Chega e Ventura pediam a Supremo que negasse o seu racismo. Tribunal manteve condenação
"É necessário, em nossa opinião, que haja uma decisão judicial absolutamente inequívoca e esclarecedora quanto ao valor que é atribuído à questão discriminatória que subjaz às alegadas ofensas à honra e ao direito à imagem (...), tendo em linha de conta o cariz xenófobo e racial inerente que põe em causa interesses de particular relevância social."
Foi este um dos fundamentos apresentados por André Ventura e pelo partido que lidera, o Chega, para pedir ao Supremo Tribunal de Justiça uma "revista excecional" da sentença que em maio os condenou por "ofensas ilícitas ao direito à honra e à imagem" de sete membros - todos negros - da família Coxi, assim como do acórdão do Tribunal da Relação que em setembro a confirmou, frisando o carácter racialmente e socioeconomicamente discriminatório das ofensas. Por outras palavras, o partido e o líder pediam ao Supremo que negasse a motivação racista dos seus atos; este negou, em acórdão de 6 de dezembro - ao qual o DN teve acesso - tal desiderato, mantendo a condenação e portanto, no entender dos réus, a qualificação racista e xenófoba das ofensas dirigidas aos Coxi.
Recorde-se que em causa está a exibição, por Ventura, num debate (na SIC) da campanha das presidenciais com o candidato incumbente, de uma foto dos Coxi com Marcelo Rebelo de Sousa, captada aquando de uma visita do chefe de Estado ao Bairro da Jamaica em 2019, para o acusar de estar com "bandidos" e "bandidagem"; o líder do Chega repetiria os insultos no dia seguinte num programa da TVI. Já o partido usou a mesma imagem dos Coxi com Marcelo numa publicação no Twitter, para apresentar a família como o avesso de "portugueses de bem". Em nenhum momento, nem nas TV nem na publicação no Twitter, os réus identificaram aquelas pessoas pelo nome ou de qualquer outro modo - como se para qualquer espectador que visse a imagem fosse óbvio o motivo pelo qual eram alvo de tal caracterização.
Na sua argumentação perante o Supremo, Ventura e o Chega consideram que foi o Tribunal da Relação ao responder, em setembro, ao seu recurso da condenação, a tornar clara a qualificação discriminatória: "O Tribunal da Relação imputa aos recorrentes, de forma muito clara e objetiva, quanto às alegadas ofensas à honra e ao direito à imagem dos autores (...), uma motivação discriminatória em função da cor da pele e da situação socioeconómica dos autores (...)." Algo que para os réus "tem de ser entendido como muito grave, na medida em que, quando falamos, especialmente, "de cor de pele" como vertente discriminatória, estamos, na realidade, a assumir esse tratamento discriminatório como xenófobo (...)".
A alegação de Ventura e Chega é pois de que a Relação foi mais longe que a primeira instância.
De facto esta, pela pena da juíza Fátima Preto, não tinha valorizado o pedido dos Coxi de que fosse reconhecida a motivação de discriminação racial e social nas ofensas de que foram alvo. Na sua sentença, a magistrada escreveu: "O cariz discriminatório das declarações não é o mais relevante do processo, nem resulta dos autos que tal discriminação seja necessariamente determinada pela cor da pele ou pela condição socioeconómica dos visados, embora estes elementos ressaltem de imediato aos olhos dos recetores da mensagem. O que é essencial é o carácter ilícito das declarações com referência à fotografia dos autores que foi exibida e a ofensa aos direitos de personalidade destes e é isso que importa reconhecer."
Fátima Preto não resolvia assim, na sua sentença, uma questão essencial: por que motivo tinha sido escolhida e exibida pelos réus aquela foto, e usados aqueles qualificativos em relação àquelas pessoas?
Mas o Tribunal da Relação, perante o recurso dos réus - em que estes negavam ter querido discriminar a família "por motivos raciais ou sócio-económicos" e a acusavam de "inventar" esse facto para "aumentar o mediatismo" da ação, lembrando estar "pendente no Tribunal Constitucional ação intentada pela ex-deputada europeia Dra. Ana Gomes, pedindo a declaração de inconstitucionalidade do Partido Chega, por inúmeros motivos entre os quais e principalmente pela sua natureza racista" - considerou que não existia, como estes reivindicavam, "omissão de pronúncia" (por o tribunal inferior não ter respondido claramente ao pedido dos Coxi, ou afastando a motivação racista ou confirmando-a). E, portanto, decidiam os juízes desembargadores, não havia nulidade da sentença: "É manifesto que na decisão foi expressamente tratada a questão da necessidade, ou não, da inclusão das referidas qualificações nos segmento decisório, tendo-se concluído pela sua desnecessidade. Daí que não ocorra qualquer omissão de pronúncia."
Apesar de aceitarem essa "desnecessidade", os magistrados fizeram porém questão de clarificar: "(...) as imputadas, e reconhecidas, ofensas ao direito à honra e ao direito à imagem dos autores, por um lado, absorvem a vertente discriminatória em função da cor da pele e da situação socioeconómica dos autores, e por outro tal autonomização não é essencial para efeitos de subsunção jurídica." Traduzindo: havia mesmo vertente discriminatória em função da cor da pele e do estatuto socioeconómico mas não era preciso dizê-lo porque estava incluída na caracterização das ofensas como ilícitas.
Será, tudo leva a crer, o fim do processo, o que leva a advogada dos Coxi, Leonor Caldeira, a declarar que "agora se vai executar a sentença". O que significa, explica, exigir a André Ventura 20 mil euros - a dividir pelo Estado e pelos Coxi - por ter, depois de condenado, reiterado publicamente ofensas à família por quatro vezes. O que nos termos da sentença de 24 de maio do Tribunal Criminal de Lisboa, agora confirmada pelo Supremo, implica pagar cinco mil euros por cada desobediência à proibição, decretada pelo tribunal, de voltar a atentar à honra dos lesados.
No entender de Leonor Caldeira, Ventura começou a desobedecer ao tribunal logo a seguir ao exarar da sentença, quando a 25 de maio afirmou à TSF: "Nunca deixarei de dizer que são bandidos. Por isso, não tenciono pedir desculpa."
Acabaria no entanto, menos de cinco meses depois, a seguir à decisão do Tribunal da Relação confirmando a condenação, por publicar, tal como o Chega, aquilo que apresentou como uma retratação, negando que se tratasse de um pedido de desculpas e afirmando que só o fazia por ser obrigado.
Pode ainda não ser o fim do caso para Ventura e o Chega, porém: em junho, como o DN noticiou, o Ministério Público admitiu ter aberto um inquérito criminal às declarações de Ventura sobre os Coxi. Tal aconteceu, informou a Procuradoria-Geral da República, depois de a Comissão para a Igualdade e Contra a Discriminação remeter ao MP várias queixas, recebidas após o debate das presidenciais, acusando Ventura do crime de discriminação.