Um tango argentino
- Então, doutor, não é possível
tentar o pneumotórax?
- Não.
A única coisa a fazer
é tocar um tango argentino
Manuel Bandeira,
Pneumotórax
Poupo hoje os meus leitores a mais uma enumeração patética dos males deste mundo (e não temos outro...), remetendo antes para o poema em epígrafe de Manuel Bandeira a minha análise da situação.
O tango argentino pode não ser uma fuga à realidade, antes uma maneira hábil de a despistar e confundir, pelo humor. A beleza pode não salvar o mundo, mas o riso ajuda a desmascarar os seus coveiros e a reduzi-los à sua mediocridade.
Freud entendia que só poderíamos escapar ao instinto de morte, que leva a chacinar-nos periodicamente uns aos outros, pela arte e pela cultura. Os filmes que nos mostram os dignitários do Terceiro Reich em êxtase com as sinfonias de Beethoven, dirigidas por Furtwaengler, fazem-nos descrer desta saída. O sublime não enfrenta os monstros, antes lhes dá aura. A troça, sim, pode ajudar a esvaziá-los.
O humor é a melhor resposta ao desespero. O tango argentino para que nos convida Manuel Bandeira é a saída do que não tem saída, a solução para o que não tem solução.
Posto isto, falemos de trivialidades. Por exemplo, dos criminosos que nos chegam doutras terras.
A única vez que fui assaltado à mão armada aconteceu no Algarve e fui vítima de um forasteiro que viera ali trabalhar. Um homem de fora parte, um imigrante.
Tratava-se de um sujeito de Oliveira de Azeméis (sempre que passo por essa amável terra, onde nasceu Ferreira de Castro, um frio percorre-me a espinha), condenado, mas no gozo de liberdade condicional, que dividia o seu tempo de reinserção social entre o serviço num bar da praia e o furto de variados bens, deixados pelos banhistas imprudentemente na areia, quando iam ao mar.
Este cidadão pretendia agora rumar a outras praias e decidiu assaltar-me para me roubar o carro e o telemóvel. Era, porém, o ladrão mais azarado que Oliveira de Azeméis deu à luz: ao abrir o carro fez soar os alarmes e isso levou a que acudissem ao local os agentes da GNR colocados naquela praia.
Apanhado o infeliz criminoso em flagrante, houve que levá-lo ao tribunal. Eu ia como testemunha, o guarda republicano conduzia e o preso ia atrás, explicando que só me roubara o telemóvel a fim de telefonar à Reinserção Social, para relatar os seus progressos.
Corretíssimo, o jovem guarda informou o detido de todos os seus direitos. O homem pediu então um advogado oficioso.
Quando o advogado chegou, solicitou uma reunião com ele à porta fechada. Depois de fechada a porta, alegou um insuportável calor e pediu para abrir a janela. E então, sob o olhar atónito do advogado, atirou-se da janela que abrira.
Não foi longe: caiu em cima de um automóvel estacionado em frente do tribunal e saiu dali, sob prisão, para o hospital.
Meses mais tarde recebi uma carta do guarda que me assistira, solicitando a minha ajuda.
O ladrão caíra em cima do automóvel de uma funcionária do tribunal, a quem o seguro recusara qualquer indemnização, por não estarem previstos danos causados nos veículos por pessoas que se atirem das janelas. A funcionária decidira processar a GNR por incúria na guarda do preso.
Escrevi então à Direção da GNR, louvando a conduta exemplar do guarda e atribuindo os desastres ocorridos à falta de grades nas janelas das salas do tribunal onde os acusados conferenciam com os seus advogados.
Recebi no verão seguinte o emocionado agradecimento do guarda republicano pela minha intervenção.
E se tocássemos agora um tango argentino?