O triunfo da violência no País Basco

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Nos dois últimos séculos o terrorismo escreveu uma história de fracasso ético, mas também de clamoroso fracasso político. A imensa maioria das organizações desapareceu sem alcançar os objectivos a que se propôs, quase sempre colapsando num vazio sem glória. Os grupos contemporâneos parecem trilhar um caminho semelhante.

O paradoxo é inescapável: sobrevive uma estratégia que não funciona. Hoje, como no passado, o terrorismo alimenta épicas revolucionárias e seduz candidatos ao martírio. Continua agarrado a teses milenaristas e a louvar as virtudes transformadoras da violência. Ainda que o fracasso seja a regra, não se anteveem sinais de extinção.

Esta contradição, na aparência insanável, começa a resolver-se quando analisamos as etapas pós-terrorismo, em particular nos países onde a violência serviu causas nacionalistas. Percebemos que, mais do que atingir objectivos, as organizações procuraram impor mutações sociais e culturais que favorecessem o triunfo num futuro a determinar.

Lutaram por mudanças que tornassem o seu ideário uma inevitabilidade. Por outras palavras, não quiseram atravessar a linha de meta, mas colocá-la a uma distância mais curta e formar quem a pudesse cruzar a prazo.

O País Basco é um bom exemplo. Em 2018, a ETA dissolveu-se por pura necessidade. Perdera capacidade operacional, financiamento e coesão. Agigantou-se a impaciência nas fileiras e a cúpula da organização ficou sitiada pela crítica. Em 2007, um operacional resumiu o problema: “A quantidade e qualidade dos nossos atentados é penosa.” Existir sem poder condicionar a actuação do Estado tornou-se humilhante. No ano seguinte, em declaração sem precedentes, os braços militar e logístico queixaram-se de falta de direcção: “Encontramo-nos numa situação de colapso total.” Em suma, o fim do terrorismo etarra foi forçado pelas circunstâncias. Ao contrário do sucedido na Irlanda do Norte, não houve no País Basco qualquer acto de contrição.

Assim, nas palavras do Comité Executivo da ETA, a dissolução constituiu uma “mudança de estratégia”. Confiou à esquerda abertzale (patriótica), movimento político por ela criado, o legado de décadas de violência. Já comungavam ideias de sectarismo político e étnico, pelo que faltava apenas formalizar a transferência da aura de luta. Na última entrevista concedida, o Comité Executivo foi claro: “A ETA plantou a semente da esquerda abertzale e durante todos estes anos partilhou com ela objectivos políticos e a luta por atingi-los”; “A esquerda independentista é quem representa o projecto político da ETA”.

Reunida na coligação partidária E.H. Bildu, a esquerda independentista aceitou a herança com orgulho. Rufi Etxeberria, destacado militante abertzale, afirmou ser “tempo de recolher o fruto de longos anos de luta, e não deixar que se perca”. Desde então, o E.H. Bildu integra antigos membros da ETA, alguns com responsabilidade directa em homicídios. É parte activa em centenas de cerimónias públicas de glorificação dos “mártires” e reclusos da organização, descritos como gudaris (guerreiros patrióticos) e “presos políticos”. Tão ou mais relevante, apresentou 44 membros da ETA nas listas às eleições autárquicas de 2023, sete dos quais condenados por crimes de sangue.

Tudo isto é possível por duas razões. Primeiro, equilibrismo discursivo. O Bildu rejeita o apoio a organizações terroristas, mas recusa-se a considerar a ETA como tal. Pede perdão às vítimas, mas não reconhece a existência de verdugos, donde emerge a conclusão absurda de que as vítimas surgiram por geração espontânea. Lamenta o passado de dor para, acto contínuo, descrevê-lo com tonalidades de heroísmo abnegado. Diz querer virar a página, embora resista a colaborar com a Justiça no esclarecimento de mais de 300 homicídios ainda sem autores materiais identificados.

Recorde-se que nada disto se deve nem relaciona com Francisco Franco. Todos os etarras condenados pela ditadura foram libertados graças às amnistias aprovadas na década de 1970, peças essenciais da transição democrática espanhola. Acresce que mais de 90% das 850 vítimas mortais da ETA foram assassinadas com Espanha a viver em democracia.  Portanto, os “presos políticos” são, na sua maioria, indivíduos condenados por homicídio e pertença a organização terrorista nos Anos de 1990 e até mesmo após o ano 2000.

A segunda razão está nas necessidades eleitorais do PSOE de Pedro Sánchez. Sem o apoio dos separatismos basco e catalão não há maioria de Governo, o que, a um só tempo, autoriza o equilibrismo discursivo e permite ao abertzalismo avançar sem pagar um preço político por décadas de violência. Por sua vez, isto abre caminho para que o Bildu branqueie o passado e se apresente como uma mera plataforma de esquerda com proclividades independentistas, o que colhe junto do eleitorado mais jovem, sem memória dos anos de chumbo.

A par do legado simbólico e doutrinal, há bens tangíveis. O Bildu beneficia activamente das transformações impostas pela organização terrorista à sociedade basca. A ETA visou indivíduos tidos como españolistas, mas dedicou-se sobremaneira a purgar do corpo social os “traidores”, ou seja, os bascos que não aderiam ao credo etarra. Quis purificar o povo, vendo no pluralismo democrático uma injúria da heterodoxia. Fê-lo mediante a eliminação física de adversários - não por acaso, a maioria dos atentados aconteceu em território basco - e da violência de perseguição, expressão aplicada a diferentes formas de acosso, tão ubíquas que obrigavam as vítimas ao isolamento ou ao exílio. Estima-se que entre 60 000 e 200 000 pessoas abandonaram a região sob coacção.

A mutilação demográfica do País Basco aconteceu também por via da constelação de entidades criadas ao redor da ETA. Partidos, sindicatos, jornais, associações de estudantes, grupos ecologistas e outros satélites do terrorismo funcionaram como caixas de ressonância ideológica, centros de doutrinamento, interpostos logísticos e como fontes de recrutamento infiltradas em todos os âmbitos do quotidiano. Desempenharam um papel tão relevante que pouco após a sua ilegalização a ETA entrou em declínio organizativo. O fim do terrorismo reactivou esta constelação, que em boa verdade nunca desapareceu, dando ao Bildu ampla implementação territorial.

Tudo isto desaguou nas eleições autonómicas bascas do passado domingo: a esquerda abertzale teve um resultado histórico. Embora fosse o segundo partido mais votado, o Bildu ficou em primeiro lugar ex aequo em número de mandatos obtidos. Nunca o ideário etarra recebeu tanto apoio popular. Ocupou quase todo o espaço da esquerda: ficou com os eleitores da esquerda radical do Podemos; impediu o Sumar de se implantar na região; e caminhou em direcção ao centro-esquerda com o qual não tem qualquer afinidade ideológica, mas que é fundamental para ganhar eleições.

Ao contrário do que diz a direita espanhola mais conservadora, a ETA não existe. Acabou em 2018. Mas teve no domingo passado um excelente resultado nas urnas.


Escreve sem aplicação do novo Acordo Ortográfico

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