O meu calendário geopolítico difere do convencional. A era do século XX, que ficou marcado por duas enormes confrontações bélicas, pela Guerra Fria, pela descolonização e pela expansão industrial em larga escala, terminou em 1991, com o colapso da União Soviética. Começou então, na minha leitura da história, o tempo do século XXI. Entrámos num período de globalização económica, multilateralismo e cooperação internacional, desenvolvimento dos regimes democráticos, e de preocupação com a sustentabilidade e os grandes desafios globais.  O meu calendário também me diz que o século XXI foi bastante curto. Parece-me haver terminado com a brutal invasão russa da Ucrânia, em fevereiro de 2022. Os tempos mudaram nessa altura, com o regresso a práticas de outrora, ao uso sem disfarces da força militar e económica como fatores determinantes nas relações internacionais. Assistimos, simultaneamente, a uma acelerada corrida para o futuro, baseada nas transformações tecnológicas e na revolução digital. Da inquietação sobre as desigualdades entre os povos passou-se à insensibilidade sobre as questões do desenvolvimento.   Estamos agora num período estranho e ambíguo da história universal: vivemos ao mesmo tempo no passado e no futuro. Encontramo-nos conectados através de milhares de cabos de fibra ótica e de um crescente número de satélites. A informação global é instantânea, mas parece que estamos a regressar, com uma rapidez variável, às velhas ideias nacionalistas, ao cada um por si.   A indiferença tornou-se uma marca distintiva desta nova era. O excesso de dados acaba por nos anestesiar. Ficamos alheios ao que acontece fora do nosso círculo mais próximo. Essa apatia facilita a manipulação da opinião pública por líderes políticos populistas, extremistas, que utilizam as plataformas digitais para condicionar os comportamentos dos cidadãos. Paradoxalmente ou não, os próprios manipuladores acabam por ouvir a sua própria vozearia, e parecer acreditar nas narrativas que criam. Alimentam, assim, o ciclo da desinformação e do distanciamento coletivo em relação às grandes questões que continuam por resolver. Neste contexto, o empenho no pensamento crítico torna-se fundamental. É preciso saber questionar, analisar e interpretar as intenções que as mensagens escondem. O desenvolvimento da capacidade de formular perguntas pertinentes e de avaliar a credibilidade das fontes é essencial para evitar a manipulação e o conformismo. Como Sócrates já defendia há 2 500 anos, explorar ideias alternativas e desafiar opiniões estabelecidas é politicamente indispensável em democracia.  Esta reflexão teve como origem um comentário recente, feito num dos nossos canais televisivos, sobre o novo míssil de cruzeiro russo de propulsão nuclear, conhecido na Rússia por 9M730 Burevestnik e na NATO pela designação de Skyfall. Vladimir Putin anunciou que a 21 de outubro o míssil havia sido lançado e que o teste fora um sucesso. Acrescentou que o engenho esteve 15 horas no ar, percorreu mais de 14 mil quilómetros, podendo assim ser dirigido para um alvo no canto mais remoto do planeta. Sublinhou igualmente que nenhum outro Estado tem capacidade para o intercetar. Ou seja, a Rússia afirmava assim ter dado mais um passo para consolidar o seu lugar nas primeiras filas da nova era, a era da confrontação e da força.  O comentador, pessoa que considero, disse que Trump havia “olimpicamente” ignorado o anúncio feito por Putin. Faltou o porquê do alheamento de Trump.  Penso que é relevante tentar compreender esse aparente desdém. Digo aparente porque ontem o presidente americano ordenou às suas forças armadas que iniciassem um programa de testes nucleares, algo que não acontecia há mais de três décadas.  Na minha análise, Trump, que tem passado a semana na Ásia, não tem medo da Rússia nem se interessa de modo particular por Putin, exceto no que diz respeito à guerra russa contra a Ucrânia. Quer acrescentar a paz na Ucrânia à sua lista de pretensos tratados de paz, sempre com a obcecação do Nobel da Paz. Neste momento, hoje sexta-feira, está convencido que Putin é o obstáculo maior no caminho para um cessar-fogo. Sábado, logo se verá.  Fora isso, ficou bem claro, nestes dias, que a prioridade absoluta da administração norte-americana é a rivalidade com a China. O seu périplo pela Ásia procurou mostrar a influência e o poder dos Estados Unidos numa região cada vez mais próxima da China. Por isso, Trump esteve na Malásia, na cimeira da ASEAN, depois no Japão, na Coreia do Sul e mostrou moderação no encontro de ontem com o presidente chinês, Xi Jinping. Para além dos acordos comerciais, vários deles ligados às tecnologias de ponta que irão definir os próximos anos, o sucesso da presença de Trump na Ásia e a adulação que recebeu reconfortaram a sua ilusão que os EUA têm uma influência decisiva naquela parte do globo. O míssil de Putin, por muito potente que possa ser, algo que está por confirmar, não pesa para Trump nem o distrai, já que considera prioridade fundamental o relacionamento com a Ásia, no quadro da concorrência com a China.  Faz, segundo creio, uma leitura superficial e equívoca da realidade. Precisa de entender que este novo século iniciado em 2022 parece ir no sentido da consolidação de facto da aliança estratégica entre a China e a Rússia. Conselheiro em segurança internacional.Ex-secretário-geral-adjunto da ONU