No atual debate público, a “reforma da justiça” tornou-se um estandarte político, frequentemente agitado ao sabor de conveniências eleitorais e da pressão mediática. Contudo, a reforma que alguns parecem desejar arrisca-se a ser não uma evolução, mas uma perigosa regressão, assente na manutenção de práticas que corroem as fundações do Estado de Direito democrático. Para os defensores da manutenção de “averiguações preventivas” (digo, preventivas e secretas), que até juízes têm como alvo, instrumentos de investigações informais, para não dizer clandestinas, ao completo arrepio do Código de Processo Penal e da Constituição da República Portuguesa… Quem não entenda o grotesco do que é uma investigação clandestina, conduzida à margem de qualquer controlo processual de um juiz de direito, por quem tem o dever de garantir a legalidade, está a falhar a compreensão do mais básico pilar da nossa democracia: a submissão do poder a regras claras e escrutináveis. A justiça não pode operar nas sombras e sem ter por base a lei processual, sob pena de se transformar na sua própria negação.Assiste-se, simultaneamente, a um “baralha e volta a dar” de velhas soluções que ressurgem a propósito do infindável “processo Marquês”. A proposta de aplicação de multas a advogados e arguidos que usam de “expedientes dilatórios” é apresentada como a panaceia para a morosidade da justiça. Esta narrativa, simplista e perigosa, omite uma parte essencial da equação. Pergunta-se, com toda a legitimidade: foram aplicadas multas aos procuradores que, no processo em causa, ultrapassaram sistematicamente os prazos máximos de inquérito, com sucessivos pedidos de prorrogação à então Procuradora-Geral da República, Joana Marques Vidal? A coerência e a isenção do Estado medem-se por estes detalhes. Num Estado de Direito democrático digno desse nome, não deveriam ser fixados prazos máximos imperativos, e não meramente indicativos, para a dedução de acusações? O “processo Marquês” existiria nos atuais moldes se tais prazos fossem uma realidade vinculativa ou mesmo não o sendo se tivessem sido cumpridos? Ou teríamos, em seu lugar, vários processos, porventura já julgados, garantindo uma justiça mais célere e eficaz, sem sacrificar direitos fundamentais dos cidadãos?Querem reformar a justiça? Então ouçam quem por lá anda todos os dias. A verdadeira reforma não passa por leis de exceção ou pela supressão de garantias constitucionais, mas por resolver os problemas estruturais e gritantes do sistema. Há uma confrangedora falta de gabinetes para juízes e procuradores e, quando existem, poucos são condignos, forçando-os a trabalhar em condições indignas. Há infiltrações nos edifícios dos tribunais, pondo em risco processos, equipamentos e a saúde de quem lá trabalha. Os computadores são, em muitos casos, do tempo da “Maria Cachucha”, obsoletos e incapazes de suportar as exigências do trabalho moderno. Faltam meios modernos de comunicação à distância que permitam uma justiça mais ágil e menos dependente de deslocações físicas. Não há transcrição na hora de depoimentos, um atraso incompreensível que perpetua a morosidade processual. E, acima de tudo, há uma gritante e crónica falta de funcionários judiciais – são cada vez menos, há um crescente absentismo e os poucos que lá ficam e não faltam, por profissionalismo e honestidade (a quem endereço penhorada homenagem), estão sobrecarregadíssimos –, os verdadeiros pilares que sustentam uma máquina judiciária à beira do colapso.Reformas da justiça… por causa de um processo? Por causa das presidenciais, que fica bem falar a quem não sabe? Tenham juízo!... Advogado e sócio fundador da ATMJ – Sociedade de Advogados