Transições e tensões no teatro nuclear contemporâneo
“O risco de um conflito nuclear
é hoje mais elevado que no apogeu
da Guerra Fria.”
Izumi Nakamitsu
Alta representante para Assuntos
de Desarmamento da ONU
Em Dezembro de 1989, pouco depois da queda do Muro de Berlim, teve lugar, nas águas de Malta, uma cimeira com contornos épicos que congregou Mikhail Gorbachev (primeiro-ministro soviético) e George H.W. Bush (presidente dos EUA). Este encontro, provavelmente o mais significativo desde a Conferência de Ialta de 1945, que então uniu figuras como Winston Churchill, Josef Stalin e Franklin D. Roosevelt, assinalou o crepúsculo da Guerra Fria, inaugurando uma nova era onde o diálogo substituiria a política de dissuasão (assente na ameaça de retaliação nuclear) que havia marcado a Guerra Fria.
A Cimeira de Malta emergiu como o zénite de um processo de negociações intensivas entre Gorbachev e Ronald Reagan (predecessor de Bush), culminando, em 1987, na assinatura do Tratado de Forças Nucleares de Alcance Intermediário. Neste pacto emblemático os EUA e a União Soviética comprometeram-se a eliminar toda uma classe de mísseis nucleares, visando dissipar a sombra de aniquilação que se estendia sobre o mundo desde meados do século XX.
A estabilidade prometida por esses acordos revelou-se, todavia, efémera. Em 2019, Donald Trump e Vladimir Putin anunciaram a suspensão da participação dos respectivos países no dito tratado, reacendendo o receio de uma renovada corrida armamentista, reminiscente dos sombrios tempos da Guerra Fria. Cinco anos volvidos, o panorama geopolítico encontra-se marcado por múltiplas fontes de tensão que exacerbam a incerteza global. A postura assertiva da China em relação a Taiwan e as suas acções no Mar da China Meridional, as persistentes turbulências no Médio Oriente e a insistência russa em anexar território ucraniano, são apenas alguns dos epicentros de instabilidade que desafiam a ordem mundial e ameaçam desencadear escaladas catastróficas.
Perante estes desafios, conforme recentemente revelado pelo New York Times, Joe Biden aprovou, em Março deste ano, um novo plano nuclear. A iniciativa visa reorientar a abordagem norte-americana em sede de dissuasão, num mundo onde as ameaças são multifacetadas e interligadas. Paralelamente, a NATO encontra-se a transitar para um estado de maior prontidão militar e de mais elevada cooperação entre os Estados-membros, ecoando o antigo adágio Si vis pacem, para bellum (se queres paz, prepara-te para a guerra). O princípio, enraizado na doutrina militar romana, transformou-se num pilar central da estratégia da aliança, que procura não só aprimorar os arsenais existentes, mas também fortalecer a sua credibilidade de dissuasão.
Neste enquadramento, regido pela multipolaridade, pelas complexidades e pela incerteza, múltiplos cenários podem emergir. Podemos, por exemplo, deparar-nos com um tabuleiro geopolítico onde certas potências, como os EUA, a China e a Rússia, disputam influência através de estratégias que incluem, predominantemente, alianças fluidas e conflitos travados por meio de proxies (já se vislumbrando sinais nesse sentido) ou com uma configuração na qual determinadas nações, dotadas de arsenais nucleares robustos, como a China e a Rússia, optam por desenvolver e utilizar armas nucleares tácticas para alcançar objectivos militares limitados, mitigando a possibilidade de escalada e exigindo uma redefinição da doutrina de dissuasão nuclear e uma reavaliação dos limiares de retaliação.
O grande desafio consiste, sem dúvida, em navegar com grande cautela num panorama em que a estabilidade universal é incessantemente testada pela ambição de potências nucleares emergentes, pelo ressurgimento de rivalidades antigas e pela emergência de novas alianças estratégicas.
Neste contexto volátil, a ausência de recurso à via nuclear depende, não apenas da credibilidade em sede de dissuasão nuclear (com base no poderio militar manifestado) mas também de uma acção diplomática que estabeleça a clareza e firmeza de propósito da doutrina nuclear, assegurando que a racionalidade e a moderação prevalecem sobre o impulso bélico, criando uma barreira robusta contra o impensável.
Nota: A autora não escreve de acordo com o novo Acordo Ortográfico.