Pode uma ministra resistir à morte de uma criança?

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Ministra da Saúde, Ana Paula Martins
Ministra da Saúde, Ana Paula MartinsRUI MINDERICO/LUSA

A morte de uma criança de 11 meses à porta de um centro de saúde em Idanha-a-Nova devolve-nos a uma pergunta desconfortável: pode um governante resistir politicamente a um episódio tão grave? A resposta não é evidente, mas obriga a refletir sobre o verdadeiro sentido da responsabilidade política.

A demissão de um ministro não resolve problemas técnicos nem corrige de imediato falhas estruturais. Não reabre urgências pediátricas, não contrata médicos nem evita que novos erros aconteçam. Mas a demissão cumpre uma função essencial: simbolizar perante os cidadãos que o Estado não fica indiferente quando falha da forma mais grave possível. É um gesto que reconhece que a política é mais do que gestão - é também confiança e ética pública.

É por isso que se fala em responsabilidade política, distinta da responsabilidade criminal ou disciplinar. Um ministro não precisa de ser culpado direto de uma tragédia para assumir a responsabilidade última de um sistema que não funcionou. Foi essa a lógica que levou Marta Temido a deixar o cargo em 2022, após a morte de uma grávida de 34 anos em Lisboa. A mulher foi transferida entre hospitais por falta de vaga em neonatologia, sofreu uma paragem cardíaca durante a viagem e acabou por morrer depois de uma cesariana de emergência. O bebé sobreviveu, mas o choque público foi imediato. O inquérito ainda decorria, mas a ministra entendeu que a falha do sistema era de tal ordem que só uma demissão podia sinalizar à sociedade a gravidade do sucedido.

E foi também essa a lógica que, em 2001, levou Jorge Coelho a demitir-se após a queda da ponte de Entre-os-Rios, em Castelo de Paiva, que vitimou 59 pessoas. O então ministro das Obras Públicas não tinha culpa direta no desastre, mas considerou que, como responsável político pela pasta, não podia permanecer no cargo. O momento em que informou o então primeiro-ministro, António Guterres - que o tentou, em vão, demover - ficou registado numa biografia não autorizada (“Jorge Coelho, o Todo Poderoso”). “Sou o responsável político pela pasta, alguém tem de dar a cara pelo que aconteceu” e “Temos de retirar consequências políticas. A culpa não pode morrer solteira”, foram expressões entendidas como o que deveria ser padrão de exigência ética para os titulares de cargos públicos.

A conduta destes dois ministros socialistas não fez escola, infelizmente, no partido: quando morreu o ucraniano Ihor Homeniuk, vítima de agressões de inspetores do antigo Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, o então ministro da Administração Interna, Eduardo Cabrita, não só não se demitiu, como chegou a informar incorretamente o parlamento sobre o assunto e passou meses a segurar a então diretora do SEF, Cristina Gatões.

O mesmo tinha sucedido com a sua antecessora, Constança Urbano de Sousa, na sequência das mais de 100 mortes nos incêndios de 2017. Logo depois da primeira tragédia, Constança Urbano de Sousa terá colocado o lugar à disposição. António Costa tentou segurar a ministra da Administração Interna, tal como Guterres tentou fazer com Jorge Coelho, em 2001. Mas, ao contrário de Jorge Coelho, a ministra ficou.

O caso de Idanha-a-Nova relança o dilema. A atual ministra da Saúde, Ana Paula Martins, já lamentou profundamente a morte da criança e sublinhou que inquéritos internos e judiciais irão apurar responsabilidades clínicas. Mas, como em tantos momentos anteriores, a política não vive apenas de relatórios. Vive da perceção dos cidadãos sobre se o Estado é capaz de responder de forma humana, imediata e responsável a uma tragédia que abala a confiança de todos. Também quando um homem morreu devido a falhas no socorro durante a greve do INEM, devia ter havido uma reflexão.

O que está em causa é perceber até que ponto o valor simbólico de uma demissão ainda é considerado necessário. Uns dirão que não, que a mudança de ministro é apenas um gesto de superfície que não resolve os problemas do SNS. Outros argumentarão que sim, que a ausência de consequências políticas transforma a morte de uma criança em mais um incidente administrativo, diluindo o sentido de responsabilidade que deve estar no coração da democracia.

Este caso toca também algo mais profundo. Durante a pandemia, em particular, e em muitas outras situações, os portugueses reconheceram no SNS uma dedicação exemplar, feita de longas horas de trabalho e de risco pessoal. O país aplaudiu médicos e enfermeiros das varandas, emocionou-se com as histórias de quem passava semanas sem ver a família e orgulhou-se de um sistema que, com todas as limitações, não deixou ninguém para trás.

A confirmar-se, que retrato nos devolve agora a recusa de atendimento a uma criança porque estava “quase na hora de fechar”? É a fadiga de um sistema exausto? É a erosão de uma cultura de serviço público? Seja qual for a resposta, há aqui um sinal de alarme que a política não pode ignorar.

O dilema, no fundo, é este: se um governante se mantém, arrisca-se a ser acusado de insensibilidade e de proteger o cargo acima da confiança pública; se se demite, é acusado de teatralizar um gesto que não muda nada na prática. Mas talvez seja precisamente na aparente inutilidade da demissão que reside a sua força: ela não corrige os erros, mas garante aos cidadãos que a política assume que eles não são aceitáveis.

A ministra Ana Paula Martins pode sobreviver a este episódio. Mas a questão maior ficará: que significado tem, hoje, a responsabilidade política em Portugal? O que é afinal necessário, quantas mortes, até que um governante reconheça que, em certas circunstâncias, não basta lamentar - é preciso assumir, até ao fim, o peso das falhas do Estado?

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