A morte de uma criança de 11 meses à porta de um centro de saúde em Idanha-a-Nova devolve-nos a uma pergunta desconfortável: pode um governante resistir politicamente a um episódio tão grave? A resposta não é evidente, mas obriga a refletir sobre o verdadeiro sentido da responsabilidade política.A demissão de um ministro não resolve problemas técnicos nem corrige de imediato falhas estruturais. Não reabre urgências pediátricas, não contrata médicos nem evita que novos erros aconteçam. Mas a demissão cumpre uma função essencial: simbolizar perante os cidadãos que o Estado não fica indiferente quando falha da forma mais grave possível. É um gesto que reconhece que a política é mais do que gestão - é também confiança e ética pública.É por isso que se fala em responsabilidade política, distinta da responsabilidade criminal ou disciplinar. Um ministro não precisa de ser culpado direto de uma tragédia para assumir a responsabilidade última de um sistema que não funcionou. Foi essa a lógica que levou Marta Temido a deixar o cargo em 2022, após a morte de uma grávida de 34 anos em Lisboa. A mulher foi transferida entre hospitais por falta de vaga em neonatologia, sofreu uma paragem cardíaca durante a viagem e acabou por morrer depois de uma cesariana de emergência. O bebé sobreviveu, mas o choque público foi imediato. O inquérito ainda decorria, mas a ministra entendeu que a falha do sistema era de tal ordem que só uma demissão podia sinalizar à sociedade a gravidade do sucedido.E foi também essa a lógica que, em 2001, levou Jorge Coelho a demitir-se após a queda da ponte de Entre-os-Rios, em Castelo de Paiva, que vitimou 59 pessoas. O então ministro das Obras Públicas não tinha culpa direta no desastre, mas considerou que, como responsável político pela pasta, não podia permanecer no cargo. O momento em que informou o então primeiro-ministro, António Guterres - que o tentou, em vão, demover - ficou registado numa biografia não autorizada (“Jorge Coelho, o Todo Poderoso”). “Sou o responsável político pela pasta, alguém tem de dar a cara pelo que aconteceu” e “Temos de retirar consequências políticas. A culpa não pode morrer solteira”, foram expressões entendidas como o que deveria ser padrão de exigência ética para os titulares de cargos públicos.A conduta destes dois ministros socialistas não fez escola, infelizmente, no partido: quando morreu o ucraniano Ihor Homeniuk, vítima de agressões de inspetores do antigo Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, o então ministro da Administração Interna, Eduardo Cabrita, não só não se demitiu, como chegou a informar incorretamente o parlamento sobre o assunto e passou meses a segurar a então diretora do SEF, Cristina Gatões.O mesmo tinha sucedido com a sua antecessora, Constança Urbano de Sousa, na sequência das mais de 100 mortes nos incêndios de 2017. Logo depois da primeira tragédia, Constança Urbano de Sousa terá colocado o lugar à disposição. António Costa tentou segurar a ministra da Administração Interna, tal como Guterres tentou fazer com Jorge Coelho, em 2001. Mas, ao contrário de Jorge Coelho, a ministra ficou.O caso de Idanha-a-Nova relança o dilema. A atual ministra da Saúde, Ana Paula Martins, já lamentou profundamente a morte da criança e sublinhou que inquéritos internos e judiciais irão apurar responsabilidades clínicas. Mas, como em tantos momentos anteriores, a política não vive apenas de relatórios. Vive da perceção dos cidadãos sobre se o Estado é capaz de responder de forma humana, imediata e responsável a uma tragédia que abala a confiança de todos. Também quando um homem morreu devido a falhas no socorro durante a greve do INEM, devia ter havido uma reflexão.O que está em causa é perceber até que ponto o valor simbólico de uma demissão ainda é considerado necessário. Uns dirão que não, que a mudança de ministro é apenas um gesto de superfície que não resolve os problemas do SNS. Outros argumentarão que sim, que a ausência de consequências políticas transforma a morte de uma criança em mais um incidente administrativo, diluindo o sentido de responsabilidade que deve estar no coração da democracia.Este caso toca também algo mais profundo. Durante a pandemia, em particular, e em muitas outras situações, os portugueses reconheceram no SNS uma dedicação exemplar, feita de longas horas de trabalho e de risco pessoal. O país aplaudiu médicos e enfermeiros das varandas, emocionou-se com as histórias de quem passava semanas sem ver a família e orgulhou-se de um sistema que, com todas as limitações, não deixou ninguém para trás.A confirmar-se, que retrato nos devolve agora a recusa de atendimento a uma criança porque estava “quase na hora de fechar”? É a fadiga de um sistema exausto? É a erosão de uma cultura de serviço público? Seja qual for a resposta, há aqui um sinal de alarme que a política não pode ignorar.O dilema, no fundo, é este: se um governante se mantém, arrisca-se a ser acusado de insensibilidade e de proteger o cargo acima da confiança pública; se se demite, é acusado de teatralizar um gesto que não muda nada na prática. Mas talvez seja precisamente na aparente inutilidade da demissão que reside a sua força: ela não corrige os erros, mas garante aos cidadãos que a política assume que eles não são aceitáveis.A ministra Ana Paula Martins pode sobreviver a este episódio. Mas a questão maior ficará: que significado tem, hoje, a responsabilidade política em Portugal? O que é afinal necessário, quantas mortes, até que um governante reconheça que, em certas circunstâncias, não basta lamentar - é preciso assumir, até ao fim, o peso das falhas do Estado?