Ventura acusa família Coxi de "inventar discriminação" para ajudar a ilegalizar Chega
André Ventura foi condenado em maio, numa ação cível "por ofensas diretas e ilícitas cometidas contra o direito à honra e direito à imagem", a retratar-se publicamente perante sete membros de uma família negra residente no Bairro da Jamaica, os Coxi, a quem apelidou, num debate televisivo com Marcelo Rebelo de Sousa, de "bandidos" e "bandidagem". Também o partido que lidera foi condenado na mesma ocasião, por ter publicado no Twitter uma foto daquelas sete pessoas, uma das quais uma criança de três anos, com o Presidente da República, opondo-a a uma outra de Ventura com membros (homens brancos) do Movimento Zero e legendando: "Eu prefiro os portugueses de bem." No recurso que apresentaram agora desta condenação, os réus negam ter querido discriminar a família "por motivos raciais ou sócio-económicos" e acusam-na de "inventar" esse facto para "aumentar o mediatismo" da ação.
Esse propósito de mediatismo terá a ver, argumentam, com o facto de estar "pendente no Tribunal Constitucional ação intentada pela ex-deputada europeia Dra. Ana Gomes, pedindo a declaração de inconstitucionalidade do Partido Chega, por inúmeros motivos entre os quais e principalmente pela sua natureza racista."
Mas o partido e o seu líder acabam no entanto, pela pena da advogada Alexandra Sapateiro, que os representa, por afirmar que "muitos moradores do bairro da Jamaica vivem em benefício daquilo que o Estado lhes provem [sic], sem esforço, sem trabalho, através de subsídios (...)".
A afirmação consubstancia exatamente aquilo de a sentença os acusa, ou seja, de discriminarem a família transformando-a "na representação de todos aqueles a quem se queria referir ao usar tal discurso." E adquire especial relevância por ter sido esta semana noticiado que o Chega quer apresentar no parlamento um projeto de lei para "combater a subsídio-dependência", o qual introduz, segundo explicou Ventura ao i, o conceito de "comunidades ou destinatários com especial predominância de subsidiodependência", ou "comunidades subsidiodependentes", exigindo que passe a haver um "relatório anual" que "identifique comunidades especialmente abusadoras do RSI", quer "por etnia" quer por "geografia".
Esta contradição exibida pelo recurso do Chega e de Ventura - entre a pretensão de que não quiseram discriminar e a afirmação discriminatória - é sublinhada pelo contra-recurso dos Coxi, assinado pela causídica Leonor Caldeira. As afirmações em causa, acusa, "confirmam o cariz discriminatório das ofensas em função da posição socioeconómica dos Recorridos [a família Coxi]". E explica: Ventura e o Chega "cometeram ofensas de cariz discriminatório contra os Recorridos, por estes serem moradores do Bairro da Jamaica, um bairro pobre e marginalizado, composto maioritariamente por imigrantes dos PALOP. Atingiram os Recorridos, mas (...) podiam ter sido outros quaisquer moradores do Bairro da Jamaica a ser alvo destas declarações: o seu objetivo foi passar a mensagem ao grande público de que, nas suas palavras, "muitos moradores do bairro da Jamaica que vivem em benefício daquilo que o Estado lhes provém, sem esforço, sem trabalho, através de subsídios"".
Este objetivo, argumenta a advogada, é tanto mais claro quando, como reconheceu o tribunal na sentença condenatória, os réus não podiam estar a referir-se àquelas pessoas em concreto "até porque não os conhecem, nem nada sabiam sobre a sua vida profissional e pessoal no momento das declarações - mas referiam-se a eles em abstrato, isto é, pelo simples facto de serem moradores do Bairro da Jamaica foi-lhes imputado um conjunto de características pejorativas."
Este argumento do recurso de Ventura e Chega merece aos Coxi um protesto: "Que conhecimento de facto têm os Recorrentes para afirmar que "muitos moradores do bairro da Jamaica vivem em benefício daquilo que o Estado lhes provém, sem esforço, sem trabalho, através de subsídios"? E que prova apresentaram aos autos para sustentar tal afirmação? Lamentavelmente, nenhuma. São afirmações patentemente discriminatórias, que reproduzem preconceitos infundados, profundamente nocivos contra populações pobres e marginalizadas da nossa sociedade, que devem ser combatidos e eventualmente erradicados. Declarações desta natureza não deveriam ter lugar no discurso político, e muito menos em peças processuais perante Tribunais de um Estado de Direito democrático - o que deverá merecer um juízo de censura pelo douto Tribunal."
Recorde-se que Ventura, ao exibir no debate aludido, com Marcelo Rebelo de Sousa, a 6 de janeiro, no âmbito da campanha das presidenciais, uma foto do Presidente da República com os sete membros da família Coxi, nunca identificou aquelas pessoas pelo nome ou sequer localizou a imagem no espaço e no tempo; limitou-se a mostrá-las como se o país todo as conhecesse.
"Esta fotografia", afirmou na ocasião, "mostra tudo o que a minha Direita não é. Nesta fotografia, o candidato Marcelo Rebelo de Sousa juntou-se com bandidos, um deles é um bandido verdadeiramente. (...) Porque esta fotografia que está aqui, (...) não foi tirada depois na esquadra de polícia, foi tirada só, entre aspas e vão-me desculpar a linguagem, à bandidagem. E, portanto, talvez seja aqui uma diferença entre nós: eu não tenho medo de ser politicamente incorreto, de lhes chamar os nomes que têm de ser chamados e dizer o que tem de ser dito. (...). Eu nunca vou ser presidente dos traficantes de droga, nunca vou ser presidente dos pedófilos, nunca vou ser presidente dos que vivem à conta do Estado, com esquemas de sobrevivência paralelos, enquanto os portugueses de bem pagam os seus impostos, todos os dias a levantar-se de manhã à tarde para os pagar e o que fez aqui não tem nenhuma justificação... (...) Muitos destes indivíduos vieram para Portugal para beneficiar única e exclusivamente daquilo que é o Estado Social."
