Quando é que de mais é demais?

O post congratulatório de Trump com o horrífico homicídio de um realizador parece estar a chocar mais os EUA que todas as obscenidades e psicopatias anteriores. Mas talvez isto, como tudo o resto, seja normalizado — como por cá sucede com Ventura e apaniguados.
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Esta segunda-feira, pouco antes das nove da manhã, o presidente dos Estados Unidos da América, num post na rede social Truth Social (que criou após ter sido, na sequência do assalto ao Capitólio, em janeiro de 2021, expulso do Twitter), escreveu sobre o homicídio do realizador Rob Reiner. Reiner foi encontrado morto no domingo, em sua casa, assim como a mulher, a fotógrafa Michelle Singer, aparentemente devido a esfaqueamento; um dos filhos do casal foi detido. 

E o que teve Trump a dizer sobre esta tragédia? Que as mortes se deveriam à “raiva que Reiner causava a outrem devido à sua incurável afecção com uma doença mental incapacitante” a que denomina de “Trump derangement syndrome”, ou seja, “síndroma de perturbação Trump”. Por outras palavras, apresentou — justificou — os homicídios como consequência de críticas a si próprio. 

Nos comentários ao post, há quem diga “respeito-o mesmo muito, mas isto é desalmado e desnecessário”; “post péssimo e sou um grande apoiante”; “então, Senhor Presidente, isso não é apropriado”. No Twitter/X, um confesso amigo de Trump, Piers Morgan, aconselhou-o a apagar o post, lembrando de seguida, em contraste, a reação chocada de Reiner à morte de Charlie Kirk, o influencer de extrema-direita assassinado em setembro. 

Na altura, Reiner disse: “É um horror, um horror absoluto. (…) É inacreditável, e não devia acontecer a ninguém, independentemente das suas ideias políticas. Não é aceitável (…).” 

É assim simples, não é? Pois bem, para Trump não — e não é que seja uma novidade. Basta por exemplo lembrar como nem há um mês reagiu à corajosa pergunta de uma jornalista ao príncipe e primeiro-ministro saudita Mohammad bin Salman, aquando da sua faustosa visita à Casa Branca, sobre o homicídio e desmembramento de Jamal Khashoggi em 2018 no consulado do seu país em Istambul (homicídio e desmembramento que, recorde-se,  os serviços secretos americanos concluíram terem sido ordenados por bin Salman). O que 

Trump disse nessa altura não se distingue muito do que agora disse sobre Reiner: justificou o homicídio alegando que Khashoggi era “extremamente controverso”, “havia muita gente que não gostava dele”, e “aconteceu”. Assim como que “olha, azarito, não se armasse em herói a criticar este bom moço aqui”. 

A diferença, para quem agora vê com horror as palavras de Trump sobre Reiner, será então que Khashoggi era saudita e foi assassinado, naquilo que para os americanos é um sítio recôndito do mundo, pelas suas posições políticas por ordem do todo-poderoso príncipe, enquanto Reiner e a mulher eram americanos, brancos e, tudo leva a crer, pereceram às mãos de um filho tresloucado. Assim, politizar as suas mortes, apresentando-as como resultado das respetivas posições sobre Trump, cai mal até aos adeptos MAGA (de Make America Great Again, o slogan de Trump). Não porque os choque a insensibilidade e obscenidade renitentes de um presidente que o povo americano elegeu por larga maioria quando tinha toda a informação necessária para saber quem ele é, mas porque a aplicação dessas “qualidades” neste caso lhes parece “deslocada”.

Não há, assim, motivos para crer que este pronunciamento repugnante leve a uma viragem ou sequer constitua um sinal de que essa viragem está a acontecer — ainda que as últimas sondagens demonstrem que a taxa de aprovação de Trump desceu abaixo dos 40%. Porque foi exatamente esta pessoa destituída de sentido de Estado e de mera decência, apostada em destruir o regime democrático e em substituí-lo por uma autocracia, que quiseram eleger em 2024.

