O poder da banca cooperativa
Nos últimos mais de 30 anos tenho estado, direta ou indiretamente, envolvido nas questões que marcaram a vida das Caixas Agrícolas e do Cooperativismo de Crédito. Trabalhei direta, conjunta e de forma desafiante com os Drs. Tavares Moreira e posteriormente João Costa Pinto, que atualmente integra o Conselho Estratégico da Instituição a que presido. Sei dos desafios, dos engodos, dos medos, dos bons e maus conflitos, do que está em jogo. No texto da semana passada, lancei o tema mais decisivo, a diferença entre os que acreditam que a identidade dos projetos cooperativos é a mais-valia que nos faz maiores, e os que acham que se deve “desmutualizar” por ser a única hipótese para que possamos crescer e ser competitivos.
Para que não existam ambiguidades: acredito que a segunda via pode ser trágica para as caixas agrícolas - trágica no sentido do risco sistémico que passa a existir; na falta de autonomia de cada uma das caixas de crédito agrícola subordinadas aos ditames de um organismo central que as torna mais isomórficas; e também no afastamento progressivo das populações a quem cada uma das caixas deveriam servir em primeiro lugar.
Não deixa de ser um paradoxo, sobretudo pela perda de oportunidade que a crise financeira nos trouxe em 2001. Recordamo-nos bem do aumento da regulação do supervisor europeu que inicialmente ignorou a identidade específica dos projetos mutualistas. Todos os bancos cooperativos tiveram que desviar recursos para cumprirem os constantes pedidos dos reguladores, mas porque capitalizados saíram mais fortalecidos com adoção da cultura e do modelo de risco proposto.
Tudo isto aumentou de forma exponencial o número de relatórios, a sua complexidade e a codificabilidade, também da avaliação do perfil de idoneidade dos intervenientes na gestão. Pedidos constantes, exigências e pressões que, à boleia dos atropelos éticos da banca tradicional, contaminaram a banca de proximidade com a dificuldade de cumprir o que é a nossa primeira condição identitária: a honra, a palavra, a confiança.
Por entre este caminho de desconfiança aconteceu um segundo paradoxo: é que as instituições cooperativas provaram que o seu modelo de negócio permite a gestão prudente dos ativos, e a redução dos níveis de alavancagem fez com que não tivessem que recorrer, ao contrário dos bancos tradicionais, ao apoio de garantias do Estado. É neste cenário que o impensável aconteceu, um processo de afastamento dos princípios do mutualismo -, o associado coproprietário foi substituído pelo funcionário, o título de capital pelo prémio de desempenho, a riqueza de uma licença bancária eliminada por fusões e isto justificado por uma sofreguidão de crescimento ou por uma vaidade de pertencer a um suposto primeiro mundo da banca, uma “mesa de poderosos” que nada tem a ver com o que somos ou deveríamos ser todos os dias. O nosso poder não é o de ser como os outros, é o de sermos como mais ninguém.
A Espanha, Áustria, Alemanha esta última com importantes quotas de mercado (33%) de banca cooperativa e mutualista -, caixas agrícolas e caixas económicas estas últimas ligadas ao Lander -, recusaram modelos de organismo central. A Itália (BCC) foi empurrada para este modelo mas logo quis reverter o processo, o diploma está na Câmara Alta - salvaram-se os bancos cooperativos dos Estados do Norte, os mais capitalizados.
Este é um momento absolutamente decisivo da nossa história. Temos a obrigação de pensar a partir do passado de tantos homens extraordinários que nos colocaram o desafio do futuro. Precisamos de os respeitar e de agir enquanto não é tarde. Na próxima semana, direi alguma coisa em concreto sobre o que ganhamos e perdemos, sobre a virtualidade da banca cooperativa e os riscos quando se tenta ser o que não se é.
Presidente da Caixa de Crédito Agrícola Mútuo de Torres Vedras
manuel.guerreiro@ccamtv.pt