No recurso, Ventura pretende ter-se referido como "bandido" a apenas "uma das pessoas constantes da fotografia", Hortêncio Coxi, em relação ao qual garante existir "vasto registo criminal", e que volta a qualificar como tal, chegando a esclarecer o que a palavra quer dizer: "'Bandido' é aquele que vive de roubos ou outras atividades ilícitas." Ora à data da imputação em apreço (6 de Janeiro de 2021) Hortêncio tinha apenas três averbamentos no registo criminal: tráfico de estupefacientes de menor gravidade e desobediência, ambos em 2015, e condução em estado de embriaguez, em fevereiro de 2019, em nenhum dos casos tendo havido pena de prisão efetiva. Não existe, antes ou depois, qualquer condenação por roubo.
Mas logo depois de garantir que ao usar os termos "bandido" e "bandidagem" se referia apenas a Hortêncio - e admitindo que foram publicadas fotos deste sozinho com o Presidente da República, sem explicar nesse caso por que motivo preferiu usar a foto com a família - Ventura adianta que "aquando dos desacatos ocorridos no Bairro da Jamaica em janeiro de 2019 os Recorridos [portanto todos os sete retratados na foto] ficaram publicamente conhecidos" não podendo "acompanhar-se o argumento de que são pessoas anónimas".
E não podem ser considerados anónimos porque, prossegue, "a família fotografada junto do Presidente da República esteve envolvida nos acontecimentos policiais que motivaram a visita ao Bairro da Jamaica por parte do Presidente da República. (...) Acontecimentos (confrontos policiais com moradores do Bairro da Jamaica) de dia 20 de janeiro de 2019, dos quais foi instaurado competente processo-crime, a correr os seus termos (...). Higina Coxi, Hortêncio Coxi e Julieta Luvunga (aqui Recorridos) foram constituídos arguidos no mencionado processo."
No processo, que está ainda em julgamento, é também arguido um agente da PSP, facto que Ventura não menciona no recurso. Para a seguir garantir: "As declarações do Recorrente não são uma divulgação de factos mas sim uma repetição de factos respeitantes aos recorridos amplamente divulgados durante dois anos nos órgãos de comunicação social. (...) O Recorrente não manipulou, deturpou ou inventou imagens ou factos respeitantes aos Recorridos. (...) É́ forçoso concluir que o Recorrente André Ventura apenas divulgou factos verdadeiros e públicos sendo justificada e proporcional essa divulgação."
Não foi essa, como é sabido, a conclusão do tribunal, em cuja sentença se lê: "No caso, chamar aos Autores bandidos e referir-se a eles como bandidagem, não constitui apenas uma liberdade de linguagem através da qual se expressa uma realidade comprovada ou comprovável, trata-se da emissão, quanto a tais pessoas enquanto pessoas, de um juízo de valor que as diminui e marginaliza. As expressões utilizadas - bandidos, bandidagem - são claramente expressões comummente usadas para ofender e são aptas a ofender o direito à honra dos Autores. O mesmo se diga relativamente ao uso da imagem dos Autores no cartaz de campanha em que o Réu é representado com a frase "Eu prefiro os portugueses de bem" e a imagem dos Autores é utilizada para representar o oposto dos portugueses de bem, os bandidos - o meio escolhido é outro, o resultado é semelhante." E adverte: "Mesmo a divulgação de factos verdadeiros pode ofender os direitos de personalidade de outrem, nomeadamente, o direito à honra, só não sendo considerados ilícita a divulgação se estiver justificada e for proporcional aos fins por aquela prosseguidos."
André Ventura, que já várias vezes garantiu que nunca vai cumprir a decisão do tribunal, ou seja, retratar-se publicamente, e cujo recurso da condenação invoca a liberdade de expressão e a liberdade política, tem um último argumento: a decisão que o condena, e ao partido, "à emissão pública de pedido de desculpas" é "uma verdadeira censura ao livre debate político". E portanto, conclui, "inconstitucional" por violação do artigo 37º da Constituição (Liberdade de Expressão e Informação).
Uma asserção refutada pelos Coxi: "Não se compreende ao certo o que querem os Recorrentes afirmar, uma vez que, tal como é consabido, "o juízo de inconstitucionalidade (...) é um juízo sobre normas. A questão de inconstitucionalidade é uma questão de direito, e não de facto." E cita o constitucionalista Jorge Miranda: "Excluídos do controlo do Tribunal Constitucional encontram-se quase todos os atos políticos ou de governo e os demais atos não normativos típicos que são os atos administrativos e as decisões judiciais."
E o contra-recurso assinado por Leonor Caldeira lembra que Ventura e o Chega foram também condenados a abster-se de ofensas futuras, tendo tal sido "incumprido mais do que uma vez pelo Recorrente André Ventura, demonstrando como o juízo de ameaça foi corretamente identificado" pelo tribunal que condenou.
Como o DN noticiou esta semana, as declarações de Ventura que levaram à sua condenação neste processo levaram o Ministério Público a abrir um inquérito, depois de a Comissão para a Igualdade e Contra a Discriminação lhe ter enviado várias queixas que lhe foram remetidas.