Episódio 1: em novembro de 2023, o presidente de governo espanhol Pedro Sánchez levantou dúvidas sobre o direito de Israel a defender-se e admitiu reconhecer a Palestina como Estado. Em pano de fundo, intensa acrimónia social e política motivada pela amnistia aos separatistas catalães.Episódio 2: a 28 de maio de 2024, Sánchez aprovou o reconhecimento da Palestina. Isto enquanto Begoña Gómez, a sua mulher, estava prestes a ser constituída arguida por crimes de corrupção e tráfico de influências. Há muito que a imprensa noticiava o caso. O escândalo foi de tal ordem que no mês anterior, a 24 de abril, Sánchez anunciou ao país uma pausa de cinco dias para reflexão, deixando no ar a ameaça de demissão.Episódio 3: a 6 de junho do mesmo ano, Espanha juntou-se ao processo movido pela África do Sul contra Israel por genocídio em Gaza perante o Tribunal Internacional de Justiça. Dias antes, em plena campanha para eleições europeias, um juiz chamou Begoña Gómez a prestar declarações em tribunal.Episódio 4: em novembro de 2024, Espanha impediu a escala de navios dos Estados Unidos da América no porto de Algeciras, sob o argumento de que transportavam armas para Israel. Isto no mês em foram constituídos arguidos David Sánchez, irmão do presidente de governo, e Miguel Gallardo, líder do PSOE na Extremadura. Episódio 5: em abril de 2025, Espanha cancelou uma encomenda de munições israelitas para as forças de segurança. Dias antes fora revelado que Begoña Gómez intermediou o resgate financeiro da companhia aérea Air Europa, alegadamente obtendo contrapartidas pessoais.Episódio 6: a 4 junho, Espanha cancelou um contrato de armamento com uma empresa israelita. Ao mesmo tempo, a militante socialista Leire Díaz deu uma conferência de imprensa no âmbito de um caso que envolve corrupção, peculato, tráfico de influências, manipulação da imprensa e ataques à independência do Poder Judicial, tudo ao serviço do PSOE. Alegadamente, claro.Episódio 7: a 23 de junho, Espanha solicitou à União Europeia a suspensão imediata do acordo de associação com Israel. Dias antes, a Guardia Civil fez buscas na sede do PSOE e Santos Cerdán, braço direito de Sánchez, foi detido por suspeitas de subornos, tráfico de influências e participação em organização criminosa.Episódio 8: a 8 de Setembro, Sánchez anunciou uma lista de medidas contra Israel. No fim de semana anterior, a imprensa noticiou que Begoña Gómez geriu uma rede de saunas gay onde se praticava prostituição.Relação e correlação são coisas diferentes. Mas o enredo desta série em oito episódios parece reservar a Gaza o papel de espantalho cuja função narrativa é desviar atenções da miríade de escândalos que cercam a família, o partido e o governo de Pedro Sánchez.Em jargão televisivo, estreou nas últimas semanas um spin-off: durante a volta a Espanha em bicicleta, tumultos pró-Palestina perturbaram a prova e, mais grave, puseram em risco vários atletas. Foram organizados por um antigo membro da ETA e apoiados pela extrema-esquerda basca, hoje um apoio parlamentar essencial para o PSOE. Impuseram durante décadas um regime de terror no País Basco, assassinaram largas centenas de pessoas, atacaram as liberdades de expressão e de imprensa, subscreveram (e subscrevem) doutrinas que atentam contra o Estado de Direito democrático, mas apelam agora a elevados valores morais – com violência – para travar o morticínio em Gaza.Tanto a série original como o spin-off têm a mesma razão imediata. Os sucessivos escândalos que afectam Sánchez deslaçaram a coligação de partidos que o sustentam no parlamento. Sendo boa parte desses partidos das esquerdas radicais e extremas, o apoio a Gaza e a crítica a Israel são, além de um espantalho, a fita adesiva que aguenta o governo.Porém, a estratégia é menos pedestre do que aparenta. O sociólogo Luis Miller, cujo trabalho sobre polarização em Espanha merece leitura atenta, mostrou que Sánchez introduz e exacerba temas que, a um só tempo, unem os seus eleitores e dividem o eleitorado da oposição.Foi assim com Franco e com a memória histórica. É assim com Israel e Gaza. O propósito é claro: escolher temas que cavem, agigantem e incendeiem fracturas sociais e políticas. Quanto maiores são as dificuldades, menor é a prudência no uso desta estratégia de polarização. Na prática, só há uma forma decente de abordar o Médio Oriente, ou o passado recente de Espanha, e é o governo quem a define. Em resultado, os adversários passam a inimigos destituídos de legitimidade.Pelo contrário, Sánchez evita a todo o custo assuntos que dividem o seu eleitorado. A imigração, por exemplo. Com base em dados do Centro de Investigações Sociológicas, Luis Miller nota que o apoio dos eleitores do PP e do VOX a afirmações como “os imigrantes devem adoptar os costumes e os valores do meu país” supera os 80%, mas divide os eleitores socialistas em 60% a 40%. Portanto, o governo ignora o tema – e a direita radical espanhola agradece.Ao ser um país onde a estratégia de polarização é bastante evidente, Espanha revela com uma clareza ímpar que a moral missionária do progressismo europeu, altissonante e combativa, redunda com frequência em mero tacticismo utilitário. Pior, ataca com intencionalidade gravosa a coesão social que permite a sã convivência democrática.Gaza é uma tragédia colossal. Mas é também um expediente ao serviço de políticos com pouco escrúpulo. Exemplos recentes do lado de lá do Atlântico mostram que o resultado da polarização pode ser trágico. Politólogo.Escreve sem aplicação do novo Acordo Ortográfico.