da verdade com a consequente obstrução à instrução de processos de natureza criminal e/ou disciplinar."

O que, considera ainda a IGAI, "conduz à conclusão de uma eventual ação concertada para encobrimento dos factos que teriam contribuído para a morte do cidadão ucraniano, a qual foi declarada por doença natural. Esta convicção assenta na elaboração conjunta (e confessa) do RO (...) após o óbito do cidadão, sob orientação do DFL que visionou as imagens recolhidas pelas câmaras de videovigilância no dia 16 de março".

Retira-se daqui que quatro dias depois do crime o DFL tinha em seu poder as imagens que a PJ pediu formalmente a 17 de março. Que fazia entretanto o departamento de inspeção do SEF? E a diretora nacional?

9. CENTRO DE DETENÇÃO ENTREGUE A SEGURANÇA PRIVADA. IGAI afirma também que apesar de a orgânica do SEF prever um coordenador do EECIT, o lugar estava vago, pelo que eram os seguranças da empresa privada de segurança Prestibel a assumir a gestão do local e das pessoas detidas, ficando assim em posição de autoridade pública.

Diz o relatório: "Constitui fator de risco acrescido destas situações a ausência de uma figura de autoridade em permanência no EECIT, uma vez que no sistema de organização e funcionamento do EECIT, implementado pelo SEF, se externaliza para a esfera privada, através da contratualização de serviços de segurança privada, a guarda efetiva de cidadãos estrangeiros.(...) Esta situação revelou-se crítica nos autos, pois permitiu a total ausência de supervisão e controlo da atividade exercida pelos vigilantes que, de forma consciente e deliberada, manietaram o cidadão ucraniano com fita adesiva, desobedeceram às indicações transmitidas pelos inspetores do SEF e se negaram a prestar qualquer tipo de assistência e auxílio ao cidadão, com o fundamento de que não teriam autoridade para o fazer sabendo de antemão que este não se podia valer a si próprio nem estaria em condições de pedir auxílio."

A IGAI regista também que "à data dos factos ocorridos no EECIT não existia contrato de prestação de serviços de vigilância que regulasse essa mesma prestação. De realçar que a proposta apresentada pela firma Prestibel data de 2 de março de 2020, ou seja, após o início do período de execução contratual".

Como foi possível esta situação? O ministro deu-lhe o seu aval? Que vai suceder com este contrato? Os vigilantes que manietaram Ihor e os que não lhe prestaram auxílio continuam a trabalhar no EECIT?

10. ILEGALIDADE DA RECUSA DE ENTRADA. A Ucrânia celebrou um protocolo com a UE que permite aos seus nacionais estadas até 90 dias sem visto.

Quer no texto da acusação do MP aos três inspetores do SEF quer no relatório da IGAI é levantada a questão da legalidade da recusa de entrada de Ihor no país.

Diz o MP que uma vez que Ihor não teve acesso a intérprete e que alegadamente quem fez a tradução na entrevista foi uma inspetora do SEF que fala russo, essa tradução padeceria de ausência de imparcialidade.

A IGAI afirma que os inspetores que decretaram a não entrada não estavam legalmente habilitados para tal, por não existir delegação de competências por parte da direção. Desde quando se verificou esta situação de ilegalidade? Já foi sanada? Como se compreende que inspeções e auditorias da IGAI e do departamento de inspeção interno do SEF nunca a tenham detetado?

11. FALTA DE FISCALIZAÇÃO. A IGAI pode desde 2015 efetuar inspeções sem aviso prévio (ISAP) aos centros de instalação temporária (CIT) e espaços equiparados a CIT. De acordo com a informação recolhida pelo DN, nunca foi feita uma ISAP ao EECIT de Lisboa, considerado "problemático" pela própria IGAI e pela Provedoria de Justiça. Porquê? Houve outro tipo de inspeções, porém - que falhas foram encontradas e que recomendações efetuadas? Essas recomendações foram acatadas?

12. FALTA DE MEIOS DA IGAI. Tendo a função de fiscalizar as forças de segurança sob tutela do MAI - muitos milhares de pessoas -, a IGAI está neste momento com deficiência de meios. Num quadro de 14 inspetores, tem oito; não pode admitir magistrados sem uma alteração da lei orgânica que está desde 2018 à espera de aprovação. Como se pode esperar uma fiscalização eficaz com tão poucas pessoas?

13. ALERTAS IGNORADOS. Há anos que os relatórios da Provedoria e do Mecanismo Nacional de Prevenção da Tortura apontam os CIT e EECIT como espaços com risco de tortura e apontam várias medidas urgentes de defesa dos direitos humanos - acesso garantido a apoio jurídico (em Lisboa os advogados tinham de pagar uma taxa para chegar ao CIT e eram submetidos a longas esperas) e a intérpretes, informação em línguas que os detidos possam compreender (só existia em português, espanhol, francês e inglês), acesso a meios de comunicação (por "motivos de segurança" os telemóveis eram retirados aos detidos), observadores externos nos espaços. Essas medidas só foram tomadas após a morte do cidadão ucraniano. Porquê?

14. APOIO JURÍDICO. Que prevê o protocolo com a Ordem dos Advogados? Os juristas ficarão onde? Está garantida uma presença de 24 horas ou só em determinados horários? A partir de que fase do processo está prevista a sua intervenção?

15. DETIDOS NÃO ERAM PRESENTES A TRIBUNAL. Uma das normas fundamentais do Estado de direito impõe que ninguém pode estar detido mais de 48 horas sem ser presente a um juiz. Porém o hábito no SEF era enviar um mail/fax para o tribunal pedindo a extensão da detenção.

Foi o que aconteceu no caso de Ihor, sendo que a informação dada pelo SEF era falsa (afirmava-se que ainda não tinha sido repatriado porque a companhia aérea não disponibilizara voo, elidindo o facto de ter recusado embarcar e de ter estado hospitalizado e, claro, de ter sido sujeito a medidas coercivas). O juiz estendeu por mais cinco dias o período de detenção, sem perguntas e sem ver o detido ou certificar-se de que os seus direitos estavam a ser respeitados. A Provedoria de Justiça detetou esta prática e considerou-a tão grave que merecedora de uma inspeção específica - que não chegou a ocorrer. Como é possível que uma polícia contorne assim uma norma legal, e que os tribunais sejam disso cúmplices?

16. ARMAS PROIBIDAS. Nas imagens de videovigilância, um dos inspetores acusados do homicídio de Ihor empunha um bastão extensível. Quando foram detidos, 18 dias após o alegado crime, dois dos arguidos tinham em seu poder bastões desse tipo.

O bastão extensível é uma arma de classe A, que não faz parte do armamento do SEF e que necessita de uma licença especial de porte, passada pela PSP.

Por esse motivo estes dois inspetores estão também acusados de posse de arma proibida.

Nas inquirições quer da investigação criminal quer da IGAI vários inspetores, incluindo chefes, admitem terem visto muitas vezes essa arma à cintura dos colegas e inferiores hierárquicos mas que "partiam do princípio de que estes tinham licença". O DN já perguntou ao SEF e ao MAI se foram tomadas medidas para recolher estas armas e processar disciplinarmente quem as possuísse; não houve resposta.

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