Saudades do partido do contribuinte

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A história das democracias ocidentais está repleta de mortes e ressurreições. Por isso, resisto sempre a passar certidões de óbito a quem anda na vida pública, a forças partidárias e ainda menos a ideias. Ao longo dos últimos anos, legitimamente, claro, entre adversários, jornalistas e comentadores (em não raros casos, acumulando as três condições), não faltou gente a decretar o fim da vida do CDS-PP.

Recordo-me de algumas frases que ouvi quando Francisco Rodrigues dos Santos e a sua liderança - tão tíbia quanto superficial e tão errática quanto infantil - colocaram aquele que parecia ser o último prego no caixão dos centristas. Lembro-me do júbilo subjacente a análises em órgãos de comunicação social respeitáveis e de como contrastaram com o tratamento pesaroso dado à crise que opôs Joacine Katar Moreira e os discípulos de Rui Tavares, a hecatombe eleitoral de Mariana Mortágua ou a vexatória derrota de Pedro Nuno Santos quando o PS caiu para terceira força parlamentar.

O ocaso do CDS, celebrado por muitos que relativizaram a sua capacidade de agregar todos os que não reviam no socialismo light de largos períodos do PSD e de funcionar como tampão para um direita ultramontana e pouco recomendável, não foi benéfico para o espectro partidário português. Em muitos momentos, aliás, o partido de Freitas do Amaral, Lucas Pires, Adriano Moreira, Manuel Monteiro, Paulo Portas, Ribeiro e Castro e Assunção Cristas foi o último reduto para quem não se conformou com a predisposição de um certo PSD para a capitulação ideológica e para a renúncia ao combate.

Com Portas, o CDS conseguiu ser muitas coisas diferentes, várias delas em simultâneo – o partido da lavoura, dos pensionistas e até do combate à subsidiodependência -, mas foi, acima de tudo, o partido do contribuinte. Com essa linha foi capaz de aglutinar gente inconformada com um país tomado pelo atavismo, em que o elevador social estava vedado a demasiados segmentos populacionais e em que a ascensão pelo trabalho se afigurava uma utopia.

Graças ao CDS, tive durante os meus primeiros anos de eleitor uma opção de entrega, sem reservas, do meu voto. Não olvido que o CDS terá sido porventura a força de oposição mais estruturada e veemente à perfídia de José Sócrates e à pressão permanente exercida pelo ex-primeiro-ministro (e por quem hoje finge nunca lhe ter apertado a mão) sobre as instituições democráticas, empresas públicas e comunicação social.

Durante os anos da troika, o CDS bateu-se - umas vezes bem, outras nem tanto -, por um módico de proporcionalidade nos esforços exigidos aos portugueses e também foi pela voz dos democratas-cristãos que ouvimos, em diversas ocasiões, que era preciso ir aliviando a austeridade que a coligação liderada por Passos Coelho ia aplicando após a conclusão da assistência financeira.

Compreendendo o desafio existencial que Nuno Melo e companhia enfrentam, tenho dificuldades em conceber que o outrora partido do contribuinte se tenha eclipsado, sacrificando a sua identidade e mínimos olímpicos de autonomia estratégica. Tudo por penhorado agradecimento a um PSD que não reforma nem deixa reformar, que preserva o poder através de tácticas próprias do consulado de António Costa, que desce o IRS com uma timidez equiparável à de Fernando Medina e que, pior que tudo, ainda ajuda a manter o indecoroso adicional de IMI. Para mal dos nossos pecados, o partido que outrora nos defendia da asfixia fiscal é hoje cúmplice da manutenção de um tributo moralmente indefensável. Quase como uma caricatura, o partido do contribuinte é hoje o partido do imposto Mortágua. O CDS sobrevive, é certo. Temo que as suas ideias, não. Recordemo-las, pois, com saudade.

Consultor de comunicação

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