Spinumviva e a inevitável investigação a 360 graus

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A 12 de outubro, Amadeu Guerra cumpre um ano como Procurador-Geral da República. No discurso de tomada de posse, recorde-se, defendeu que o Ministério Público (MP) devia exercer as suas funções “sem o alarde mediático e discussão pública da sua atividade em processos concretos”, atuando “empenhado e ao serviço da comunidade”, mas protegido de pressões externas.

Essa promessa de discrição e de recusa de “processos mediáticos” parecia inaugurar um novo ciclo na Procuradoria-Geral da República (PGR), quebrando com uma sucessão de episódios de violações de segredo de justiça e de julgamentos na praça pública, cuja oportunidade lançou suspeitas sobre a isenção do MP - dúvidas essas coroadas com a operação Influencer que levou à demissão do antigo primeiro-ministro, António Costa.

Spinumviva e a inevitável investigação a 360 graus
Spinumviva entra na campanha. Oposição acusa Montenegro de arrastar situação e exige explicações

Ora, passados quase dois anos, não só essa dúvida sobre o atual presidente da Comissão Europeia não foi desvanecida, como temos outro primeiro-ministro, este em funções, sob suspeita há sete meses, desde que o MP decidiu instaurar uma Averiguação Preventiva à Spinumviva, a empresa familiar de Luís Montenegro, na sequência de três denúncias que alertavam para alegados conflitos de interesses, abuso de poder, fraude fiscal, recebimento indevido de vantagem e procuradoria ilícita. Este caso, não esquecer, levou o Governo a apresentar uma moção de confiança, que foi chumbada na Assembleia da República, e provocou eleições antecipadas. Teve consequências políticas sérias. Tal como a operação Influencer.

Chegados aqui, eis que, em vésperas das eleições autárquicas, surgem notícias sobre um suposto interesse dos procuradores do MP e dos investigadores da Polícia Judiciária (PJ), encarregues de averiguar (investigar) a licitude da atividade da Spinumviva e o papel do primeiro-ministro, em abrir um inquérito-crime para poderem quebrar sigilos bancários e fiscais, ato que não lhes é permitido no âmbito da Averiguação Preventiva, e poder ir mais a fundo na investigação.

Independentemente da legitimidade e do racional desta conclusão - já aqui o escrevemos que quando está em causa o escrutínio a um primeiro-ministro, não deve ficar pedra por levantar, a bem do próprio, e da credibilidade do regime - o facto de ter vindo assim e agora a público suscita várias questões.

Spinumviva e a inevitável investigação a 360 graus
Ministério Público abriu e arquivou inquérito-crime ao caso Spinumviva

Estes procuradores e investigadores já tinham transmitido a sua posição a Amadeu Guerra? Em caso afirmativo, certamente que iria concordar. E se não concordou, porquê? Foi por isso que decidiram fazê-lo através dos jornais? Nesse caso, significará que há correntes no MP, aparentemente maioritárias ou, pelo menos, com poder, com uma agenda própria além da do Procurador-Geral. Que o pressionam externamente. O oposto do que definiu na sua tomada de posse.

Na verdade, Amadeu Guerra também deu o seu pequeno contributo quando, numa entrevista ao Nascer do Sol, publicada a 19 de setembro, revelou terem sido pedidos elementos adicionais ao chefe de Governo. Foi o suficiente para o tema voltar à praça pública com Montenegro a ter de dizer publicamente que iria enviá-los “o mais rápido possível”, sendo que, também vários jornais garantem que ainda não os entregou.

A questão central é só uma: a opção por uma averiguação preventiva em vez de um inquérito-crime, logo de início foi a melhor opção? Se foi para proteger a reserva processual, está visto que não resultou. Se foi para adiar uma decisão inevitável, qual a razão?

Quando está em causa a idoneidade do chefe do Governo, talvez tivesse sido mais eficaz ter avançado logo com uma investigação global, que tivesse logo permitido às autoridades aceder a toda a documentação necessária sem depender do ritmo de colaboração do próprio visado.

Uma investigação não só sobre a Spinumviva, mas que juntasse também num só processo tudo o que já tinha sido recolhido sobre as suspeitas que incidem sobre a casa de Montenegro em Espinho. Toda esta névoa em torno de um primeiro-ministro é penosa, não é saudável para a democracia e sabemos bem quem tira proveito.

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Caso Spinumviva. "Se houver fundamento, abriremos inquérito", diz Procurador-Geral da República

Amadeu Guerra prometeu um MP mais coeso e menos permeável a fugas e clivagens internas. Comunica melhor do que a sua antecessora, Lucília Gago, é certo, mas parece que um ano depois ainda não pôs “ordem na casa” nem acabou com “uma certa descredibilização” que o MP vivia, desígnio que a ministra da Justiça, Rita Júdice, tinha ambicionado para o novo Procurador-Geral.

Com a polémica a resvalar de novo para uma campanha eleitoral, é de Amadeu Guerra a responsabilidade de a Justiça contaminar a política. Facto logo aproveitado por Luís Montenegro que reagiu declarando-se “estupefacto”, denunciando uma “pouca vergonha” e “deslealdade processual democrática”, pedindo aos portugueses que “não se deixem levar por estas manobras a três ou quatro dias do fim de uma campanha eleitoral”.

O caso Spinumviva agigantou-se e é mais do que uma averiguação preventiva ou até uma investigação judicial: é um teste à independência da Justiça, à autoridade do Procurador-Geral e, como não pode deixar de ser, à maturidade democrática do país. Cada fuga, cada desmentido e cada silêncio corroem a confiança nas instituições e ameaçam o princípio que Amadeu Guerra quis reafirmar há um ano: a Justiça não se faz em direto - faz-se com serenidade, provas e verdade. É por isso que um inquérito-crime a 360 graus parece inevitável.

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