Os olhos de Rudolf Höss
As representações cinematográficas do Holocausto tendem a gerar confrontos de ideias e conflitos argumentativos que determinam a sua perceção mediática, seja no sentido da consagração, seja alimentando a recusa, ou mesmo a demonização, de determinados filmes. No centro de tais dinâmicas surge, quase sempre, a questão da possibilidade (ou impossibilidade) de representação do horror programado e perpetrado pelos nazis.
Sabemos que, com frequência, tais confrontos se apresentam enquadrados pela herança de uma frase do filósofo alemão Theodor W. Adorno - “Escrever um poema depois de Auschwitz é bárbaro (…)” -, muitas vezes tratada como aforismo filosófico desligado do seu contexto original (e também da história posterior da própria frase, suas leituras e interpretações). O certo é que isso leva a que os problemas envolvidos passem a ser reduzidos a uma dicotomia normativa e, mais do que isso, “figurativa”. Em jogo estaria o que se “pode” ou “não pode” mostrar, nomeadamente na abordagem (fílmica, insisto) dos campos de concentração.
A vastidão e a densidade de tudo o que está envolvido aconselha a não tentar sequer resumir num mero texto de jornal aquilo que tem sido tratado numa quantidade infinita de livros, ensaios, palestras e, claro, objetos de cinema. Direi apenas que a questão da “visibilidade”, em particular na abordagem do extermínio de milhões de seres humanos nas câmaras de gás, depende, também ela, de uma história de muitos contrastes.
Citemos apenas dois filmes (a meu ver admiráveis). Conhecemos, assim, pontos de vista que sempre condenaram o projeto cinematográfico de A Lista de Schindler (1993), porque o seu realizador, Steven Spielberg, se atreveu a “figurar” aqueles lugares de morte; ao mesmo tempo, o filme húngaro O Filho de Saul (2015), de László Nemes, lidando com os mesmos cenários, foi maioritariamente elogiado pela contundência da sua encenação.
Que acontece, então? Sou levado a interpretar essa diferença de tratamento como expressão de um velho preconceito anti-americano e, sobretudo, anti-Hollywood, cego à complexidade da história do cinema (americano e não só). Muito aquém de qualquer reflexão filosófica, estamos perante uma rejeição demagógica: porque é a pátria do entertainment, Hollywood não poderia gerar filmes “sérios”.
Por perversa contradição, nada disto é estranho ao simplismo imposto por uma ideologia de raiz televisiva que, atualmente, tem a sua expressão mais agressiva no aparato cénico do Big Brother. Tratar-se-ia de conceber o mundo das imagens como um supermercado do “visível”: não interessa o que se dá a ver, ou como se dá a ver, basta manter o fluxo histérico das imagens como uma coleção que se vai repetindo e mantendo através de “fenómenos” descartáveis.
Que a classe política evite enfrentar o poder cultural de tais práticas imagéticas - e dos seus efeitos na própria “cena” política -, eis o que diz bem da fragilidade dos valores que, apesar de tudo, preservam a nossa vital sociabilidade.
Para lá das radicais diferenças do contexto em que agora o relemos, o pensamento angustiado de Hannah Arendt ecoa no nosso quotidiano de forma ambígua, mas muito perturbante: “O que é o sentido da política? Para as pessoas que em todo o mundo se sentem ameaçadas pela política, e entre as quais as melhores são as que conscientemente se afastam da política, a questão mais importante que se põe e põem aos outros é: A política terá ainda qualquer sentido?” (in A Promessa da Política, tradução de Miguel Serras Pereira, ed. Relógio D’Água, 2007).
A estreia do filme A Zona de Interesse, realizado por Jonathan Glazer a partir do romance homónimo de Martin Amis (tradução de José Vieira de Lima, ed. Quetzal, 2015), é um acontecimento que nos faz reencontrar a herança deste novelo histórico, levando-nos a reformular uma questão fundadora da própria história do cinema: que vemos naquilo que um filme nos dá a ver?
Digamos, para simplificar, que os tempos e os espaços da história não se confundem com o fluxo de um convencional noticiário televisivo organizado como uma colagem “novelesca” de protagonistas (sobretudo da política e do futebol). Em A Zona de Interesse, a história diz-se, antes de tudo o mais, através da proximidade (dir-se-ia uma forma dantesca de “colagem”) da casa familiar de Rudolf Höss, comandante de Auschwitz, e dos pavilhões do campo - o paraíso imaginado como abstração coexiste, para lá de um simples muro, com o inferno da Solução Final concebida pelos nazis.
Essa proximidade existe como cenografia que decorre de um sistema ideológico de desumanização. De quem? Do outro? Do judeu? Sem dúvida, mas há também uma autodesumanização daquele que aplica a sentença de morte desse outro. Assim, a banalidade do mal que Arendt inventariou e desmontou não se esgota na banalidade do gesto de aniquilamento desse outro, já que começa na banalização dos gestos dos próprios responsáveis do extermínio - leia-se ou releia-se o seu Eichmann em Jerusalém (tradução de Ana Corrêa da Silva, ed. Tenacitas, 2013).
Christian Friedel, o ator que interpreta Höss, falou dessa desumanização - e do horror que através dela se multiplica - numa entrevista ao site IndieWire (13 dez. 2023). De acordo com o trabalho de preparação que desenvolveu com o realizador, era importante mostrar Höss sem o esgotar num qualquer estereótipo de “criminoso”. Diz Friedel: “Observamo-lo como uma pessoa vulgar e aborrecida na sua vida quotidiana, como um pai interessado na natureza e coisas desse género. O trabalho está sempre presente no seu pensamento, mas não vemos as coisas através dos seus olhos - os seus olhos são frios.”
São sinais de uma lógica fascista e de fascização que o filme de Glazer expõe com invulgar precisão: o congelamento dos olhares banaliza a morte do outro, a realidade passa a ser habitada como mecanismo inevitável, tendencialmente indiferente.
Jornalista