Por mares desconhecidos

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Eis um livro belíssimo, capaz de nos conduzir através de uma viagem que desafia as nossas certezas sobre o que é (e, sobretudo, como é) isso de olharmos o mundo à nossa volta - para mais, ligando o movimento das palavras às artes que nos habituámos a chamar “figurativas”.

No prefácio à recente edição de O Livro das Imagens, de Rainer Maria Rilke (Assírio & Alvim, junho de 2024), Maria Teresa Dias Furtado, também responsável pela respetiva tradução, refere o interesse do poeta pela obra do pintor alemão Heinrich Vogeler (1872-1942). O trabalho de Vogeler levou Rilke a considerar que “o que é belo e que é demasiado transfigurado pela arte” torna-se “objeto de suspeita e de rejeição”. Nessa medida, ele “começa a entender que uma arte que abarca a afirmação da vida deve abrir-se ao que é estranho e ameaçador, ao feio, à destruição, ao que é chocante.”

Tendo em conta que O Livro das Imagens foi escrito entre 1902 e 1906 (Rilke faleceu em 1926, contava 51 anos), vale a pena referir que é contemporâneo da afirmação do cinema como linguagem específica - para nos ficarmos por uma referência emblemática, lembremos que Viagem à Lua, de Georges Méliès, surgiu em 1902.

Como Maria Teresa Dias Furtado também sublinha, Rilke avançava com uma atitude de “contemplação” que não pode ser dissociada das “coisas” do mundo, do modo como as vemos e, de alguma maneira, integramos numa visão em permanente reinvenção das suas coordenadas. Ou como escreve a tradutora: “Um ver que não é um rever.”

Dir-se-ia que tudo acontece a par do cinema e da sua inusitada reinvenção do próprio conceito de personagem - David W. Griffith, “pai” da gramática cinematográfica, começou a realizar filmes em 1908. O poeta pressente uma comunidade de seres humanos cujos laços vitais envolvem o enfrentamento da certeza da morte: “Quem agora morre algures no mundo, / sem motivo morre no mundo: / olha para mim.” - assim escreve Rilke no final de um poema intitulado Hora Grave. Ou ainda, a concluir a primeira parte do ciclo de poemas a que chamou Os Czares: “Longe irão a passos largos os que longamente se sentaram a ver / no profundo crepúsculo do seu ser.”

Pintor pouco lembrado e mal conhecido (por mim, em todo o caso), Vogeler parece pertencer à mesma sensibilidade multifacetada que Rilke poderá simbolizar, reconhecendo as singularidades do humano, mas distanciando-se das suas componentes. Em O Solitário, o poeta começa assim: “Como alguém que por mares desconhecidos navegou, / assim me encontro eu junto dos nativos.” Num quadro cujo título talvez se possa traduzir por Saudade (Devaneio) - (c. 1900) -, Vogeler expõe a mesma solidão através de uma paradoxal figura feminina: há nos seus traços e nas nuances da paisagem a sugestão de um quase naturalismo a que poderíamos chamar, precisamente, “contemplativo”; ao mesmo tempo, tudo se passa como se o quadro consumasse a decomposição da própria noção de natureza, atraindo qualquer coisa de místico, anterior às palavras com que tentamos descrevê-lo.

O quadro de Heinrich Vogeler com a figura feminina que exprime a mesma solidão que as palavras de Rilke. FOTO: D.R. / Arquivo.

Não é simples viver o que assim se apresenta, quanto mais não seja porque o império televisivo nos ensina a menosprezar a espessura possível das imagens (e das palavras, meu Deus!). Afinal de contas, um quadro, tal como um poema, lida com os limites do nosso conhecimento. Num livrinho de 2014 (Pour Un Traité des Corps Imaginaires, ed. P.O.L., Paris), Jean Louis Schefer fala mesmo da possibilidade de o quadro existir como “uma variação sobre a incerteza da realidade.”

Eis o que não está na moda: reconhecer que as imagens não duplicam, muito menos esgotam, os sentidos da realidade. E que a angústia que isso arrasta é a mais humana das fraquezas, aquela que nos coloca perante o êxtase impossível da beleza. Escreve Rilke: “Entrega sempre a tua beleza sem par / sem calcular e sem falar.”


Jornalista
============2024 - OPINIÃO - Destaque (14816378)============
A poesia de Rainer Maria Rilke provém de um mundo bem diferente, mas continuamos a senti-la como contemporânea.”

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