Os canivetes suíços

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Perante uma série de fenómenos sociais que apenas preocupam a elite político-mediática do ponto de vista da retórica e da coreografia dos jogos florais para as câmaras televisivas e amplificação nas redes sociais, reclama-se da Educação uma espécie de capacidade taumatúrgica ou mesmo messiânica que permita sarar as profundas feridas existentes e remendar aquilo que, pelo menos, duas décadas de governação negligente por opção causaram.  

Pretende-se já não só uma Escola transbordante, com funções que em muito excedem a sua missão específica original, mas uma Escola de acolhimento, para a qual transbordam todos os problemas sociais por solucionar, esperando-se que consiga fazer curativos rápidos e ainda funcionar como um hub que coloque em contacto e funcionamento uma série de outros organismos e instituições que raramente se articulam de forma eficiente e em tempo útil. 

As escolas, em especial as da rede pública que muitos criticam, porque as privadas de “excelência” mantêm certas experiências ao largo, passaram a funcionar como uma espécie de serviço de triagem de problemas sociais, sanitários, económicos e mesmo culturais. Mas para isso é indispensável que as dotem dos meios humanos especializados, pois não podem ser (mesmo quando são obrigados a sê-lo) os professores que têm a capacidade, disponibilidade ou o dever de funcionar como psicólogos, mediadores, assistentes sociais, conselheiros familiares e conjugais ou tudo o que agora lhes é exigido. Em especial aos Directores de Turma que passaram de uma ou duas horas de atendimento semanal dedicadas a questões académicas ou de assiduidade dos alunos para estar de serviço constantemente, como uma farmácia de serviço ou bomba de gasolina 24/7, para toda e qualquer emergência. 

Falei em capacidade, que não passa apenas pela decorrente de qualificações académicas, mas em especial a do âmbito emocional para lidar com variadas situações dramáticas. Referi a disponibilidade porque há um tempo de trabalho, em aula, de estabelecimento ou individual, que é constantemente desrespeitado. Destaquei ainda a questão do dever porque o conteúdo funcional da docência que está em vigor não pode ser letra morta de morte matada ou morrida.  

Os serviços do Estado Social estão em falência devido a políticas concertadas em torno do centrão nos últimos 20 anos e só sobrevivem na base dos remendos que se rasgam a cada novo puxão, mas das Escolas e dos Professores espera-se tudo, pouco ou nada se dando em troca que não devesse ser seu há muito. Aos professores pede-se que funcionem como uma espécie de canivete suíço, capazes de resolver tudo e ainda mais alguma coisa Aposta-se na culpabilização de quem resiste aos abusos, mas essa é uma estratégia de a curto-médio prazo terá tão más consequências quanto outras que nos trouxeram até aqui. Não vê quem não quer ou está de camarote. 

Professor do Ensino Básico.

Escreve sem aplicação do novo Acordo Ortográfico

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