Técnica do golpe de Estado
Há dois dias centenas de apoiantes de Trump invadiram o Capitólio enquanto decorria a ratificação da vitória de Joe Biden. Instigados pelo ainda presidente, grupos militantes quiseram tomar a sede do sistema político norte-americano. Foi uma tentativa de golpe de Estado. Pode soar-nos a melodrama ou a exagero. Mas não há outra forma de o descrever. Consideremos, então, algumas das causas e das consequências deste episódio.
Causas
1) Esta ação reflete um perigoso desespero de Donald Trump. Nos últimos dias foi acometido a um total isolamento político. Em primeiro, pela óbvia derrota eleitoral; e em segundo pelo rompimento com Mike Pence e Mitch McConnel - não pactuaram com recusa em reconhecer Biden como presidente.
2) Sobraram-lhe assim os apoiantes mais aguerridos, a quem recorreu apelando à insurreição: "We will never give up, we will never concede." Retida esta frase os Proud Boys, os Bogalloos, os QAnon e outros militantes, que no limite defendem a violência, sentiram-se legitimados para a sedição.
3) E aqui há um ethos e um pathos retórico a considerar. Trump ainda é presidente dos EUA e comunga com estas milícias o antiestatismo, as teses conspiracionistas da política americana, o separatismo e um etnonacionalismo branco. Portanto, a mobilização não foi difícil e o efeito surpresa ajudou.
4) A isto ainda acrescentamos, talvez, um certo pudor securitário das autoridades norte-americanas. É muito recente e resulta de duas variáveis. A primeira tem que ver com o trauma do Black Lives Matter. A segunda, por se saber que qualquer aparente excesso de violência contra estes grupos, organizados e bem armados, causará uma profunda disrupção social numa América altamente dividida. E é isso que eles querem - legitimidade para a violência e, eventualmente, uma guerra civil.
Consequências
1) O governo não caiu. Mas a república pareceu-nos indefesa contra inimigos internos. Aliás, o dia 6 de janeiro de 2021 demonstrou que há um grande número de cidadãos norte-americanos que acham que pode perturbar as funções básicas democracia com impunidade e pôr em causa uma normal transição pacífica do poder. Embora este episódio seja o ocaso de Trump, foi também uma demonstração de que trumpismo não é um epifenómeno e tem lastro.
2) Mas a democracia americana vai continuar. Sofrerão mais oposicionistas de outras geografias que cedem o tempo e a vida por aquilo que os norte-americanos dão como adquirido e que Trump não considera um valor absoluto.
Washington perdeu para Caracas, Hong Kong, Moscovo, Minsk, Teerão ou Riade. O poder diplomático do exemplo perdeu o brilho. E isso vai ter impacto a longo prazo.
Em 1931, Curzio Malaparte, escritor e jornalista, publicou o livro Tecnica del Colpo di Stato. Aqui, apontou as várias modalidades do golpe de Estado. Em todas, a questão fundamental não é política, mas sim técnica. Esgotada a decisão no foro institucional, a disputa escala para outro nível. Ultrapassa-se o limite da legalidade, em que se usam recursos técnicos para resolver impasses político-institucionais.
No dia 6 de janeiro de 2021 foi isto que aconteceu - a tentativa de rutura da ordem jurídica. As democracias não estão imunes a isto. A América provou-o bem. E isso vai pesar-nos no futuro.
Professor universitário/investigador