Além das óbvias consequências práticas que está a ter para o mundo — e nomeadamente para a Europa — o caso de Trump é também de estudo no sentido em que nos demonstra como é possível brutalizar o debate e embrutecer a sensibilidade pública até que coisas como o post que produziu sobre Reiner sejam só mais um fait divers que causa alguma consternação mas não muda nada. Foi aliás ele, num ato de presciência, que afirmou, em janeiro de 2016, que podia assassinar alguém em plena Quinta Avenida de Nova Iorque e não perderia os seus apoiantes.

Como Trump, o seu discípulo André Ventura está convicto de que quanto mais embrutecer o seu discurso, quanto mais violento, difamatório e calunioso se tornar, mais ganha. E, infelizmente, todos os dias vemos como essas suas “qualidades” são normalizadas, como foram em Trump, por quem informa e comenta. É assistir aos comentários pós-debates das presidenciais, com as suas infantis atribuições de “notas”, para constatar que as mentiras permanentes do líder do Chega, os pronunciamentos difamatórios, as calúnias e insultos, não são, em regra, motivo para má pontuação. 

Aliás, na SIC-N, na sequência do seu debate com Jorge Pinto, houve até uma comentadora, a jornalista do Expresso Ângela Silva, que esclareceu não valorizar as mentiras de Ventura, “senão dava-lhe sempre negativa”. Ângela estava a responder ao seu camarada de redação Vitor Matos e ao facto de ele ter manifestado incompreensão com, precisamente, essa não valorização. 

Ora bem: se jornalistas (é importante tratar-se de jornalistas) não valorizam, no sentido de relevar, explicitar, reprovar, as mentiras e, portanto também as difamações e calúnias de um candidato presidencial, a quem cabe fazê-lo? Se os pivôs dos debates não erguem sequer uma sobrancelha quando André Ventura calunia mais uma vez Paulo Pedroso e Ferro Rodrigues ou acusa Marcelo Rebelo de Sousa de "traição à pátria" (como esta segunda-feira um deputado do Chega acusou, na SIC-N, o Tribunal Constitucional em peso de "traição a Portugal" por ter chumbado várias normas da lei da nacionalidade), como se fosse normal, como se fosse aceitável, como se não fosse criminoso, não estão a ser cúmplices dessas difamações?

Em 2021, no debate com o então candidato presidencial Marcelo, Ventura mostrou uma foto do Presidente da República com uma família residente no bairro da Jamaica e acusou-o de ter estado com “bandidos”. Nem Marcelo nem Clara de Sousa, a jornalista que moderava (o verbo é claramente mal-empregado) na ocasião, lhe perguntaram por que motivo estava a acusar aquelas pessoas, que nem identificou e que incluíam até uma criança, de serem bandidos. Nenhum se lembrou de perguntar se Ventura estava a fazer aquela acusação por se tratar de negros a viver num bairro degradado. Ou seja, nenhum fez o mínimo que lhe era exigido — ao presidente em exercício, além do mais jurista e constitucionalista, por exigência do cargo e da defesa do princípio constitucional da igualdade, e à jornalista, por ser jornalista. Do mesmo modo, nos comentários que se seguiram ao debate, nem um único comentador valorizou o episódio.

Foi preciso que aquela família procurasse em tribunal a justiça que nem o Presidente nem o jornalismo lhe souberam fazer. Como, quatro anos depois, voltou a ser necessário recorrer à justiça por causa dos cartazes difamatórios, racistas e xenófobos do mesmo candidato/partido

Haverá quem, ante isto, diga: “E não vai servir de nada, porque ele vai continuar, aliás alimenta-se disso”. Sim, alimenta-se disso, sem dúvida, mas é com a normalização esforçadamente efetuada por todos os que tinham a obrigação de o denunciar e combater — e aqui incluo todos os que se consideram democratas e decentes —, normalização que desculpam com “fazer diferente não servia para nada” ou, pior, “não é esse o nosso papel”, que mais engorda. Porque, caros, se não é esse o nosso papel, qual é o nosso papel?  

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O "killer" Ventura e a normalização da mentira
Diário de Notícias
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