Pensar o livro: as bibliotecas ou o elogio da democracia

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Para todos os participantes do I Encontro de Bibliotecas da região do Médio-Tejo, em Constância, 2024, com Camões no pensamento.
A Yvette Centeno, generosa amiga 
dos livros e de quem os ama.

"Pensar o livro. Pensá-lo antes de mais como objecto na simples volúpia de o ter na mão. Na beleza do seu esquadriado, da sua apresentação, do volume, da gramagem. Na tessitura  e tom das suas folhas, na possível cartonagem ou encadernação, no halo de mistério que o envolve. Perdeu-se o deleite de o desflorar, agora com as folhas cortadas a cutelo. O prazer de lhe revelar o oculto de si, agora que tudo é público e envidraçado e exposto na rua. Pensar o livro na sua intimidade connosco sem mais ninguém a assistir. Pensá-lo no silêncio de quatro paredes, no que só a nós nos diz.” (p.86).

Estas são palavras belas de um belo livro intitulado Escrever (Bertrand, 2001), de Vergílio Ferreira (1916-1996) e dizem bem da forma íntima, prazerosa, quase erótica com que podemos desfrutar da leitura de um livro ou, senão da leitura, do prazer de, bibliófilos ou bibliómanos, os ter na nossa casa, na sala, no quarto, no escritório. De facto, o objecto livro urge ser pensado e valorizado, protegido e vivido numa época, como a nossa, em que - como já assinalava o autor de Aparição - tudo obedece à lógica de uma transparência alienante, estupidificante, porque contrária à intimidade dos verdadeiros encontros, oposta àquela revelação feita de descoberta e de deleite e que, nos livros, se corporiza. Vergílio Ferreira condenava há muitas décadas a vertiginosa sede de tudo ser hoje público. Desconfiava da exposição como regra de comportamento. Nos livros encontrava, afinal de contas, a outra leitura necessária para fortalecer um sentido de vida em comunidade que não tem de ser sinónimo de transparência transformada em permanente exposição da intimidade. Tinha razão em ser austero porque, por detrás das democracias, já nos anos de 1970, 80 e ainda 90, até onde pôde ver e viver, estava já em andamento o vírus letal dessa transparência que é vazio e vanitas. O vídeo matou o cinema, ou, se calhar, a Netflix e outras plataformas. A imprensa teria destruído a cultura da palavra oral, afirmando o indivíduo em vez da comunidade. Mas, escreve Vergílio Ferreira ainda no mesmo livro, nesse texto 132 de Escrever: “Mas se o vídeo destruiu tudo (o sagrado das salas de cinema, é a essa a relação) e deixou para si apenas a comunidade do sofá e de não sair à rua, o livro fala-nos mais intensamente no secreto de nós.” (p.87). 

Virgílio Ferreira

De perda em perda, do espaço do sagrado consolidado pela leitura em voz alta dos livros, à vida que se faz na rua e dessacraliza a catedral, até à perda total da rua como espaço comunitário, nós afundámo-nos - do vídeo às redes sociais - na mais abjecta das existências, porque absurda e desumanizante. Perdido o livro como revelação de um mistério dito pela palavra, substituídos nas bibliotecas públicas pelos ecrãs dos computadores, e, em casa, quase inexistentes, quem lê livros, hoje, com os seus catorze, quinze, vinte, trinta anos, movidos por essa sedutora relação íntima com um objecto tão mágico? Haverá, certamente, quem os leia como Vergílio Ferreira os lia. Mas sentados diante das redes aprisionantes do social, apanhados na rede mundial das emoções formatadas, que lugar e que função tem o livro em democracias hoje a braços com fanatismos, extremismos, violências de vária natureza e grau? É este o ponto da questão quando falamos de democracia, e, em particular, de bibliotecas, sobretudo se escolares. 

Perdeu-se o hábito de ler com a noção exacta do que é ter-se a volúpia do livro abrindo-se, enigmático, frentes aos nossos olhos. Quando vamos a uma escola pública ou privada o que vemos nas estantes são os famigerados manuais escolares, ordenados em função dos níveis de ensino. Já se vê na escola, à semelhança das estantes das grandes superfícies comerciais, livros de autores que nada têm para dar a não ser a palavra corrompida nascida da sede de se ser público, de se ser transparente. Nas bibliotecas escolares raramente se expõe, com sentido de dever ético e estético, livros em edições sóbrias e belas de autores que escreveram, de facto, literatura. As “bestas céleres”, como dizia O’Neill, tudo parecem conquistar e o professor-bibliotecário, caindo na armadilha da moda ou da publicidade, lá coloca no escaparate da sua biblioteca os Afonsos Noite-de-Luar ou as mais diversas chagas que escavacam o sentido das próprias bibliotecas. 

Pensar hoje uma política do livro e da leitura em Portugal implica, a meu ver, ser corajoso e negar toda a parafernália de livros que são, na verdade, não-livros, porque meros objectos de transacção. Papéis com frases, sim, com palavras - mas sem densidade, sem ousadia, sem imaginação, sem profundidade, eis o que se vende, eis o que se expõe. Que democracia queremos se transformamos a escola, a biblioteca, a universidade em lugares onde se imita o que, vindo de lá de fora, de uma sociedade brutalizada, é criminoso, aviltante, pobre?

Por estes dias, em Constância, pensa-se sobre bibliotecas. A função do bibliotecário, agente - que o deveria ser - multiplicador de cultura. Nas comunidades viradas do avesso em que vivemos, estar numa das possíveis terras de Camões, deveria fazer-nos parar um pouco. Pensar. Há um mundo lá fora, da Ucrânia a Gaza, da Síria às favelas do Rio de Janeiro, de África à Argentina, um mundo em que os Trump do planeta querem, definitivamente, transformar noutra coisa. Terão já os ricos do globo comprado casas em Marte? Pensar o livro. Melhor: pensar numa democracia verdadeiramente comprometida com um ideal de civilização que só um regresso aos livros (com literatura, com arte, com linguagem densa) possuem. Nas bibliotecas fazer com que os mais novos, e não só eles, se deixem seduzir com as capas de colecções poesia que foram marcantes, capaz originais, plenas de beleza (as da Morais, as da Portugália, as das Iniciativas Editoriais, as da Limiar…). E depois abrirmos os livros e mostrarmos, lendo bem, com atenção aos sons e aos sentidos, as páginas daqueles que são autores (e livros) imorredoiros. Uma democracia, um país, faz-se com livros - disse-o Monteiro Lobato. Hoje levarei comigo Escrever, de Vergílio Ferreira e mostrarei, a quem estiver em Constância, uma edição, a 1.ª!, dum livro maravilhoso, sedutor, sem dúvida: Os Quatro Cantos do Tempo (Livros de Portugal, Rio de Janeiro, 1958), de David Mourão-Ferreira (1927-1996). Um democrata. Alguém que disse que livro e livre têm, afinal, a mesma raiz. Concordo. Falarei de livros. 


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