O que é a literacia visual?

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A obra do cineasta Ruben Östlund não será um modelo de rigor formal ou complexidade narrativa, ainda menos de riqueza temática. Para mim, entenda-se: afinal de contas, é verdade que Triângulo da Tristeza (2022), uma “parábola” sobre a degradação moral dos ricos, me parece um exercício de inconsequente e demagógico barroquismo, mas não é menos verdade que foi apoteoticamente celebrado nos mais diversos quadrantes, arrebatando mesmo uma Palma de Ouro em Cannes (foi a segunda para o realizador sueco, cinco anos passados sobre idêntica proeza conseguida com o banalíssimo O Quadrado).

Enfim, os meus juízos de valor sobre o trabalho de Östlund são para ele irrelevantes. Nem sequer existem - e ainda bem. Ao mesmo tempo, isso não me impede - faço-o mesmo com muito gosto - de aqui sublinhar algumas sugestivas declarações que ele prestou ao jornal inglês The Guardian (12 abril), declarações que, como faz sentido dizer, mão amiga me deu a conhecer.

Que se passa, então? Pois bem, Östlund propõe uma via francamente original para resumir o problema da responsabilidade das imagens. Ou melhor, da responsabilidade de cada um através das imagens que produz ou difunde. A proposta é de tal modo surpreendente que a jornalista, Catherine Shoard, antes mesmo de contextualizar a conversa, não resiste a abrir o seu artigo deste modo direto e contundente: “Tenho uma ideia”, diz Ruben Östlund. “E se cada pessoa só fosse autorizada a usar uma câmara se tivesse uma licença para o fazer? É preciso uma licença para ter uma pistola - em países sofisticados, pelo menos. A câmara também é uma ferramenta poderosa.”

Eis o que me basta para celebrar a energia das suas palavras. Claro que os menos interessados em enfrentar a questão premente da responsabilidade audiovisual serão rápidos a descartar o assunto. Farão mesmo aquilo que todos os dias vemos (e ouvimos) nos mais medíocres debates televisivos. A saber: reduzir as frases a um conteúdo literal e brincar com coisas sérias - “Vamos, então, precisar de uma licença do Ministério da Defesa de cada vez que compramos um telemóvel?” O resultado de tão excelsa estupidez é conhecido: evitar lidar com as formas de poder social, nomeadamente mediático, das imagens.

Blow-up (1966): David Hemmings na guerra das imagens. FOTO: D.R. / Arquivo

O assunto está muito longe de se esgotar na discussão de um qualquer dispositivo legalista capaz de apaziguar a nossa perturbação - como se, por exemplo, o alcoolismo de muitos jovens fosse um problema solucionável através dos horários de venda das lojas de conveniência… O que está em jogo, antes mesmo da avaliação do que é (e, sobretudo, do que não é) a atual educação para as imagens, enraíza-se no sistema de relações com as imagens proposto (mais do que isso: imposto) pelos valores sociais dominantes, incluindo os que decorrem das convulsões tecnológicas.

A palavra “educação” deve, aliás, ser repetida e reforçada, quanto mais não seja porque a esmagadora maioria dos elementos das classes políticas, direitas e esquerdas confundidas, continua a não ter qualquer ideia sobre o assunto, satisfazendo-se com a gestão dos tempos em que cada um pode perorar nos ecrãs televisivos. Celebrado, muito justamente, como um clássico da reflexão sobre o entendimento das imagens, o filme Blow-up (1966), de Michelangelo Antonioni, possui uma renovada e perturbante atualidade: tal como o fotógrafo interpretado por David Hemmings, sabemos ou, pelo menos, pressentimos que a dialética de revelação/ocultação em que vive uma imagem é sempre um sistema de poder - de muitos poderes.

Educar para as imagens não será, por isso, acumular referências enciclopédicas, muito menos pitorescas, nas cabeças de crianças e adolescentes que vivem como se o seu telemóvel contivesse o mundo todo. Lembremos, a propósito, a breve e magnífica exposição de Martin Scorsese, registada em 2012 para o site da Edutopia (também canal do YouTube), a Fundação para a Educação criada por George Lucas em 1991: “É preciso começar a ensinar os mais novos, em tenra idade, a formar um pensamento crítico sobre as imagens, o que elas significam e como interpretá-las. É preciso compreender como as ideias e emoções são expressas através de uma determinada linguagem visual. É preciso começar a ensinar os mais novos sobre o uso de tão poderoso instrumento.”

O tema era (e é) de uma dramática urgência: discutia-se a literacia visual, quer dizer, a diferença entre saber ver imagens ou ser massacrado pela sua quotidiana instrumentalização mediática. Não se confundirá com as balas da pistola que Östlund refere, mas não tenhamos ilusões: é aí que se trava a grande guerra cultural do nosso presente.

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