Trump, Davos e o mundo real
Uma boa parte da atividade política é espetáculo e os melhores farsantes conquistam muitas vezes os prémios mais cobiçados. Esta foi uma semana rica na matéria.
Começou com a tomada de posse de Donald Trump e a avalanche de medidas que imediatamente tomou. Preencheu, com o passar dos dias, o espaço mais visível da comunicação social. O impacto da sua eleição foi um tema recorrente, quer na imprensa, quer nos mais variados encontros políticos. Na terça-feira deu mesmo azo a uma longa encenação audiovisual entre os presidentes da Federação Russa e da China. Vladimir Putin e Xi Jinping quiseram lembrar que têm uma relação especial, sobretudo quando se trata da competição com os EUA.
Foi, no entanto, uma mensagem ambígua. Trump havia convidado o dirigente chinês para a cerimónia de investidura, mostrando assim quem pesa na sua agenda internacional, para além de meia-dúzia de extremistas tresloucados ou íntimos do seu escudeiro atual de estimação, Elon Musk. Em contrapartida, já durante a semana e sem grande empenho, numa espécie de à parte, fez que criticou Putin por este não estar interessado na abertura de um processo de paz com a Ucrânia.
Trump interessa-se especialmente pelo relacionamento com a China, considerando-a a verdadeira rival dos EUA. E vê a competição como uma questão económica e de influência política, de liderança mundial, e não tanto como de defesa, por não acreditar que Beijing consiga um dia ultrapassar o poderio militar americano. A observação atenta de certos indicadores faz-me concluir isso, bem como que os seus objetivos incluem minar a aliança entre Putin e Xi e impedir a formação no Sul Global de um pacto hostil. Aliás, uma das ameaças que proferiu nos últimos dias foi contra os BRICS. Parece ser claro que tudo fará para impedir um entendimento desse género.
O seu discurso inaugural também pode ser visto como uma mensagem particularmente importante para Xi: se a China agir militarmente Taiwan, a atual Administração em Washington poderá considerar essa agressão como algo que não lhe diz respeito, como um assunto interno da China, e, por isso, não intervir. Trump disse claramente que não tem a intenção de participar noutras guerras, exceto nas dirigidas diretamente contra os interesses americanos. A questão de Taiwan, na filosofia mercantilista do presidente americano, não apresenta os mesmos perigos que possíveis ataques contra o Japão, a Coreia do Sul, as Filipinas, o Vietname, o Sudeste Asiático ou certas ilhas do Pacífico Ocidental representariam.
Ao citarem a prioridade asiática, Trump e os que gravitam na sua órbita parecem ter sobretudo esses países em mente, bem com a liberdade de navegação nos mares que circundam a China e no Oceano Índico. Num caso, para dificultar a expansão chinesa e ter acesso às águas próximas da Coreia do Norte. Noutro, porque o Índico permite à Marinha de Guerra norte-americana visar facilmente o Médio Oriente e o Irão. A concentração de uma significativa força marítima no Índico e a vastíssima presença no atol de Diego Garcia permitem aos EUA estar presentes na região que pode ameaçar seriamente Israel e defender a produção e o comércio do petróleo e do gás de países fundamentais para a estabilidade do Médio Oriente, sem que os americanos precisem de ter tropas em terra.
A estabilidade da Índia é um fator igualmente primordial. Trump parece não prestar atenção a essa evidência. Muitos dos que estiveram em Davos, na reunião anual do Fórum Económico, o outro grande acontecimento político da semana, mostraram perceber que a Índia está, de modo cada vez mais acelerado, a tornar-se um dos grandes atores económicos mundiais. Não tem, nem deverá ter nos próximos anos, a capacidade necessária para ser um rival a sério da China ou dos EUA, por lhe faltar a unidade nacional e um poder central forte, mas possui o engenho, a habilidade criadora, a dimensão populacional, uma diáspora de cientistas e uma localização geográfica que jogam fortemente a seu favor. A União Europeia deveria dar uma atenção especial ao relacionamento com a Índia. Por todas essas razões e também para diminuir o peso relativo dos EUA e da China na economia e nas alianças internacionais europeias.
Curiosamente, tivemos na mesma semana em Davos a grande missa anual de celebração do multilateralismo e da globalização, e, em Washington, a entronização solene do seu contrário. Davos voltou a focar-se nos grandes problemas globais e na necessidade da cooperação internacional. Embora na maioria dos casos seja apenas uma oportunidade para umas boas conversas e para renovar contactos, beber champanhe e degustar caviar, teve este ano o mérito de sublinhar que há mais mundo para lá da megalomania de Donald Trump, de Elon Musk e de outros lapas multibilionários.
Conselheiro em segurançainternacional.
Ex-secretário-geral-adjunto da ONU